Orientações da nova diretriz de manejo da ascite e complicações na cirrose

Recomendações da diretriz da Associação Americana para Estudo das Doenças do Fígado (AASLD) sobre o manejo da ascite e suas complicações.

A descompensação hepática, definida por ascite, encefalopatia ou sangramento gastrointestinal, relacionada à hipertensão portal, é um marco importante na história natural da cirrose e tem grande impacto no prognóstico da doença. Cerca de 5-10% dos cirróticos desenvolvem ascite ao ano, a qual está associada a redução na sobrevida de 80% para 30% em cinco anos. Recentemente, a Associação Americana para Estudo das Doenças do Fígado (AASLD) publicou uma nova diretriz sobre o manejo da ascite e suas complicações.  Nesse artigo, serão compiladas algumas das principais recomendações.

Recomendações da diretriz da Associação Americana para Estudo das Doenças do Fígado (AASLD) sobre o manejo da ascite e suas complicações.

Diretrizes sobre o manejo da ascite e suas complicações

  1. Avaliação diagnóstica de paciente com ascite

– A avaliação inicial da ascite deve incluir a anamnese, exame físico, ultrassom de abdome total com doppler de vasos hepáticos, avaliação laboratorial da função hepática e renal, dosagem de eletrólitos séricos e urinários (sódio e potássio) e paracentese propedêutica (proteína total, albumina, citometria e citologia). Deve-se calcular o gradiente de albumina soro-ascite (GASA):

– GASA ≥ 1,1 g/dL com proteína do líquido ascítico < 2,5 g/dL = hipertensão portal

– GASA ≥ 1,1 g/dL com proteína do líquido ascítico > 2,5 g/dL = causa pós-sinusoidal, sendo a etiologia cardíaca a mais provável

– GASA < 1,1 g/dL = doença peritoneal

– Classificação da ascite

Pelo volume Quanto a resposta ao tratamento
Grau I Somente detectável por ultrassom Responsiva Ascite que pode ser suprimida ou mantida em grau I com diuréticos e restrição moderada de sódio
Grau II Distensão moderada simétrica do abdome Recorrente Ascite que recorre em pelo menos 3 ocasiões em 12 meses, a despeito de diureticoterapia e restrição de sódio
Grau III Distensão importante do abdome Refratária Ascite que não pode ser suprimida ou que tem recorrência precoce (ex: após paracentese) que não pode ser prevenida pelo tratamento clínico. Subdividida em (1) diurético resistente = persiste apesar de dose máxima de diurético e (2) diurético intratável, na qual efeitos colaterais dos diuréticos impedem o uso de doses máximas.
  1. Tratamento

– Ascite grau I não necessita de tratamento.

– Recomendar restrição moderada de sódio (2g/dia ou 90mmol).

– Orientar medida diária de peso em jejum. Evitar perdas superiores a 500g/dia, em pacientes sem edema periférico, devido ao risco de contração do volume plasmático, hiponatremia e injúria renal. Pacientes com edema periférico toleram perdas de até 1kg/dia.

– A dosagem de sódio em urina 24 horas ou da relação sódio-potássio em amostra única de urina podem auxiliar no manejo da ascite:

– Sódio urina 24h < 80-90 mmol = necessário aumento de dose de diurético, se possível.

– Sódio urina 24h > 80-90 mmol = esperada perda de peso. Se não estiver perdendo, checar aderência a dieta hipossódica.

– Na/K > 1 = esperada perda de peso. Se não estiver perdendo, checar aderência a dieta hipossódica.

– Na/K ≤ 1 = necessário aumento de dose de diurético, se possível.

– O primeiro episódio de ascite pode ser tratado com monoterapia com espironolactona, geralmente com boa resposta. Pacientes com ascite recorrente devem utilizar espironolactona e furosemida.

– Sugere-se iniciar com espironolactona 100mg/dia, podendo progredir a dose até 400mg/dia. Os ajustes podem ser feitos a cada 72 horas. Pacientes com ginecomastia dolorosa, induzida por espironolactona podem ser tratados com esplerenona ou amilorida (espironolactona 100mg = ~50 mg de eplerenona = ~10mg amilorida).

– Sugere-se iniciar com furosemida 40mg/dia, podendo progredir a dose até 160mg/dia.

– Após supressão da ascite, deve-se titular a dose de diurético para a menor possível.

– Pacientes com ascite grau III devem ser submetidos a paracentese de alívio, seguida do início de diuréticos e dieta hipossódica.

– Pacientes com ascite grau II ou III devem ser avaliados para transplante hepático.

– Anti-inflamatórios não-esteroidais, inibidores da enzima conversora de angiotensina, bloqueadores do receptor de angiotensina II, bloqueadores alfa-1-adrenérgicos, dipiridamol e aminoglicosídeos devem ser evitados em pacientes cirróticos com ascite.

  1. Ascite refratária

– Ocorre em 5-10% dos cirróticos e está associada a sobrevida em seis meses de apenas 50%.

– Recomendar restrição de sódio < 2g/dia.

– Paracentese de grande volume, com infusão de albumina se retirada superior a 5L (reduz o risco de disfunção circulatória pós-paracentese, o qual é maior se retirada maior que 8L), é a primeira linha de tratamento. Repor 6-8g de albumina para cada litro de ascite removido.

– Pacientes com função hepática relativamente preservada com ascite refratária podem se beneficiar de TIPS. Pacientes com MELD  ≥18 não são bons candidatos a TIPS.

– Pacientes com ascite refratária devem ser avaliados para transplante hepático.

– O uso de betabloqueadores não seletivos em pacientes com ascite refratária deve ser evitado nas seguintes situações: pressão arterial sistólica < 90 mmHg, hiponatremia com sódio < 130 mmol/L ou creatinina sérica > 1,5mg/dL. Os betabloqueadores podem ser reintroduzidos, se  houver melhora nos parâmetros circulatórios.

  1. Hiponatremia

– Suspensão de diuréticos e restrição de líquidos para menos de 1000mL/dia só está recomendada na presença de hiponatremia moderada a grave (≤ 125mmol/L). Uma restrição ainda mais importante de líquidos (ex: < 750mL/dia) pode ser necessária em pacientes com sódio < 120 mmol/L. Nesses casos, recomenda-se iniciar infusão de albumina.

– O uso de salina hipertônica pode ser considerado por curto tempo em pacientes sintomáticos, com hiponatremia grave ou com transplante hepático iminente.

– Quando indicada correção de hiponatremia crônica em pacientes cirróticos, a meta de aumento de sódio deve ser de 4-6 mEq/L em 24 horas, não excedendo 8 mEq/L em 24 horas.

  1. Hidrotórax hepático

– O hidrotórax hepático acontece em até 4-12% dos pacientes e se caracteriza, geralmente, por derrame pleural unilateral a direita.

– Um gradiente de albumina derrame pleural – ascite > 1,1 g/dL é sugestivo de hidrotórax.

– O líquido pleural pode ter uma concentração proteica superior ao da ascite, devido ao gradiente de pressão hidrostática.

– O manejo deve ser feito com restrição de sódio, diuréticos e toracocentese de alívio. Na presença de ascite, é recomendado também paracentese com reposição de albumina, conforme necessidade.

– Pacientes com hidrotórax refratário ou recorrente devem ser encaminhados para TIPS ou transplante hepático.

– Deve-se evitar colocação de dreno de tórax ou pleurodese química, os quais cursam com elevada morbimortalidade.

  1. Hérnias 

– A hérnia umbilical pode ser encontrada em até 20% dos pacientes cirróticos.

– Pacientes candidatos a transplante hepático em curto espaço de tempo devem corrigir a hérnia no transplante ou após o transplante.

Herniorrafia eletiva pode ser oferecida para pacientes selecionados, porém é necessária supressão da ascite e melhora do estado nutricional para cirurgia.

– Pacientes com ascite refratária, considerados de alto risco para complicações relacionadas a hérnia, são candidatos a TIPS antes da herniorrafia.

  1. Infecções bacterianas no cirrótico

– Cerca de um terço dos pacientes cirróticos hospitalizados desenvolvem alguma infecção na internação. As mais comuns são peritonite bacteriana espontânea, pneumonia, infecção urinária e infecção de partes moles.

– Deve-se suspeitar de infecção bacteriana em todo paciente cirrótico com deterioração clínica, especialmente encefalopatia, injúria renal aguda e/ou icterícia. Sinais como febre, hipotermia e calafrios podem ou não estar presentes.

– Na suspeita de infecção recomenda-se realizar exame da pele, hemograma completo, paracentese diagnóstica, coleta de hemoculturas, urocultura e Rx-tórax.

  1. Peritonite bacteriana espontânea

– O paciente com PBE pode apresentar dor abdominal e íleo paralítico. No entanto, cerca de um terço dos pacientes pode ser assintomático ou apresentar somente encefalopatia e/ou injúria renal aguda.

– Diagnóstico é dado pela presença de mais de 250 polimorfonucleares/mm3 de líquido ascítico.

– Em pacientes com ascite tensa e injúria renal aguda, deve-se realizar paracentese diagnóstica para excluir PBE como causa da piora renal. Em pacientes com derrame pleural, toracocentese diagnóstica deve ser realizada quando não houver ascite ou quando a paracentese diagnóstica excluir PBE mas houver alta suspeição para infecção.

– Deve-se inocular, pelo menos, 10mL de líquido ascítico nas garrafas de cultura anaeróbica e aeróbica a beira leito.

– Os principais agentes associados a PBE são: Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus, Enterococcus faecalis e Enterococcus faecium.

– Recomenda-se iniciar cefotaxima 2g de 12/12 horas, em cenários com baixa prevalência de microrganismos multirresistentes.  O antibiótico deve ser mantido por 5-7 dias.

– Pacientes com alto risco para microrganismos multirresistentes ou infecção nosocomial devem ser tratados com piperacilina-tazobactam. Na presença de infecção prévia ou swab com isolamento de S. aureus deve-se associar vancomicina. Daptomicina pode ser associada na presença de infecção prévia ou swab com isolamento de Enterococcus resistente a vancomicina.  Pacientes com uso recente de piperacilina-tazobactam devem ser tratados com meropenem.

– Sugere-se realização de nova paracentese 48 horas após início do antibiótico. Se houver queda inferior a 25% na contagem de polimorfonucleares, recomenda-se ampliar o espectro do antimicrobiano e afastar peritonite bacteriana secundária.

– Recomenda-se a infusão de 1,5g/kg de albumina no D1 e 1,0g/Kg de albumina no D3 para minimizar o risco de injúria renal. Pacientes com creatinina >1,0  mg/dL ou bilirrubina >5  mg/dL são os que mais se beneficiam da expansão volêmica.

– Betabloqueadores devem ser suspensos temporariamente, se paciente hipotenso (PAM < 65mmHg). A reintrodução pode acontecer após normalização da pressão arterial.

  1. Profilaxia de PBE

– Primária

– Se hemorragia digestiva alta – Ceftriaxona 1g 24/24 horas, endovenoso, por 7 dias.

– Se proteína do líquido ascítico baixa + Child-Turcotte-Pugh escore > 9 pontos com bilirrubina sérica >3  mg/dL; ou creatinina sérica >1,2  mg/dL, BUN >25  mg/dL ou sódio sérico < 130 mEq/L. – norfloxacino, ciprofloxacino, rifaximina ou sulfametoxazol-trimetoprima.

– Secundária

– Após PBE, enquanto houver ascite – norfloxacino, ciprofloxacino, rifaximina ou sulfametoxazol-trimetoprima.

Referência bibliográfica:

  • Biggins SW et al. Diagnosis, evaluation, and management of ascites, spontaneous bacterial peritonitis and hepatorenal syndrome: 2021 practice guidance by the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology 2021; 74:1014. https://doi.org/10.1002/hep.31884

 

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