O estigma relacionado ao transtorno por uso de álcool (TUA)

No último mês de maio de 2021, foi publicado um estudo cujo objetivo era avaliar o estigma relacionado ao transtorno por uso de álcool (TUA).

Ao longo da história da humanidade, várias doenças foram consideradas como estigmatizantes — muitas ainda o são. Na psiquiatria, os chamados “transtornos mentais” compõem um grupo de condições cujos pacientes sofrem hoje as consequências desse processo. Dentro desse grupo, podemos observar subgrupos de transtornos mais ou menos estigmatizados e que vêm sendo fonte de pesquisas.

No último mês de maio de 2021, foi publicado um estudo na Alcoholism Clinical and Experimental Research, cujo objetivo era avaliar o estigma relacionado ao transtorno por uso de álcool (TUA) e também relacioná-lo ao do transtorno por uso de outras substâncias (TUS) e a outros transtornos mentais.

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O estigma relacionado ao transtorno por uso de álcool (TUA)

Compreendendo a estigmatização

Primeiro é necessário entender os componentes do estigma. Os autores explicam que tudo surge a partir de um rótulo, do qual cria-se um estereótipo (geralmente vinculado a preconceitos), até finalmente chegar a um processo de isolamento social e discriminação. Ao se aprofundar um pouco na análise de cada parte do processo, podemos começar a refletir sobre o papel do diagnóstico como um rótulo.

O diagnóstico é necessário para o paciente e sua família, mas no caso do TUA, a classificação de um paciente como “alcoolista” pode carregar um significado por si próprio pejorativo, por exemplo. A partir desse rótulo, um padrão de crenças relacionadas pode surgir (ex: entender que esses pacientes são perigosos), o que chamamos de estereótipo, e, a partir daí, ao desenvolvimento de sentimentos negativos (como o medo). O sentimento de culpa muitas vezes também é observado (culpa por ter o transtorno e/ou por ser responsável por se curar). A partir daí, surge o preconceito.

Finalmente, tudo isso pode desembocar em situações de isolamento social (observados através de práticas de exclusão) e de discriminação. Embora os autores expliquem dessa maneira, é importante entender 2 coisas: 1. esse processo é muito mais dinâmico do que linear; 2. o paciente pode não perceber o que está acontecendo com ele no início, mas com o passar do tempo, esse processo tende a se tornar mais claro.

Características e achados do estudo

Dito isso, segue o estudo propriamente dito: uma revisão sistemática da literatura, realizada entre 2010 e 2020, usando 5 bases de dados muito conhecidas. Também foram feitas pesquisas adicionais junto a especialistas e com a utilização de listas de referências. Ao todo, foram analisados 16 estudos transversais com base populacional, sendo a maioria estudos europeus e norte-americanos, apesar de ter sido incluído 1 estudo brasileiro. Para mais informações sobre a metodologia, consulte o artigo original, cuja referência se encontra na bibliografia.

Passando para a análise, o primeiro ponto a ser destacado diz respeito à dificuldade das populações avaliadas em perceber o que poderia ser considerado como doença. Isso inclusive terá repercussão sobre outros tópicos da discussão. Resumindo, alguns estudos colocam que muitos de seus participantes tendem a compreender a esquizofrenia e o autismo como doenças, mas uma menor quantidade tem essa mesma percepção sobre o TUA. O tabagismo, por sua vez, possui mais chances de não ser considerado como uma doença ou mais como um hábito, uma questão comportamental. Esses resultados foram variados conforme os trabalhos (e talvez) conforme a sua região de origem.

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Outro ponto que pode fazer diferença é a forma como o transtorno é apresentado. Alguns estudos apresentaram diagnósticos ou rótulos, enquanto outros usaram vinhetas (que são descrições de pacientes com o transtorno). Em alguns dos estudos com vinhetas, a população mostrava-se mais propensa a perceber o TUA como doença do que nos artigos que apresentavam rótulos (como “alcoolismo”). Entretanto, nem todos os artigos observaram isso e diferenças metodológicas podem ter dificultado essa análise. Ainda assim, especula-se que ao pensar o TUA como uma doença mental (portanto, algo estável e tratável), este possa ser associado a menos culpa, ser capaz de gerar menos raiva nos outros ou se vincular em menor grau à crença de que se trata de uma questão de caráter; apesar de poder aumentar de medo e a exclusão decorrente. Entretanto, se for considerado como uma alteração comportamental, pode estar sujeito a mais moralismos e culpabilidade, por sua vez, gerando isolamento social e discriminação. Infelizmente ainda não há uma resposta sobre como diminuir essa tensão entre doença e comportamento.

Ainda nesse sentido, alguns dos artigos avaliados trazem que populações que percebem o TUA como uma doença ou como fruto de aspectos biológicos (genéticos e cerebrais), tendem a culpar menos os pacientes por duas condições, apresentando um menor grau de distanciamento. Por outro lado, podem associar a esses doentes um maior grau de periculosidade e, de maneira paradoxal, aumentar o distanciamento social. Já quando se avalia a relação com as adversidades na infância, parece haver uma maior percepção de periculosidade e maior distanciamento. Mas quando o TUA é relacionado a fatores estressantes atuais, a tendência a culpar o indivíduo, a percepção de perigo e o distanciamento parecem diminuir. No entanto, essas relações são complexas e precisam ser melhor esclarecidas.

Sumarizando outros aspectos avaliados (o quanto os pacientes com TUA eram percebidos como perigosos; responsáveis pelas suas condições; imprevisíveis; sendo indivíduos com problemas de caráter; passíveis de sofrer com discriminação e/ou isolamento e quanto à capacidade que o transtorno possui de gerar sentimentos negativos nos outros — ex: desconforto ou insegurança —, no geral, o que se observa é que os pacientes com TUA tendem a sofrer de forma mais negativa em cada um desses aspectos quando comparados a outros transtornos mentais (como a depressão), mas de uma forma igualmente negativa ou menos negativa do que outros transtornos (como a esquizofrenia). Além disso, alguns trabalhos pesquisaram a opinião da população sobre a distribuição de recursos voltados aos cuidados de diversos transtornos mentais. Para uma boa parte, outros transtornos mentais, como depressão ou doença de Alzheimer, deveriam ser priorizados frente ao TUA.

Outra análise feita diz respeito a uma avaliação sobre os padrões de estigma ao longo do tempo. Os estudos que abordaram esse ponto eram alemães ou norte-americanos. No geral, parece não ter ocorrido mudanças mais importantes nesses contextos desde os anos de 1990. Infelizmente, o TUA mantém-se como um dos transtornos mentais mais estigmatizados.

Em última análise, é possível perceber que os pensamentos e práticas estigmatizantes relacionados ao TUA estão difundidos nas populações, podendo ser mais relevantes do que o associado a outros transtornos mentais. Os pacientes com TUA muitas vezes são vistos como perigosos e, em algum grau, responsáveis pela sua condição, estando, por isso, mais sujeitos ao distanciamento social e mais suscetíveis a práticas discriminatórias. Também é possível que a forma e o grau com que isso ocorre esteja ligado a fenômenos culturais — que devem ser melhor avaliados.

Mensagem final

O artigo aqui discutido tem como mérito propor uma análise mais profunda sobre a importância de se discutir o estigma de maneira geral e, mais especificamente, do TUA. Entretanto, todos os pontos debatidos devem ser interpretados à luz das limitações que qualquer estudo oferece. Neste caso, o que os autores destacam diretamente como limitações são os diferentes tipos de vieses (perda de dados, de avaliação, de não resposta e de desejo social), a restrição à língua inglesa e aspectos relacionados à avaliação e screening dos trabalhos selecionados. Entretanto, ao longo do texto outras questões ficam evidentes, como a heterogeneidade do material avaliado (o que dificulta algumas comparações) e o fato de citar possíveis aspectos relacionados à cultura, sendo que diversas regiões não foram representadas ou foram sub-representadas (por exemplo, não há nenhuma artigo do continente africano e apenas 1 sul-americano).

Ainda assim, rever esse assunto e refletir sobre como isso impacta a vida dos pacientes é fundamental para que os profissionais de saúde pensem e trabalhem estratégias com seus pacientes e familiares para minimizar as consequências relacionadas. Isso é válido, sobretudo, para os transtornos mentais e, de maneira especial, para o TUA e o TUS, que muitas vezes não recebem a atenção e os cuidados necessários.

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Referências bibliográficas: 

  • Kilian C, Manthey J, Carr S, Hanschmidt F, Rehm J, Speerforck S, Schomerus G. Stigmatization of people with alcohol use disorders: An updated systematic review of population studies. Alcoholism Clinical and Experimental Research. 2021;45(5):899-911. doi: 10.1111/acer.14598

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