Dislipidemia: o que apontam as últimas publicações

Confira a diretriz de dislipidemia e prevenção da aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), de 2019.

Após a publicação da Diretriz Brasileira de Dislipidemia e Prevenção da Aterosclerose, em 2017, tivemos algumas novas publicações, como a Diretriz de Prevenção Cardiovascular, também da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), em 2019, as Diretrizes de Prevenção Cardiovascular do American College of Cardiology juntamente com American Heart Association, em 2019, e da Sociedade Europeia de Cardiologia em 2021.

Leia também: ACC 2022: o que há de novo em dislipidemia?

A diretriz brasileira de 2019 basicamente segue a diretriz de 2017, documento bastante completo e explicativo, com informações que vão desde a fisiopatologia dos lipídeos até o tratamento da dislipidemia nos cenários mais complexos. A diretriz americana é bastante semelhante em relação ao tratamento da dislipidemia a e europeia tem alguns pontos interessantes em relação a estratificação de risco dos pacientes, com uma nova proposta recomendada. Abaixo, seguem os principais pontos de interesse.

Em quem fazer a dosagem sérica do lipidograma?

A recomendação varia conforme a idade do paciente:

  • < 2 anos: não.
  • 2-10 anos: nas situações de alto risco, pela história familiar e/ou sinais de hiperlipidemia no exame físico (Ex: xantelasma)
  • > 10 anos: sim.

Como interpretar o lipidograma

Em paralelo à Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, a SBC recomenda que os exames para dosagem do lipidograma não sejam mais feitos em jejum. Esta é uma importante mudança que visa facilitar a realização do exame. Além disso, a diretriz fomenta o uso dos dispositivos “point of care”, que dosam o colesterol e suas frações no sangue capilar, semelhante a uma glicemia.

Neste caso, só faz ressalva para os usuários observarem se o método empregado é validado para este fim. Na tabela abaixo estão os valores recomendados tanto para jejum como para “não-jejum”do lipidograma.

Tabela 1: valores de referência para o lipidograma

Jejum Não-Jejum
Colesterol total < 190 < 190
HDL > 40 > 40
Triglicerídeo < 150 < 175

*Os valores de LDL não estão na tabela pois a partir de agora devem ser referenciados conforme estratificação de risco, explicada adiante.

Dos lipídios, o triglicerídeo (TG) é o mais sensível à dieta. Há estudos, inclusive, avaliando se o aumento pós-prandial de TG pode ser um marcador de risco cardiovascular. Quando os níveis de TG estiverem muito altos (> 440 mg/dl), aí sim caberia a repetição do exame em jejum de 12 horas.

O LDL pode ser dosado diretamente do plasma, como as demais frações do colesterol, porém o exame apresenta maior variabilidade e custos, não sendo o método preferencial no dia a dia. O mais comum é utilizarmos a fórmula de Friedewald para cálculo do LDL (LDL = colesterol total – (HDL + TG/5)). Contudo, valores de TG > 400 mg/dl inviabilizam a fórmula. Neste cenários, temos duas opções:

  1. Usar como meta o colesterol não-HDL, que nada mais é que a soma de TG/VLDL e LDL. A meta de colesterol não-HDL é 30 mg/dl acima do LDL.
  2. Calcular o LDL por uma fórmula modificada: LDL-c = CT – HDL-c – TG/x, onde x varia de 3,1 a 11,9. O valor do x vem de uma tabela complexa, disponível na íntegra na diretriz.

Quando o LDL estiver acima de 190 mg/dl, e/ou colesterol total > 310 mg/dl, devemos considerar a hipótese de hipercolesterolemia familiar. Esta doença genética tem alto risco de doença cardiovascular prematura e há benefício em duas estratégias: (1) tratamento precoce com dose máxima de estatina e (2) rastreamento familiar em cascata, isto é, de todos os parentes de primeiro grau. Há testes genéticos disponíveis, mas na vida real o mais comum ainda é o rastreio pelo lipidograma.

Agora que você já escolheu em quem dosar e observou os resultados dos exames, é hora de colocar em prática. A próxima etapa é a estratificação do risco cardiovascular.

Estratificação do risco cardiovascular

Este é o ponto principal da diretriz. Há 5 anos, houve uma mudança importante no paradigma da dislipidemia e prevenção da aterosclerose. Os americanos decidiram abandonar a estratégia de redução do LDL por metas para outra baseada no uso de doses altas de estatina em função do risco cardiovascular global.

Críticos a esse modelo argumentam que há prescrição em excesso das estatinas. Já os defensores argumentam que ele é estritamente baseado em evidências, pois de fato os principais estudos utilizaram critérios clínicos para inclusão de pacientes e uso de altas doses de estatina (e não por metas).

O documento atual da SBC manteve posicionamento semelhante ao anterior, recomendado a estratificação do risco cardiovascular pela ferramenta “Escore Global” para decisão de usar ou não a estatina, além de usar metas de LDL para definir a dose. É uma posição semelhante àquela proposta na Europa em 2016 e mantida em 2021.

Colete as informações clínicas do seu paciente e obtenha o lipidograma. Você pode usar uma das ferramentas para cálculo do risco cardiovascular disponíveis no Whitebook Clinical Decision!

O resultado, seja qual ferramenta for, divide os pacientes em quatro categorias, cada uma com uma meta de LDL (atenção: esta é a diferença para o modelo americano. Lá, eles simplesmente dizem “agora use doses moderada ou alta de estatina”).

Já a diretriz europeia de 2021 colocou como escore de risco sugerido, o SCORE2, que estima o risco de eventos cardiovasculares fatais ou não fatais (IAM e AVC) em 10 anos, na população de 40 a 69 anos. Para os pacientes com 70 anos ou mais sugere o SCORE2-OP, que estima o risco de eventos em 5 e 10 anos. Isso evita que a idade superestime o risco nesses pacientes mais idosos.

Essa mudança ocorreu porque a idade interfere de forma importante no cálculo do risco: geralmente quando fazemos o cálculo para mulheres com menos de 50 anos e homens com menos de 40 anos, o risco costuma ser baixo e para homens com mais de 65 e mulheres com mais de 75 anos, o risco costuma ser alto. A idade intermediária é a que tem mais influência dos FR modificáveis no cálculo do risco. Ainda, levando em conta o fator idade, a diretriz recomenda que o risco seja calculado por categorias de idade: < 50 anos, 50-69 anos, ≥ 70 anos.

É importante ressaltar que esses scores foram calibrados para grupos de países da Europa e regiões próximas, com diferentes riscos cardiovasculares, que foram divididos em baixo, intermediário, alto e muito alto risco. Esse score não deve ser extrapolado para outras regiões, já que foi construído especificamente para esta população. Porém, pode ser que futuramente possa ser validado em outras populações.

Outra mudança interessante desta diretriz foi que para cada faixa etária foi estipulado um valor de corte: para pacientes com menos de 50 anos, o risco é baixo quando menor que 2,5%, intermediário quando entre 2,5 e 7,5% e alto quando maior ou igual a 7,5%. Para pacientes com idade entre 50 e 69 anos, esses valores são menor que 5%, entre 5 e 10% e maior ou igual a 10% e para os com 70 anos ou mais correspondem a menos que 7,5%, entre 7,5 e 15% e maior ou igual a 15%.

Ou seja, o valor de risco para iniciarmos tratamento nos pacientes mais jovens é menor. Pacientes com DCV já estabelecida são classificados como muito alto risco. Após o tratamento, podemos classificá-lo em relação ao seu risco residual, mas grande parte dos pacientes continuará sendo de muito alto risco.

Em relação aos pacientes diabéticos tipo 2, geralmente são classificados como sendo de alto risco, exceto os que tem DM há menos de 10 anos, sem evidência de lesão de órgão alvo e sem outros fatores de risco cardiovasculares (esses são classificados como de risco intermediário). Os que tem lesão de órgão alvo podem ser classificados como de muito alto risco, assim como os com DCV estabelecida.

Fatores de risco adicionais podem alterar a classificação de risco do paciente, como a presença de estresse, fragilidade, obesidade, história familiar positiva para DCV, etnia do paciente, entre outros. Em relação a exames, um dos mais estudados e com resultados é o escore de cálcio na tomografia de coronária, que pode aumentar ou diminuir o risco do paciente. A ultrassonografia de carótidas para detectar presença de placa ou espessamento médio-intimal pode ser utilizada quando não há tomografia de coronárias disponível.

Tabela 2: categorias de risco e metas de LDL

Categoria Critérios de Inclusão Meta LDL (mg/dl)
Muito alto risco Doença aterosclerótica (mesmo se assintomática)

Obstrução arterial ≥ 50%

< 50
Alto risco ERG ≥ 20% (homem) ou 10% (mulher) + LDL 70-189 mg/dl

Aterosclerose subclínica*

Aneurisma aorta abdominal

DRC (TFGe < 60 ml/min)

LDL ≥ 190 mg/dl

Diabetes 1 ou 2 + fatores de risco** ou aterosclerose subclínica

< 70
Risco intermediário ERG 5-20% (homem) ou 5-10% (mulher) + LDL 70-189 mg/dl

DM 1 ou 2 que não preencham critérios de alto risco

< 100
Baixo risco ERG < 5% (homem) ou < 5% (mulher) + LDL 70-189 mg/dl < 130

ERG: escore de risco global, obtido pela calculadora da SBC.
*Aterosclerose subclínica: placas na carótida e/ou espessamento médio-intimal; escore de cálcio > 100; índice tornozelo-braquial (ITB) < 0,9 e/ou placas aterosclerótica na angioTC coronárias.
**Fatores de risco no DM: idade ≥ 48 anos (homem) ou 54 anos (mulher); DM ≥ 10 anos; história familiar cardiopatia prematura; tabagismo; hipertensão; síndrome metabólica; retinopatia; microalbuminúria e/ou TFGe < 60 ml/min.

Assim parece simples. Mas na vida real surgiu um problema muito comum no Brasil: há milhares de pacientes tomando sinvastatina 20 mg/dia, do programa da farmácia popular, e com um LDL em torno de 100/130. Mantemos? Intensificamos? Para ajudar, a SBC adotou posição inédita, e recomenda um ajuste no escore de risco para quem já usa estatina: pegue o valor que saiu no resultado e multiplique o colesterol total por 1,43. A partir daí, recalcule o LDL e/ou o colesterol não-HDL e veja a categoria de risco. Aqui entra uma ressalva:

– Nova categoria de risco pior que a anterior: aumente estatina
– Nova categoria de risco melhor que a anterior: mantenha a dose atual! Não reduza a estatina! Pois é ela que está reduzindo o risco daquele paciente.

Leia também: Quando devo pensar em dislipidemias primárias? [vídeo]

Escolhendo o tratamento

Na diretriz brasileira de 2017, em relação ao tratamento, não há muitas novidades. A principal droga continua sendo a estatina. Há várias opções no mercado nacional, e a escolha dependerá da meta a ser atingida: quando mais longe da meta, maior a potência necessária.

Tabela 3: potência das principais estatinas do mercado brasileiro

Risco Redução a ser obtida no LDL Estatinas disponíveis (mg)
Muito alto > 50% Atorvastatina 40-80

Rosuvastatina 20-40

Alto > 50% Atorvastatina 40-80

Rosuvastatina 20-40

Intermediário 30-50% Atorvastatina 20-40

Rosuvastatina 5-10

Lovastatina 40

Sinvastatina 20-40

Pravastatina 40-80

Fluvastatina 80

Pitavastatina 2-4

Baixo* Até 30% Lovastatina 20

Sinvastatina 10

Pravastatina 10-20

Fluvastatina 20-40

Pitavastatina 1

*No baixo risco, é mantida a recomendação de tratamento não-farmacológico por 3 a 6 meses de definição individualizada dos riscos e benefícios do tratamento. A recomendação é tratar caso LDL persista > 160 mg/dl.

Nesta diretriz houve o ressurgimento do ezetimibe, que atua como inibidor da absorção de colesterol, também recomendado pelos americanos e europeus. E se o LDL permanecer acima da meta mesmo com a dose máxima tolerada de estatina? Neste caso, leia nossa reportagem sobre “o que fazer quando chegamos à dose máxima de estatina“, na qual a indicação dos inibidores de PCSK9.

A partir da classificação de risco, guiaremos o tratamento dos pacientes, que é feito em duas etapas, a primeira em que se inicia o tratamento e a segunda com foco na sua intensificação, visando atingir os alvos de LDL, PA e glicemia.
Pela diretriz europeia, a recomendação de tratamento de acordo com o LDL varia com a idade e há algumas recomendações específicas para diabéticos, pacientes com hipertrigliceridemia e com doença renal crônica.

– Pacientes com menos de 70 anos:

A meta de LDL para os pacientes de muito alto risco com menos de 70 anos e pacientes com DCV estabelecida deve ser < 55mg/dL, com redução de pelo menos 50% do valor inicial, a partir do uso de estatinas de alta potência na dose máxima tolerada. A meta para pacientes com alto risco é de 70mg/dL. Caso a meta não seja atingida com estatina, devemos associar ezetimiba.

Para prevenção secundária, caso a meta ainda não seja atingida pode-se usar inibidor de PCSK9, o que também pode ser indicado na prevenção primária, porém com nível de evidência menor. Caso o paciente não tolere o uso de estatina, deve usar ezetimiba ou inibidores do PCSK9.

Quando o paciente apresenta muito alto risco e hipertrigliceridemia, a medicação de escolha também é a estatina. Se o LDL estiver na meta e o triglicérides se mantiver > 200mg/dL pode-se indicar fenofibrato ou bezafibrato e nos de alto ou muito alto risco pode-se indicar o icosapentil.

– Pacientes com mais de 70 anos:

O tratamento com estatinas também é recomendado de acordo com o risco do paciente, sendo indicada nos casos de alto ou muito alto risco. Se o paciente apresentar disfunção renal ou houver risco de interação medicamentosa, a estatina deve ser iniciada em dose menor.

– Paciente com diabetes:

Pacientes de muito alto risco (com lesão de órgão alvo ou DCV estabelecida) tem meta de LDL < 55mg/dL, com redução de pelo menos 50% do valor inicial. Para pacientes diabéticos com mais de 40 anos e alto risco, a meta é < 70mg/dL. Estatina pode ser considerada em pacientes com menos de 40 anos com lesão de órgão alvo e LDL maior que 100mg/dL. Caso a meta não seja atingida, associa-se ezetimiba.

– Pacientes com DRC:

Quando apresentam aumento de triglicérides, LDL normal e HDL baixo e tem risco alto ou muito alto, devem usar estatina ou estatina associada a ezetimiba. Pacientes dialíticos não devem iniciar terapia com estatina, que deve ser mantida caso já estivesse em uso quando iniciada diálise.

Podemos observar que as diretrizes são bastante semelhantes entre si, com recomendações de estratificação do risco do paciente e indicação de tratamento com estatina para a grande maioria dos pacientes, seja guiada por metas ou apenas com a indicação do uso de estatina de alta potência.

Leia também: Usar estatina de potência moderada associada a ezetimibe tem o mesmo resultado que usar estatina de alta potência? 

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
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