O que temos de novo na diretriz brasileira para tratamento de alergia ocular?

Foi publicado um guideline brasileiro com o objetivo de orientar o monitoramento e tratamento de alergia ocular em crianças e adolescentes.

A prevalência de condições alérgicas tem aumentado, provavelmente relacionada a predisposição genética combinada com fatores ambientais (como comida, alérgenos e poluição). Os dados brasileiros mostram uma prevalência de rinoconjuntivite de 15 a 28%. Mais de 44% das crianças asmáticas com menos de 14 anos tem pelo menos um sintoma ocular, apesar de apenas 1/3 terem diagnóstico de conjuntivite alérgica. É, portanto, uma condição subdiagnosticada com  importante impacto na qualidade de vida. Foi publicado um guideline brasileiro com o objetivo de orientar o monitoramento e tratamento dessa alergia ocular em crianças e adolescentes. A diretriz foi desenvolvida considerando a literatura e a experiência clínica do comitê de especialistas da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica (SBOP). Foram revisados 56 estudos.

O que temos de novo na diretriz brasileira para tratamento de alergia ocular

Fisiopatologia

A fisiopatologia da alergia aguda é predominantemente pela inflamação que depende de IgE. A alergia ocular crônica envolve a atividade de células inflamatórias e produção de citocinas. Ocorre em dois estágios: a ativação das células de langerhans que apresentam o antígeno para os linfócitos T helper, que produz interleucinas que estimulam linfócitos B; a interação entre alérgeno e IgE específico determina a degranulação de mastócitos com produção de mediadores inflamatórios.

A conjuntivite alérgica é classificada em seis tipos: sazonal, perene, ceratoconjuntivite atópica, vernal e conjuntivite papilar gigante. A conjuntivite sazonal é a mais prevalente (afetando 22% da população). Na sazonal os sintomas duram menos de 4 semanas. A conjuntivite perene tem sinais que duram mais de 4 dias na semana e mais de 4 semanas consecutivas. O paciente se apresenta com prurido, hiperemia, reação papilar, lacrimejamento e edema palpebral.

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A ceratoconjuntivite atópica é grave e crônica e geralmente afeta homens de 30 aos 50 anos. Está associada a dermatite atópica em 100% dos casos. Os achados são hiperplasia do limbo, nódulos de Horner Trantas e hipertrofia papilar na conjuntiva tarsal inferior.

A ceratoconjuntivite vernal é uma forma rara e grave de alergia que ocorre na primeira década em aproximadamente 80% dos pacientes com predominância leve em homens. Associações com outras atopias ocorrem em 50% dos casos. Achados típicos incluem papilas gigantes, nódulos de Horner Trantas no limbo e úlceras em escudo. A conjuntivite papilar gigante é induzida por irritação mecânica de lentes de contato, prótese ocular e sutura ocular. Pode se apresentar como uma alteração proliferativa na conjuntiva palpebral superior.

Diagnóstico e tratamento

O diagnóstico da alergia ocular é baseado na história pessoal e familiar de atopia, sintomas, sinais e testes adicionais. Alergia ocular está associada a rinite alérgica em 97% das crianças, asma em 56% e dermatite atópica em 33%. É geralmente bilateral com prurido, lacrimejento e queimação. No exame ocular podemos ver secreção mucoaquosa, edema palpebral, quemose, hipertrofia papilar na conjuntiva palpebral, hiperemia conjuntival, nódulos límbicos, ceratite e envolvimento corneano.

O tratamento inicial da alergia ocular consiste em medidas não farmacológicas que minimizem o contato entre o alérgeno e a conjuntiva. Elas incluem a eliminação da poeira, fungo e pólen. Além disso as compressas frias e o uso de lubrificantes artificiais sem conservantes é interessante. Se forem insuficientes, o tratamento tópico é iniciado com anti-histamínicos, estabilizadores de mastócitos, drogas de ação múltipla, anti-inflamatórios não esteroidais e corticoides.

Imunoterapia sistêmica específica contra o alérgeno pode suprimir ou regular a resposta imune. A imunoterapia controla sintomas e retarda a progressão da doença alérgica. A primeira geração de antihistamínicos tópicos bloqueia o receptor H1 mas são pouco tolerados e tem efeito e potência limitados (grau de recomendação D). Sua combinação com vasoconstrictores aumenta seu efeito terapêutico mas pode dar hiperemia rebote e taquifilaxia. Seu uso a longo prazo não é recomendado e essas medicações devem ser usadas com cautela em pacientes com Glaucoma, hipertireoidismo e doença cardiovascular (grau de recomendação D).

Estabilizadores de membrana de mastócitos agem inibindo a degranulação dos mastócitos. Esses agentes podem ser administrados a cada 6-8 horas por pelo pelo menos 2 semanas (grau de recomendação A). Agentes de ação múltipla atuam como estabilizadores de mastócitos, antagonistas dos receptores seletivos H1 (olopatadina e cetotifeno) e moduladores da atividade antiinflamatória dos eosinófilos. A epinastina atua nos receptores H1 reduzindo o prurido e nos receptores H2 reduzindo a vasodilatação enquanto outros como a alcaftadina também bloqueiam receptores H4. Os agentes com ação múltipla têm efeitos imediatos e de longa duração e são comprovadamente mais efetivos que a fluorometolona no tratamento da conjuntivite sazonal (grau de recomendação A).

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Anti-inflamatórios não esteroidais tópicos bloqueiam a via da cicloxogenase e portanto a síntese de prostaglandinas e tromboxanos. Essas drogas têm eficácia contra a hiperemia e o prurido ocular (grau de recomendação A). Cetorolaco é aprovado para o tratamento da conjuntivite alérgica mas é menos efetivo que olopatadina e emedastina. O uso de AINE tópico em criança também é limitado pela ardência ocular.

Corticoides interferem com a síntese de proteína intracelular e bloqueio da fosfolipase A2 (que forma ácido aracdônico). Também atuam inibindo a produção de citocinas e migração de células inflamatórias. Os corticoides tópicos não são considerados terapia de primeira linha para conjuntivite alérgica apesar de drogas de baixa concentração (fluorometolona, loteprednol e rimexolona) poderem ser usadas para tratar a inflamação moderada. Nas inflamações graves as escolhas são a dexametasoma e a prednisolona (grau de recomendação B) em alta frequência (a cada 2-4 horas) por curtos períodos (3-4 semanas). Os efeitos adversos potenciais devem ser monitorados (aumento da pressão intraocular, catarata e ceratite).

Pacientes com ceratoconjuntivite grave, conjuntivite papilar gigante, envolvimento límbico e úlcera de córnea recorrente podem ter necessidade de injeção supratarsal de corticoide como tratamento adjuvante. Colírios de imunomoduladores (ciclosporina ou tacrolimus) tem efeitos equivalentes ou melhores a longo termo que o corticoide. A ciclosporina A tem efeito anti-inflamatório e imunomodulador inibindo a atividade do NF-kB, sendo disponível como colírio a 0,05% e usado de 2-4 vezes ao dia. O tacrolimus age inibindo a proliferação de mastócitos e degranulação e reduzindo a produção de citocinas pelo linfócito T (com maior potência que a ciclosporina A). É prescrito como pomada 0,02%- 0,03% ou colírio 0,03%-0,1% administrados 2-4x ao dia.

A primeira geração de anti-histamínicos H1 não é recomendado por causa do efeito sedativo e atividade anticolinérgica. Drogas de segunda geração (desloratadina, ebastina, loratadina e rupatadina) têm eficácia similar porém com menos efeitos adversos e sedação (grau de recomendação B). Geralmente são administradas para controle dos sintomas nasais e oculares da rinoconjuntivite.

Em relação a imunoterapia, altas doses de alérgenos induzem um desvio da resposta imune em favor de linfócitos Th1, com a formação de interferon gama e produção de células T regulatórias. A OMS recomenda imunoterapia específica para alérgenos como uma abordagem efetiva em pacientes com doenças alérgicas como a rinoconjuntivite e a asma. Pode ser administrada sublingual ou subcutânea, induzindo tolerância ao alérgeno em curto e longo prazo. Além disso, melhora sintomas oculares em pacientes com rinoconjuntivite alérgica mesmo após a parada do tratamento. Produz uma redução de 63% da necessidade de medicação em pacientes com rinoconjuntivite ou conjuntivite sazonal, mas não em pacientes com conjuntivite perene (grau de evidência A).

A imunossupressão sistêmica com imunomoduladores pode ser uma opção para casos graves refratários ao tratamento tópico para evitar o uso de corticoides sistêmicos e seus efeitos adversos. Tanto o tacrolimus quando a ciclosporina agem inibindo a calcineurina, que geralmente ativa o fator nuclear e causa proliferação e ativação de células T. A inibição da calcineurina inibe a produção e ativação de citocinas pelas células T e o processo inflamatório crônico. Um mínimo de 12 semanas de terapia com ciclosporina sistêmica na dose diária de 3 a 5 mg/kg pode ser benéfica no tratamento da dermatite atópica. O critério primário para o diagnóstico clínico da ceratoconjuntivite atópica é uma forma específica de conjuntivite crônica com ceratite em associação com dermatite atópica e eczema. Dessa forma, a ceratoconjuntivite é uma doença sistêmica com manifestação ocular e essa é a razão do uso da imunossupressão sistêmica com ciclosporina A.

Os anticorpos monoclonais são usados no controle de doenças alérgicas e também como alternativa nas alergias oculares. O anticorpo monoclonal anti IgE amalizumab, que é indicado para o tratamento da asma e urticária crônicas, também demonstrou ter efeito apesar de incompleto, no controle da ceratoconjuntivite vernal grave. O anti Il4 dupilumab, indicado para dermatite atópica, asma grave e rinosinusite crônica, também pode ser benéfico no tratamento da conjuntivite alérgica.

O tratamento cirúrgico na conjuntivite alérgica inclui a ceratectomia superficial para úlceras/placas em escudo; a excisão de papilas gigantes associada com recobrimento conjuntival, de mucosa oral ou transplante de membrana amniótica; a cirurgia reconstrutora com transplante de células tronco límbicas. A intervenção cirúrgica é reservada para pacientes com doença ameaçadora à visão, caracterizada pela presença de grandes papilas, úlceras em escudo ativas/extensas e deficiência de células tronco limbares com extensa conjuntivalização. Geralmente são refratários à terapia farmacológica e precisam ser monitorados para complicações como infecção, opacidade de córnea permanente, catarata e glaucoma.

O guideline usou o critério de controle baseado na presença de sintomas oculares dentro de 2 semanas da avaliação, o escore VAS e o exame oftalmológico, com hiperemia ocular graduada de acordo com a escala de efron. O controle era alcançado quando o paciente não tinha sintomas (prurido, lacrimejamento e desconforto visual) ou quando esses sintomas não geram desconforto ou estão presentes no máximo 2 dias na semana. No escore VAS o paciente escolhe uma pontuação na escala de 0 a 10 que melhor corresponde a gravidade dos sintomas. A conjuntivite alérgica é considerada controlada se o escore é menor que 5. No exame foi considerada controlada se a hiperemia na escala de efron era 0 ou 1. O guideline estabeleceu um algoritmo de classificação e tratamento da conjuntivite alérgica.

  • Monitorização: casos leves — rever a cada 4 semanas e manter tratamento até melhora dos sintomas; casos moderados intermitentes ou perene — rever a cada 4 semanas ( se controlados tratar 4 semanas e considerar suspender colírios; se não controlados tratar como casos graves). Considerar corticoide leve nos casos de envolvimento corneano leve. Considerar imunoterapia específica em casos persistentes ou com outras manifestações). Casos graves — rever a cada 2 semanas. Se controlados diminuir corticoide a cada 3 dias. Se não controlados rever o diagnóstico. Considerar terapia com biológicos e imunoterapia específica.

Referências bibliográficas:

  • Ronconni CS, et al. Brazilian guidelines for the monitoring and treatment of pediatric allergic conjunctivitis. Diretrizes brasileiras sobre o monitoramento e tratamento da conjuntivite alérgica pediátrica. Arq. Bras. Oftalmol. 2021 Nov. doi: 10.5935/0004-2749.20220053

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