O que dizem os novos guidelines de tratamento da nefrite lúpica?

A nefrite lúpica (NL) é uma manifestação frequente do lúpus eritematoso sistêmico (LES), podendo acometer, clinicamente, até 40% dos pacientes.

A nefrite lúpica (NL) é uma manifestação frequente do lúpus eritematoso sistêmico (LES), podendo acometer, clinicamente, até 40% dos pacientes. Com o objetivo de atualizar suas recomendações previamente publicadas (2012), a European League Against Rheumatism (EULAR), em conjunto com a European Dialysis and Transplant Association (ERA-EDTA), publicaram um novo documento, incorporando novos dados da literatura.

médico segurando estetoscópio antes de tratar nefrite lúpica

Recomendações de nefrite lúpica

Os principais pontos apresentados nos guidelines serão elencados a seguir, de maneira resumida. Para os níveis de evidência, graus de recomendação e níveis de concordância, consulte o artigo original, referenciado ao final do texto.

Recomendações gerais

  • O tratamento da NL deve ser, preferencialmente, interdisciplinar e envolver a decisão compartilhada entre o médico assistente e o paciente;
  • Objetivos: sobrevida geral, preservação da função renal, prevenção de reativações da doença, prevenção de dano, controle das comorbidades e melhora na qualidade de vida;
  • O tratamento envolve uma fase de indução de remissão com uma terapia imunossupressora mais agressiva inicialmente, seguida de uma fase de manutenção de remissão com imunossupressores menos potentes, porém por período mais prolongado.

Investigação da suspeita de NL

  • Biópsia renal: considerar naqueles com evidência de lesão renal, especialmente se proteinúria persistentemente ≥500 mg/24 horas (ou relação proteína/creatinina persistentemente ≥500 mg/g na primeira urina da manhã);
  • A biópsia renal continua sendo o padrão-ouro para o diagnóstico e possui valor prognóstico, não podendo ser substituída por outros parâmetros clínicos ou laboratoriais.

Análise histopatológica

  • A classificação ISN/RPS de 2003 continua sendo a recomendada e deve ser associada com escores de avaliação de atividade e cronicidade e com a avaliação vascular, buscando indícios de síndrome antifosfolípide (SAF).

Indicações de tratamento imunossupressor

  • As classes III (proliferativa focal) e IV (proliferativa difusa), na presença de atividade (com ou sem cronicidade), associadas ou não à classe V, devem receber tratamento imunossupressor;
  • As classes V puras (membranosa) só devem receber terapia imunossupressora se a proteinúria estiver em níveis nefróticos ou se a relação proteína/creatinina for ≥1000 mg/g apesar do tratamento otimizado com bloqueadores do sistema renina-angiotensina-aldosterona.

Leia também: Covid-19: recomendações para o manejo de pacientes com doença reumatológica durante a pandemia

Alvos terapêuticos

Estabilização ou melhora da função renal, associada a:

  • 3 meses de tratamento: redução de 25% da proteinúria inicial;
  • 6 meses de tratamento: redução de 50% da proteinúria inicial;
  • 12 meses de tratamento: relação proteína/creatinina abaixo de 500-700 mg/g (resposta clínica completa).

Pacientes com proteinúria nefrótica podem necessitar de 6 a 12 meses adicionais para atingir resposta clínica completa. Nesses casos, não é necessário novo esquema de indução naqueles que estão com função renal estável e proteinúria em queda.

Esquema de indução

  1. Classes III e IV (associada ou não à classe V): micofenolato mofetil (MMF) 2-3 g/dia (ou equivalente de micofenolato sódico) ou ciclofosfamida em baixas doses (esquema EuroLupus – 500 mg EV a cada 2 semanas, total de 6 doses) associados a corticoterapia. Alternativa: MMF em baixas doses (1-2 g/dia) + inibidores da calcineurina (especialmente tacrolimus – TAC), particularmente em pacientes com proteinúria nefrótica. Se o paciente apresentar alto risco de falência renal (redução na TFG, presença de crescentes, necrose fibrinoide ou nefrite intersticial grave no histopatológico), considerar o uso de altas doses de ciclofosfamida (0,5-0,75 g/m2 EV mensal, por 6 meses).
  2. Corticoterapia associada: pulsoterapia com metilprednisolona (dose total 500-2500 mg, dependendo da gravidade), seguida de prednisona 0,3-0,5 mg/kg/dia ou equivalente por até 4 semanas e desmame (objetivo: dose de prednisona ≤7,5 mg/dia em 3 a 6 meses).
  3. Classe V pura: MMF 2-3 g/dia ou equivalente de micofenolato sódico + pulsoterapia com metilprednisolona (dose total 500-2500 mg, dependendo da gravidade), seguida de prednisona 20 mg/dia ou equivalente e desmame (objetivo: dose de prednisona ≤5 mg/dia em 3 meses). Alternativas: ciclofosfamida EV, inibidores da calcineurina (especialmente TAC) em monoterapia ou combinação MMF + inibidores da calcineurina (especialmente TAC) em monoterapia para pacientes em proteinúria nefrótica.
  4. Em todos os casos, associar hidroxicloroquina (HCQ) em doses ajustadas para função renal e, no máximo, 5 mg/kg/dia, a menos que haja contraindicações.

Terapia de manutenção

  • Após melhora inicial, o tratamento subsequente pode ser realizado com MMF 1-2 g/dia (especialmente se foi utilizada como droga de indução) ou azatioprina (AZA) 2 mg/kg/dia (especialmente se houver intenção de gestação futura), associados com prednisona 2,5-5 mg/dia;
  • O tratamento deve ser mantido por, pelo menos, 3 a 5 anos e sua retirada gradual pode ser considerada naqueles com resposta clínica completa. HCQ deve ser mantido a longo prazo;
  • Continuação, adição ou troca para inibidores da calcineurina (especialmente TAC) pode ser considerada em pacientes com classe V pura, mantidos na menor dose efetiva e após considerar seu efeitos nefrotóxicos.

Não respondedores/refratariedade:

  • Sempre checar adesão ao tratamento;
  • Naqueles que não respondem, trocar entre os esquemas de indução apresentados acima. Alternativa: rituximabe (RTX) 1 g nos dias 0 e 14.

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Tratamento adjunto

  • Se relação proteína/creatinina >500 mg/g ou hipertensão, acrescentar inibidores da ECA (IECA) ou bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA);
  • Estatinas devem ser utilizados conforme as recomendações atuais, baseadas em níveis séricos de lípides e risco cardiovascular estimado em 10 anos;
  • Prevenir osteoporose induzida por corticoide, conforme recomendações atuais;
  • Vacinar todos os pacientes com vacinas sem vírus vivo, como as contra influenza, hepatite B (se anti-Hbs <10), hepatite A (se IgG não reagente), tétano (dT ou dTpa), antimeningocócica e antipneumocócia);
  • Introduzir AAS naqueles com positividade para antifosfolípides (aPL), porém sem manifestações clínicas de SAF, pesando os riscos de trombose (perfil de aPL) e sangramento;
  • Se síndrome nefrótica e albumina <2 g/dL, considerar terapia anticoagulante;
  • Belimumabe pode ser acrescentado ao esquema terapêutico como estratégia de desmame de corticoide, controle de manifestações extra-renais e redução do risco de reativações do LES.

Monitorização do tratamento

  • Consultas: a cada 2-4 semanas pelos primeiros 2-4 meses de tratamento. Após, individualizar conforme gravidade e resposta;
  • Exames para cada consulta: hemograma completo, creatinina, albumina, relação proteína/creatinina ou proteinúria de 24 horas, EAS, sedimentoscopia de urina. Reduzir frequência após controle. Níveis de C3, C4 e anti-dsDNA devem ser monitorados periodicamente;
  • Nova biópsia renal: considerar em casos selecionados com piora de parâmetros de função renal, ausência de resposta as tratamentos propostos ou na recorrência. Serve para avaliar possível transição de classe histológica ou mudança nos escores de atividade e cronicidade, avaliar prognóstico e realizar diagnóstico diferencial com outras condições.

Manejo da doença renal crônica terminal

  • Qualquer tipo de terapia renal substitutiva (TRS) pode ser utilizado;
  • Imunossupressão em pacientes em TRS deve ser direcionada para as manifestações extrarrenais;
  • Dar preferência para o transplante renal, se possível, especialmente com doador vivo e transplante pré-emptivo. Idealmente, o paciente deve estar em remissão do LES por 6 meses;
  • Dosar aPL antes do transplante, visto que os aPL aumentam o risco de perda do enxerto por complicações vasculares.

SAF e NL

Considerar adição de AAS ou anticoagulação naqueles com nefropatia associada à SAF.

Gestação

  • A gestação pode ser planejada com 6 meses de remissão do LES, idealmente com relação proteína/creatinina <500 mg/g e TFG >50 mL/min;
  • Medicações que podem ser utilizadas durante a gestação: HCQ, prednisona, AZA, inibidores da calcineurina (preferência pelo TAC);
  • MMF (ou micofenolato sódico) devem ser substituídos por alguma medicação segura 3 a 6 meses antes da gestação, com o objetivo de avaliar se o tratamento instituído é capaz de manter a doença inativa;
    Indicar AAS para prevenção de pré-eclâmpsia;
  • As reativações devem ser tratadas preferencialmente com as medicações consideradas seguras na gestação.

População pediátrica

  • NL é mais frequente e mais grave nessa população;
  • O tratamento é feito de maneira semelhante à população adulta (com ajustes de dose);
  • É importante um programa de transição ao transferir os cuidados do reumatologista pediatra para o reumatologista de adultos.

Mais do autor: Tabagismo e o risco de desenvolvimento de vasculites associadas ao ANCA

Comentários

As recomendações foram apresentadas de maneira bastante didática e divididas por domínios no documento oficial, o que facilita a identificação das informações e sua aplicação. Várias recomendações foram mantidas de maneira bastante semelhantes às previamente publicadas, em 2012. No entanto, alguns pontos merecem destaque.

Dentre eles, podemos citar que foram incorporados esquemas com inibidores da calcineurina e esquemas “multitarget” na indução dos pacientes com NL, além de deixar os objetivos terapêuticos mais claros. Os melhores desfechos renais são obtidos com proteinúrias <800 mg após 12 meses de tratamento, o que passou a ser considerado como resposta clínica completa (proteinúria <500-700 mg após 12 meses de tratamento).

Outro dado importante é que os pacientes com maior tempo de imunossupressão apresentam melhores desfechos, devido ao menor risco de reativação. Desse modo, a manutenção de imunossupressores por períodos mais prolongados (no mínimo 3-5 anos de imunossupressão) do que os propostos anteriormente (no mínimo 3 anos) tem sido preconizados nesses guidelines.

Concluindo, trata-se de um documento importante a respeito do tratamento da NL, que apresenta importantes atualizações em relação ao seu antecessor.

Referências bibliográficas:

  • Fanouriakis A, Kostopoulos M, Cheema K, et al. 2019 update of the Joint European League Against Rheumatism-European Dialysis and Transplant Association (EULAR/ERA-EDTA) recommendations of lupus nephritis. Ann Rheum Dis 2020. Published Online First: 27 March 2020. doi: 10.1136/annrheumdis-2020-216924.
  • Bertsias GK, Tektonidou M, Amoura Z, et al. Joint European League Against Rheumatism and European Renal Association-European Dialysis and Transplant Association (EULAR/ERA-EDTA) recommendations for the management of adult and paediatric lupus nephritis. Ann Rheum Dis 2012;71:1771-82.

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