O que há de novo na III Diretriz de Avaliação Cardiovascular Perioperatória

Esse mês a Sociedade Brasileira de Cardiologia atualizou sua diretriz de medicina perioperatória. O texto traz uma revisão dos principais pontos a serem avaliados antes e após uma cirurgia não cardíaca.

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Esse mês a Sociedade Brasileira de Cardiologia atualizou sua diretriz de medicina perioperatória. O texto traz uma revisão dos principais pontos a serem avaliados antes e após uma cirurgia não cardíaca.

É importante lembrar que a SBC tem uma outra diretriz recente focada nas cirurgias vasculares e que esta “continua valendo”. O primeiro ponto é que o texto se diz focado agora na visão do cardiologista. Isso porque o “risco cirúrgico”, ou melhor, a avaliação clínica pré-operatória é uma área do conhecimento compartilhada por mais de uma especialidade.

Na medicina privada, o modelo predominante é a marcação com o cardiologista, que registra o ECG na própria consulta. É até difícil marcar um ECG isolado em clínicas. Já nas instituições públicas e universitárias, a anestesiologia e a clínica médica estão muito presentes. A SBC deixa claro desta vez que o documento é apenas uma visão do assunto, não esgotando tudo, em especial o manejo per-operatório, de domínio da anestesio.

Outro aspecto bem legal é que o novo texto está alinhado com nosso especial sobre risco cirúrgico e se você não o leu ainda, faça-o agora, pois as atualizações que trazemos aqui estão diretamente ligadas à nossa publicação.

A avaliação clínica perioperatória começa com o tripé: cirurgia proposta, condições clínicas do paciente e capacidade funcional.

A CIRURGIA

A grande novidade é avaliação do risco global do paciente na cirurgia, além das complicações cardiovasculares. A Diretriz recomenda a excelente calculadora americana ACS NSQIP® Surgical Risk Calculator. Mesmo não tendo sido validada no Brasil, é bem útil como estimativa global.

Outro aspecto interessante é uma descrição individualizada de cenários cirúrgicos especiais. Além do documento de cirurgia vascular, publicado anteriormente, a Diretriz atual destaca três situações de maior risco para complicações:

CAPACIDADE FUNCIONAL

É reforçada a importância da avaliação da capacidade funcional (CF) e das razões para uma possível limitação. Pacientes com CF > 4 METs apresentam o melhor prognóstico, mas o valor não deve ser encarado como “tudo ou nada”, mas sim um contínuo, onde pior capacidade está relacionada com pior desfecho na cirurgia. Um ponto importante foi a implementação de uma tabela com perguntas a serem feitas ao paciente e sua correlação com os METs.

Tabela 1: questionário para Avaliação da Capacidade Funcional

Cuidar de si mesmo: vestir-se, alimentar-se, tomar banho? 2,75
Caminhar uma quadra ou duas, no plano? 2,75
Subir um lance de escadas ou caminhar em uma subida? 5,50
Correr uma distância curta? 8,0
Fazer trabalhos leves em casa, como juntar o lixo ou lavar a louça? 2,7
Fazer trabalhos moderados em casa, como passar o aspirador de pó, varrer o chão ou guardar/carregar mantimentos? 3,5
Fazer trabalhos pesados em casa, como esfregar/lavar o piso, ou levantar ou deslocar móveis pesados? 8,0
Fazer trabalhos no jardim/quintal, como usar o rastelo, juntar folhas ou usar a máquina de cortar grama? 4,5
Ter atividade sexual? 5,25
Participar de atividades recreacionais moderadas, como jogar boliche, dançar, jogar tênis em dupla? 6,0
Participar de atividades esportivas, como natação, ou tênis individual, ou futebol? 7,5

Adaptado de: Gualandro DM, Yu PC, Caramelli B, Marques AC, Calderaro D, Luciana S. Fornari LS et al. 3a Diretriz de Avaliação Cardiovascular Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Arq Bras Cardiol 2017; 109(3Supl.1):1-104.

O PACIENTE

Outro aspecto é a avaliação dos pacientes com mais de 65 anos, no qual a avaliação da fragilidade é fundamental para estimar o prognóstico. Idosos com menor mobilidade e atividade, mesmo na ausência de um risco cardiológico específico, apresentam pior prognóstico. É só imaginar o cenário: idoso, 80 anos, hipertensão sistólica isolada leve; portador de Alzheimer, passa a maior parte do dia na cama e depende da ajuda de terceiros para alimentação e higiene. Qual o risco de realizar uma colectomia por câncer? Certamente, infecção no pós-op, delirium, TVP e fístulas estão no “top 10” das complicações previstas e uma avaliação meramente da saúde cardiovascular pode não ser capaz de estimar.

Apesar de haver várias escalas para estimar a fragilidade, é recomendado o Teste de Mobilidade (Timed Up and Go Test). Solicita-se para o paciente levantar de uma cadeira, andar 3 m para frente, retornar e se sentar de volta na cadeira. O resultado é considerado ruim quando o tempo do teste ≥ 20 segundos, sendo que ≥ 15 segundos está associado com complicações no pós-operatório e com mortalidade aumentada em 1 ano!

Outro aspecto importante é na escolha dos exames laboratoriais. Se antes havia a recomendação “que o ECG faz parte do exame físico”, desta vez a diretriz incorpora conceitos modernos nos quais pacientes em cirurgias simples, jovens (leia-se até 40 anos) e sem comorbidades não necessitam de exames complementares. Aqui em nosso texto, de cunho prático, não cabe listar uma a uma das indicações de cada exame, mas na diretriz há tabelas bem completas de quando solicitar ou não os exames. Se você precisar de ajuda para decidir, não esqueça de consultar nosso Whitebook! De modo geral, os principais pontos sobre exames complementares são:

  • ECG e rotina laboratorial (hemograma, coagulograma e bioquímica): pacientes > 40 anos e/ou com comorbidades e/ou cirurgias de médio ou grande porte (obs: a obesidade é considerada comorbidade na diretriz).
  • Catarata: cirurgia considerada segura mesmo em pacientes com muitas comorbidades. A diretriz cita três estudos mostrando que não são necessários exames pré-operatórios! E mais, esta seria uma das poucas cirurgias oftalmológicas que podem ser realizadas sob vigência de antiplaquetárias ou de varfarina, desde que INR na faixa terapêutica!
  • A troponina ultrassensível e o BNP podem ser utilizados de forma complementar para estimar o risco cardiovascular. Valores acima do percentil 99 para a população indicam um paciente com maior risco de complicações no pós-operatório.

ALGORITMOS

Como você leu em nosso especial de risco cirúrgico, após a avaliação do paciente, de sua capacidade funcional e da cirurgia proposta, é hora de reunir as informações. Em pacientes sem angina ou sintomas respiratórios, os algoritmos são uma boa alternativa para estimar o risco cardiovascular e determinar se há necessidade de testes complementares, em especial provas funcionais para isquemia. A nova Diretriz ratifica o papel do índice de risco cardíaco modificado (IRCM ou algoritmo de Lee ou índice de risco cardíaco revisado IRCR) como instrumento de uso fácil e bom para cirurgias não cardíacas, lembrando que este índice tem um modelo separado para cirurgias vasculares. Como alternativa ao IRCM, a Diretriz propõe o modelo da ACP (American College of Physicians) ou o Estudo Multicêntrico De Avaliação Perioperatória (EMAPO), desenvolvido no Brasil e disponível no software de consultório digital da SBC, porém de pouca divulgação ainda no dia-a-dia. Para uso prático, por motivos já expostos no nosso especial sobre risco cirúrgico, entendemos que o IRCM é de uso mais simples no dia-a-dia.

ESTRATÉGIAS FARMACOLÓGICAS

Mais uma vez, o texto está alinhado com nossa publicação anterior. As principais novidades são:

  • Apesar dos estudos recentes, os autores não recomendam a suspensão rotineira de iECA/BRA no dia da cirurgia, devendo a decisão ser individualizada.
  • Os betabloqueadores mantêm a mesma recomendação anterior, mas é ratificado a importância do início > 1 semana antes da cirurga e a titulação da dose a fim de obter FC entre 55 – 65 bpm.
  • Em função do resultado do estudo POISE-2, a clonidina deixou de ser recomendada como opção ao paciente intolerante ao betabloqueador para prevenção de eventos cardiovasculares.

Antiagregantes plaquetários e anticoagulantes

Com a epidemia de FA e a indicação de dupla antiagregação prolongada em pacientes pós-SCA e/ou com stent farmacológico, é cada mais mais comum a situação de pacientes necessitarem de intervenção cirúrgica quando em uso de AAS, clopidogrel (e outros inibidores P2Y12), varfarina e NOACs. O que fazer?

A importância da manutenção é no paciente que faz profilaxia secundária, isto é, já teve um evento cardiovascular, como IAM ou AVC, principalmente se possuir um stent coronariano. Já nos casos de profilaxia primária, mantém-se a recomendação anterior, baseada no estudo POISE-2, que não há benefício na manutenção do AAS. Pacientes com stent farmacológico há menos de 6 a 12 meses e pacientes com SCA há menos de um ano apresentam alto risco na suspensão da dupla antiagregação e só devem realizar procedimentos cirúrgicos de urgência, inadiáveis. Para eles, é necessária avaliação individualizada, evitando-se a suspensão ou realizando-a pelo menos tempo possível. Para as demais situações, no documento há orientações para cada situação e separamos aqui as dúvidas mais frequentes:

Dermatologia Todos procedimentos ambulatoriais Manter AAS

Considerar suspender iP2Y12 se associado ao AAS

Manter varfarina se INR 2,0-3,0

Endoscopia Alto rico sangramento:

Polipectomia

Esfincterectomia

Gastrostomia

Biópsia guiada por US endoscópico

Considerar manter AAS

Suspender iP2Y12

Suspender anticoagulantes

Baixo risco sangramento:

Procedimentos diagnósticos

CPRE com stent biliar

Manter AAS

Considerar suspender iP2Y12

Manter varfarina se INR 2,0-3,0

Odontologia Procedimentos “simples”:

Extração até 3 dentes

Cirurgia gengival

Raspagem periodontal

Manter AAS

Considerar suspender iP2Y12

Manter varfarina se INR 2,0-3,0

Oftalmologia Alto risco sangramento:

Glaucoma

Vitrectomia

Considerar manter AAS

Suspender iP2Y12

Suspender anticoagulantes

Baixo risco sangramento (catarata) Manter AAS

Considerar suspender iP2Y12

Manter varfarina se INR 2,0-3,0

Urologia RTU com nova tecnologia hemostática green-light laser Manter AAS
Neurocirurgia Todas Suspensão antiagregantes e anticoagulantes

Profilaxia para endocardite

Na década passada, a Europa e os EUA lideraram um processo para restringir o uso de antibióticos profiláticos na prevenção da endocardite. O argumento é que há exposição a riscos de eventos adversos e resistência bacteriana para um benefício muito pequeno. O problema é que no Brasil a SBC mantém a posição anterior de recomendar a profilaxia para a maioria das situações. A justificativa é que nosso perfil de valvopatia, predominantemente reumática, e a saúde bucal do brasileiro são diferentes dos modelos internacionais e nosso risco de endocardite seria, portanto, maior.

CONTROLE GLICÊMICO

O importante é controlar a hiperglicemia evitando a hipoglicemia. O texto não traz um valor de glicose que contra-indique a cirurgia e mantém parâmetros semelhantes aos recomendados em nossa reportagem; a sugestão é tentar manter glicada < 9% e glicemia < 212 mg/dl antes da cirurgia. A grande novidade é a recomendação de um aplicativo desenvolvido pela USP, o InsulinAPP, para ajudar a planejar o esquema de insulina e monitorização glicêmica no pré, per e pós-operatório.

CORTICOIDE

O manejo da insuficiência adrenal e sua profilaxia ainda são temas controversos na literatura. No texto da SBC, a recomendação é realizar a reposição perioperatória de corticoide nas seguintes situações:

  • Uso de > 20 mg ao dia de prednisona ou equivalente por qualquer tempo
  • Clínica de síndrome de Cushing
  • Uso de prednisona > 5 mg por mais de 21 dias nos últimos 6 a 12 meses
  • Uso de prednisona ≤ 5 mg administrada à tarde sem respeito ao ritmo circadiano
  • Budesonida inalatória
  • Dose máxima de corticoide inalatório em crianças
  • Corticoide tópico potente, uso em face e genitália, áreas extensas
  • Tratamento com oclusão e alterações de barreira da pele, por exemplo, psoríase
  • Aparência cushingoide, como pele frágil, hematomas, giba, hipertensão arterial, telangectasias e face em lua cheia

Uma vez indicado, as doses seriam:

  • Cirurgia pequena: manter dose habitual ou dobrar dose no dia da cirurgia
  • Cirurgia médio porte: 50 mg na indução anestésica; considerar 25 mg 8/8h por 24h
  • Cirurgia grande: 50-100 mg na indução anestésica e 50 mg 6/6h ou 100 mg 8/8h por 24h

Um detalhe: neste trecho da diretriz, o texto corrido e as tabelas trazem informações um pouco divergentes, de modo que o esquema acima é um compilado das opções fornecidas.

PÓS-OPERATÓRIO

A maior parte dos eventos cardiovasculares ocorre nas primeiras 72h após a cirurgia. Por isso, em pacientes de alto risco, deve-se monitorar o ECG e a troponina neste período, mesmo se assintomático, pois a analgesia pode mascarar a dor precordial. Um desafio comum nesse cenário é diferenciar a elevação da troponina por causa isquêmicas daquelas relacionadas a outras agressões cardiovasculares. Nossa reportagem sobre troponinas pode ser útil nessa situação!

Hemotransfusão: é recomendado limiar de 7 g/dl para pacientes em geral e de 8 g/dl para cardiopatas.

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