Morte encefálica: como manejar potenciais doadores de órgãos?

A morte encefálica (ME) é um evento comum nos hospitais, especialmente os de grande porte que servem de referência para grandes regiões.

A morte encefálica (ME) é um evento comum nos hospitais, especialmente os de grande porte que servem de referência para regiões que, muitas vezes, abrangem mais do que apenas as cidades onde se encontram. Mais que apenas um desfecho que conclui a vida de um paciente, a ME é o que permite boa parte das doações e transplantes de órgãos dos sistemas de saúde público e privado. Apesar do termo “morte” na definição de ME, isso só é verdade para a atividade cerebral consciente. Em outras palavras, todo o resto do corpo continua a funcionar após esse tipo de evento, e é justamente por isso que essa situação permite a doação de órgãos viáveis para uma ou mais pessoas das longas listas de espera para transplante.

Apesar disso, conforme esperado, o corpo não demora a evoluir para o óbito definitivo depois da ME. Isso quer dizer que, sem os devidos cuidados, o potencial doador pode evoluir com degeneração orgânica progressiva até, no fim, não ser mais elegível para a doação. Em outros casos, a doação pode até ser possível, mas a lesão orgânica desenvolvida até o momento do transplante pode resultar em falha e consequente perda do enxerto no receptor.

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Entendido isso, ainda fica a dúvida: como devo manejar pacientes com morte encefálica que são potenciais doadores de órgãos, a fim de aumentar as chances de um transplante viável e bem sucedido? Para responder essa pergunta, três instituições brasileiras (Associação Brasileira de Medicina Intensiva – AMIB, Associação Brasileira de Transplante de Órgãos – ABTO, e a Brazilian Research in Intensive Care Network – BRICNet) se uniram ao Ministério da Saúde para organizar uma diretriz, com os pontos mais importantes do cuidado com os potenciais doadores de órgãos.

A pesquisa foi direcionada através de perguntas elaboradas por especialistas de Medicina Intensiva (e outras áreas relacionadas) que, por sua vez, foram respondidas com evidências obtidas de diferentes plataformas, incluindo PubMed, DynaMed, UpToDate e outras. Esse modelo foi escolhido pelo fato de pesquisas com vítimas de ME serem relativamente escassas. Além de a ME ter sido confirmada, o paciente em questão ainda precisa ser elegível para a doação de órgãos, o que reduz consideravelmente o “n” disponível para a maioria das pesquisas.

As perguntas organizaram as etapas dos cuidados de acordo com os sistemas envolvidos e o resultado foi o seguinte:

A morte encefálica (ME) é um evento comum nos hospitais

Etapa 1 – Suporte ventilatório

O primeiro item a ser checado é o suporte ventilatório. Pela deterioração orgânica sistêmica que se segue à ME, frequentemente esses pacientes vão evoluir com disfunção pulmonar e uma relação PaO2/FiO2 < 300. Além disso, a maioria dos pacientes em questão são críticos e, como boa parte dos internados de UTI, encontram-se em ventilação mecânica com consequente susceptibilidade para desenvolver lesões pulmonares secundárias à VM e pneumonia associada ao ventilador. Tudo isso pode resultar em perda da viabilidade dos pulmões para o transplante, além de favorecer a hipoxemia sistêmica e comprometer outros órgãos passíveis de captação.

Logo, a diretriz em questão sugere manter parâmetros de ventilação protetora (i.e. volume corrente entre 6-8 mL/Kg e PEEP entre 8-10 cmH20), com ajustes de FiO2 e PEEP a fim de manter a SatO2 ≥ 90%. Ao contrário da ventilação protetora, manobras de recrutamento alveolar não mostraram benefícios, como maior número de órgãos viáveis ou maior sucesso pós-transplante, nas pesquisas encontradas.

Etapa 2 – Hemodinâmica

Após os ajustes ventilatórios, a prioridade é manter um bom status hemodinâmico. O choque subsequente à morte encefálica e as várias condições que levam a ela, naturalmente, geram isquemia orgânica generalizada, com alto risco de perda funcional dos órgãos. Particularmente, a instabilidade hemodinâmica mal controlada foi responsável por maior incidência de falha de enxerto nos transplantes de fígado, além de parada cardiorrespiratória no doador (resultando em inviabilização do coração para a captação).

Como uma das causas mais frequentes de choque, nesses pacientes, é a hipovolemia, a diretriz recomenda a avaliação do status volêmico do paciente, seguida de expansão com cristaloides, se necessário. Isso também é importante porque os vasopressores, com frequência, causam piora da perfusão visceral e, portanto, devem ser evitados se o paciente for responsivo a volume. A avaliação dessa responsividade por ser feita com parâmetros estáticos como a PVC, porém são preferidos os métodos dinâmicos por permitirem resultados mais precisos e fidedignos. Com isso, a equipe assistente consegue evitar a hipervolemia iatrogênica (que também compromete a viabilidade dos órgãos, especialmente dos pulmões).

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Se o paciente não for responsivo a volume, está indicado o uso de vasopressores. Nesse caso, os estudos pesquisaram tanto a adrenalina/noradrenalina quanto a dopamina. Na teoria, a dopamina poderia apresentar alguns benefícios como proteção renal, controle de frequência cardíaca e menor isquemia visceral. A maior parte disso, porém, não foi comprovada e a noradrenalina continua sendo a droga vasoativa de escolha na maior parte dos casos. A única exceção, é o subgrupo de pacientes que, após a morte encefálica, se tornam bradicárdicos por disfunção do tônus vagal. De fato, o uso de adrenalina nesses casos é preferido pelo potencial efeito inotrópico e cronotrópico que essa droga apresenta.

A adrenalina e noradrenalina aumentam a PAM através de vasoconstrição periférica. Assim, quando em altas doses, podem causar isquemia de órgãos como fígado e rim. Por isso, a diretriz sugere iniciar corticoides em baixa dose e/ou vasopressina como adjuvantes, auxiliando assim na redução da necessidade de outras drogas vasoativas. Nesse caso, a dose sugerida de vasopressina é um bólus de 1 UI IV seguido de 0,5 – 2,4 UI/h em infusão contínua e a de corticoide, 100 mg de hidrocortisona de 8/8 horas (ou equivalente).

Etapa 3 – Diurese

É comum que pacientes com ME evoluam com diabetes insipidus (DI) e, consequentemente, poliúria e hipernatremia. Como comentamos anteriormente, tanto a hipovolemia quanto a hipervolemia são potencialmente danosas aos órgãos passíveis de captação e, consequentemente, alterações no volume de diurese dificultam atingir o equilíbrio necessário para evitar esses extremos. A poliúria por DI deve ser suspeitada, e tratada empiricamente, em pacientes que evoluem com diurese superior a 4 ml/Kg/h. Nos casos de pacientes com instabilidade hemodinâmica, o uso de vasopressina pode ser suficiente para corrigir esse desvio. Já em pacientes estáveis e sem necessidade de drogas vasoativas, é recomendado o uso de DDAVP, na dose de 1 micrograma EV de 4/4 horas. O objetivo recomendado pela diretriz é manter a diurese menor que 4 mL/Kg/h. Em casos refratários, a vasopressina e a desmopressina podem ser utilizadas em associação.

Etapa 4 – Outras medidas de suporte

A diretriz de base deste artigo também traz outros itens, como cuidados nos níveis endocrinológico, nutricional, hematológico e outros, que vamos resumir nesta sessão:

Corticoterapia: além do auxílio no desmame de drogas vasoativas, a corticoterapia em baixas doses também auxilia no controle da inflamação sistêmica resultante da morte encefálica, que naturalmente resulta em lesão orgânica múltipla. Esse efeito protetor é ainda maior nos pulmões, auxiliando no controle ventilatório e na manutenção de PaO2/FiO2 adequada. Não há benefício no uso de doses maiores de corticosteroides.

Controle glicêmico: existem evidências demonstrando que a hiperglicemia está associada ao maior risco de perda da viabilidade de órgãos. O recomendado é manter a glicemia do potencial doador entre 140 e 180 mg/dL, com controles de 6/6 horas, e se necessário com o uso de protocolo de insulina intravenosa.

Distúrbios hidroeletrolíticos: apesar de não existirem evidências sugerindo relação direta entre o nível de eletrólitos e o risco de perda de viabilidade dos órgãos, é intuitivo pensar que os desbalanços podem causar problemas. Afinal, alterações de potássio ou magnésio, por exemplo, podem predispor a arritmias e, com isso, induzir parada cardiorrespiratória com consequente isquemia orgânica. O sódio, por sua vez, vem sendo associado a pior desfecho nos potenciais doadores de órgãos, além de refletir o status volêmico e quão bem ele está sendo controlado. Logo, a diretriz sugere manter os eletrólitos em níveis normais, com sódio < 155 mEq/L, potássio entre 3,5 e 5,5 mEq/L, e magnésio > 1,6 mEq/L.

Suporte nutricional: esse é outro elemento que frequentemente engana a equipe médica assistente, podendo ser facilmente esquecido ou desprezado após a confirmação da morte encefálica. De fato, pacientes em ME têm uma redução de 15 a 30% no gasto energético basal. Isso significa que a oferta calórica pode ser reduzida (o recomendado é ofertar 500 kcal diárias). Assim, a nutrição enteral pode ser mantida, exceto quando a captação dos órgãos será em breve, ou se existirem contraindicações formais (ex: obstrução intestinal, altas doses de drogas vasoativas). A oferta de nutrição por via enteral teoricamente pode aumentar os estoques de glicogênio hepáticos (que estão associados a maior chance de sucesso do enxerto), mantém o trofismo da mucosa gastrointestinal, e com isso reduz o risco de translocação bacteriana.

Tratamento antimicrobiano: a transmissão de infecções do doador para o receptor é rara, especialmente quando adequadamente tratada no doador. Caso o paciente com morte encefálica desenvolva uma síndrome infecciosa, a diretriz recomenda colher culturas para pesquisa do micro-organismo e realizar o tratamento antimicrobiano guiado, ou empírico quando esse não for possível, por pelo menos 24 horas antes da captação de órgãos. A maioria dos estudos utilizou tempos de antibioticoterapia entre 24 e 96 horas antes da captação. Independente do tempo de tratamento no doador, o receptor deve receber o mesmo antibiótico por 7 a 14 dias, a fim de evitar a transmissão da infecção.

Controle de temperatura: não se deve tolerar a presença de febre nos potenciais doadores de órgãos. No entanto, a questão da indução de hipotermia (temperatura axilar < 35 °C) continua polêmica. A hipotermia pode aumentar as chances de viabilidade dos órgãos, especialmente dos rins. Por outro lado, em pacientes com instabilidade hemodinâmica, a hipotermia aumenta o risco de parada cardiorrespiratória. Assim, pesando os riscos versus benefícios, a diretriz recomenda manter a temperatura corporal > 35 °C em pacientes instáveis, e entre 34–35 °C em pacientes hemodinamicamente estáveis.

Suporte transfusional: a hipoxemia sistêmica que acompanha a anemia compromete ainda mais a perfusão orgânica. Porém, na situação específica de pacientes em ME, não há um ponto de corte estabelecido para quando a transfusão deve ocorrer. Assim, a diretriz recomenda seguir o mesmo ponto de corte utilizado para os demais pacientes críticos, com realização de transfusões para manter níveis de hemoglobina acima de 7 g/dL.

Importância dos protocolos e mensagem final

O transplante de órgãos é um tipo de cuidado muito especializado. Portanto, nem todos os profissionais da saúde, nem mesmo médicos intensivistas, têm amplo conhecimento sobre as medidas que explicamos nesse artigo.

O objetivo da publicação foi criar um guia prático no manejo desses pacientes, e acelerar a disseminação dessa informação. Espera-se que a ampla adoção dessas medidas possa aumentar a viabilidade de órgãos, ajudando pacientes que aguardam nas longas filas do transplante de órgãos.

Referências bibliográficas:

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