O uso da corticoterapia na Covid-19: resultados do ensaio clínico com dexametasona

O estudo comparou os efeitos do uso de doses baixas de dexametasona por dez dias por 2.104 pacientes com Covid-19 em centros hospitalares no Reino Unido.

A nova e atual pandemia mundial denominada Covid-19, síndrome respiratória associada ao novo coronavírus SARS-CoV-2, tem desafiado profundamente pesquisadores e profissionais de saúde quanto à decisão sobre o melhor esquema terapêutico para limitar ou prevenir a evolução a temida “tempestade de citocinas” (“cytokine storm”), que pode conduzir à síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), com consequente hipoxemia silenciosa, insuficiência respiratória e ao óbito dos pacientes infectados.

A heterogeneidade da resposta imune pró-inflamatória na Covid-19 entre os indivíduos infectados com SARS-CoV-2, associada a prognósticos distintos, geralmente pior em idosos (“inflame-aging”) e em indivíduos com comorbidades, tem profundamente intrigado a comunidade científica. Os imunotipos descritos tem sido alvo de estudos moleculares diversos no intuito de compreender a fisiopatologia e possivelmente prever quais indivíduos tem a maior probabilidade de progredir para SARA, sepse, disfunção orgânica, consequentemente com pior evolução clínica (Mathew et al., 2020, Meftahi et al. 2020).

As suposições iniciais sobre o uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINES) ou corticoides para o tratamento surgiram ainda durante o início da epidemia na China, e foram baseadas inicialmente na literatura científica relacionada às epidemias anteriores por outros coronavírus, SARS-CoV e MERS-Cov (Severe acute respiratory syndrome – SARS, e Middle East respiratory syndrome – MERS), que ocorreram em 2002-2003 e 2012, respectivamente. As publicações sugeriram que o uso precoce desses medicamentos poderiam favorecer a replicação viral e resultar em pior prognóstico.

Corticoterapia na Covid-19

Os primeiros artigos sobre o assunto, publicados até fevereiro de 2020 em revistas científicas internacionais, divulgaram resultados que contraindicavam o uso de AINES ou corticoides para o tratamento precoce de Covid-19 de forma a impedir a evolução da doença para quadros respiratórios de maior gravidade. E tais contraindicações foram prontamente adotadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em guideline divulgado em 28 de janeiro de 2020.

Russell, Millar & Baillie (2020), por exemplo, publicaram na revista Lancet uma revisão baseada nos estudos prévios com influenza, vírus sincicial respiratório, SARS-CoV e MERS-CoV com diversas conclusões negativas sobre o uso de corticoides, incluindo complicações endócrinas, psicose, aumento da mortalidade e outros. A mesma publicação reforçava que mesmo na vigência de SARA ou mesmo no choque séptico, haveria evidências insuficientes para recomendar o uso de corticoterapia para pacientes críticos.

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Também na Lancet, em semanas posteriores, Shang et al. (2020) questionaram a forma de revisão realizada pela publicação anterior e suas conclusões não adequada, e contribuiu para manter a questão do uso de corticoterapia como controversa, a ser esclarecida por novos ensaios clínicos. Os mesmos definiram o uso de corticosteroides como uma possível “faca de dois gumes” para o tratamento Covid-19, descrevendo os possíveis prós e contras (Lu et al., 2020), já que indivíduos com imunodeficiências específicas podem apresentar melhor prognóstico).

Com a progressão dos estudos clínicos sobre os esquemas terapêuticos para a Covid-19, divulgados entre março e abril de 2020, surgiram maiores evidências que favoreceram os benefícios da corticoterapia para doentes críticos graves com SARA em ventilação mecânica, sendo sustentado por Yang et al. (2020), pela Surviving Sepsis Campaign (2020) e outros protocolos institucionais.

Em março, por exemplo, Russell et al (2020) criticaram as conclusões premeditadas adotadas pela OMS sobre a exclusão do uso de AINES e de corticoterapia baseadas em estudos prévios com abordagens questionáveis. Tais autores inclusive sugerem o uso de corticoides em indivíduos não submetidos à intubação orotraqueal-ventilação mecânica.

Novo ensaio clínico com dexametasona

Esta semana, foram divulgados os resultados preliminares de um ensaio clínico randomizado importante, realizado pelo grupo RECOVERY (Randomised Evaluation of Covid-19 Therapy). O estudo comparou os efeitos do uso de doses baixas de dexametasona (6 mg por via oral ou parenteral) por dez dias por 2.104 pacientes com Covid-19 em múltiplos centros hospitalares (n 0 175) no Reino Unido, com 4.321 pacientes submetidos ao tratamento usual adotado até o momento no país.

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O uso de dexametasona diminuiu a mortalidade em 1/3 dos doentes sob ventilação mecânica, e 1/5 entre pacientes sob oxigenioterapia não invasiva. Não houve diferença entre os pacientes que não necessitaram de suporte ventilatório. Baseado nesses resultados, uma morte seria prevenida a cada oito doentes com Covid-19 grave sob ventilação mecânica ou em 25 pacientes com necessidade de oxigenioterapia.

O pesquisador Dr. Peter Horby, um dos líderes do estudo, ressalta que que a dexametasona consiste na primeira droga que apresenta efeito benéfico à sobrevida de pacientes com Covid-19 que necessitam de suporte complementar de oxigênio. Há efeito direto na redução da mortalidade, o que clareia as possibilidades de aperfeiçoamento dos esquemas terapêuticos para prevenir complicações pela infecção viral.

Conclusões

Ainda permanece sob investigação o uso precoce ambulatorial de corticoide em doses não elevadas para pacientes infectados com SARS-CoV-2, como sugerido por Kronbichler et al. (2020), para prevenir a tempestade de citocinas, a progressão para necessidade de oxigenioterapia e progressivamente para a SARA. Assim como continuam os estudos sobre o verdadeiro papel das citocinas, incluindo interferon tipo I, interleucina-7, -1β, -6, e TNF-α na fisiopatologia inflamatória da Covid-19, como possíveis alvos específicos para a melhor terapêutica com cloroquina ou inibidores da JAK ou outros fármacos.

Outros detalhes sobre a controversa discussão sobre os esquemas terapêuticos com melhores efeitos para combater as complicações da Covid-19 podem ser consultados nas referências abaixo.

Referências bibliográficas:

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