A doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi é a causa mais comum de miocardiopatia infecciosa no mundo, sendo um grande problema de saúde pública na América Latina (seis milhões de soropositivos com 1,2 milhão de casos de miocardiopatia).
A maior parte dos pacientes soropositivos para T. cruzi permanecem assintomáticos, porém com maior risco de progressão para miocardiopatia (estima-se, com dados não muito robustos, que um terço destes evoluirão com acometimento cardíaco ao longo da vida). A grande dificuldade para estudar os fatores de risco que levarão os pacientes a desenvolver a miocardiopatia chagásica (MCC) é o tempo prolongado de evolução da doença e consequente dano cardíaco, que demora algumas décadas para se estabelecer. Se não bastasse, ainda há a dificuldade de se definir o que é a miocardiopatia chagásica, já que alterações típicas do eletrocardiograma (ECG) em pacientes soropositivos não abrangem a totalidade dos pacientes que apresentam um quadro clínico compatível, porém são soronegativos.
Estudo sobre a miocardiopatia chagásica
Com base nessas premissas, um grupo de pesquisadores (National Institutes of Health Recipient Epidemiology and Donor Evaluation Study [Brazilian NIH REDS]) realizou um estudo de coorte acompanhando ao longo de 10 anos (2008 a 2019) pacientes soropositivos para o T. cruzi a fim de avaliar a mortalidade e incidência de MCC.
O artigo original, ao qual tivemos acesso, foi aceito na Circulation, mas ainda passará pela editoração, revisão por pares e posterior revisão dos autores, sendo que aqui comentaremos os achados deste artigo original.
A seleção de pacientes se deu em dois bancos de sangue brasileiros, sendo selecionados pacientes com achado de sorologia positiva para T. cruzi no momento da doação do sangue e pacientes soronegativos pareados por idade, sexo e período da doação com o grupo anterior. Foram ainda recrutados pacientes soropositivos com MCC estabelecida em um ambulatório terciário de Cardiologia [grupo incluído para comparação de mortalidade com doadores de sangue assintomáticos identificados por meio da triagem]. Todos os pacientes recrutados foram submetidos a exame clínico e laboratorial, ECG e ecocardiograma inicialmente, com reavaliação após 10 anos.
Foram definidos quatro grupos para acompanhamento:
- Doadores soropositivos com MCC (até então desconhecida), n = 114. Após 10 anos: 17 óbitos e 68 reavaliados.
- Doadores soropositivos sem MCC; n = 385. Após 10 anos: 15 óbitos e 95 reavaliados.
- Doadores soronegativos, n = 488. Após 10 anos: 18 óbitos e 285 reavaliados.
- Pacientes soropositivos com MCC estabelecida, n = 101. Após 10 anos: 54 óbitos e 20 reavaliados.
Apresentamos a seguir os achados do estudo
- A taxa de mortalidade entre doadores de sangue soropositivos para T. cruzi com MCC foi quatro vezes maior do que no grupo dos soropositivos sem MCC. O grupo dos soropositivos sem MCC teve mortalidade com taxa semelhante ao grupo dos soronegativos.
- O nível sérico de anticorpos anti-T. cruzi, marcador da carga parasitária, foi associado à miocardiopatia de início recente e maior mortalidade.
- A incidência de cardiomiopatia em pacientes soropositivos é duas vezes maior do que em pacientes soronegativos, podendo chegar a três vezes maior em indivíduos com alta carga parasitária.
- Incidência da soropositividade para T. cruzi: 9,2 casos/1000 pessoas/ano [incidência menor do que dados descritos anteriormente pelos autores].
- Cardiomiopatia chagásica foi definida como QRS ≥ 120 ms e/ou disfunção sistólica do ventrículo esquerdo no ecocardiograma em pacientes soropositivos (95% de precisão no diagnóstico), sendo uma definição simples que pode ser usada em estudos posteriores.
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Mensagem prática
As medidas de controle de transmissão da doença de Chagas estão sendo eficazes para redução da ocorrência de novos casos e complicações. Além disso, indivíduos soropositivos que não evoluem com disfunção cardíaca tem mortalidade semelhante aos pacientes soronegativos. Nesses casos, vale ressaltar, os níveis de anticorpos anti-T. cruzi parecem desempenhar um papel importante na previsão da progressão para miocardiopatia.
Identificando-se precocemente os pacientes com altos níveis de anticorpos anti-T. cruzi poderíamos implementar estratégias de prevenção e aconselhamento, com acompanhamento ambulatorial e planejamento de ensaios clínicos para avaliação de intervenções nestes casos. Do mesmo modo, aventa-se que pacientes com altos níveis destes anticorpos podem ser considerados candidatos à terapia antitripanossomal, o que reduziria as chances de progressão para miocardiopatia.
Referências bibliográficas:
- Nunes MCP, Buss LF, Silva JLP et al. Incidence and Predictors of Progression to Chagas Cardiomyopathy: Long-Term Follow-Up of Trypanosoma Cruzi Seropositive Individuals. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.121.055112.