Pesquisas de ganho de função: entenda a polêmica envolvendo a origem do SARS-CoV-2

Desde o início, aspectos em relação ao vírus causador da Covid-19 são causas de diversas divergências, inclusive a origem do SARS-CoV-2.

Desde o início, aspectos em relação a Covid-19 são causas de diversas divergências, inclusive a origem do SARS-CoV-2. Dentre as teorias, a possibilidade de um vírus derivado de laboratório voltou a ser notícia recentemente, após um grupo de cientistas declarar que essa hipótese não pode ser descartada.

Pesquisas de ganho de função: entenda a polêmica envolvendo a origem do SARS-CoV-2

Pesquisas de ganho de função

A mutação de vírus é um processo natural e que pode levar ao surgimento de variantes potencialmente patogênicas e mesmo letais. Dependendo de sua transmissibilidade e capacidade de infectar seres humanos, tais vírus podem levar a grandes surtos ou mesmo pandemias.

Esse fenômeno já é conhecido entre os cientistas e, de certa forma, esperado. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde elencou uma nova pandemia de Influenza como uma das 10 ameaças potenciais à saúde mundial. De forma semelhante, a preparação global para combate a epidemias foi listada como um dos desafios da década para os anos 2020 pela mesma instituição.

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A emergência natural e inevitável de novas variantes virais é uma das justificativas para a realização de pesquisas de ganho de função. Essas pesquisas envolvem a manipulação de patógenos em laboratório com o objetivo de modificar suas características de transmissibilidade, patogenicidade ou adaptação ao hospedeiro. Com isso, espera-se entender como ocorre a evolução de vírus ocorre na natureza e como fazer predições e desenvolver estratégias de controle e de vigilância. As pesquisas de ganho de função também teriam um papel no desenvolvimento de vacinas pré-pandêmicas.

Para o vírus Influenza, por exemplo, dados adquiridos de pesquisas de ganho de função permitiram a seleção de cepas para compor a vacina anual. A comparação de mutações encontradas em novas cepas virais encontradas infectando animais e humanos na natureza com mutações que, nas pesquisas de ganho de função, estiveram associadas a características favoráveis à ocorrência de uma pandemia já foram usadas para priorizar as cepas componentes da vacina.

Riscos envolvidos

Apesar dos benefícios teóricos, as pesquisas de ganho de função mostram-se causa de polêmica entre os cientistas. Preocupações com questões de biossegurança, tanto em relação a acidentes em laboratórios que conduzem tais pesquisas quanto em relação ao uso potencial em ataques bioterroristas, levantam questionamentos sobre a realização desse tipo de pesquisa.

Além de falhas de segurança que poderiam levar ao escape de um vírus modificado, com maior potencial patogênico e de transmissão e que poderia se espalhar rapidamente, a publicação de estudos com as manipulações relacionadas a ganho de função em vírus já levou à preocupação com a possibilidade de replicação das pesquisas para desenvolvimento de armas biológicas.

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Em 2014, o governo norte-americano chegou a suspender o financiamento federal de pesquisas de ganho de função conduzidas em Influenza, MERS e SARS. A decisão só foi revertida em 2017, após publicação de diretrizes para guiar a decisão de financiar pesquisas envolvendo patógenos potencialmente pandêmicos. A Europa, por meio do EASAC, um conselho consultivo formado pelas Academias Nacionais de Ciência da União Europeia, também lançou recomendações para avaliação de pesquisas de ganho de função, destacando a necessidade de avaliação ética em todas as etapas do processo da pesquisa, a avaliação contínua de risco-benefício e a responsabilidade por parte da comunidade científica na publicação de informações que podem ser consideradas sensíveis, como as sequências genéticas de patógenos mais agressivos.

O caso do SARS-CoV-2

A polêmica envolvendo a possibilidade de origem em laboratório existe desde o início da pandemia. A teoria de um vírus criado artificialmente não necessariamente implica uma situação de vazamento deliberado, mas, principalmente, no escape decorrente de uma falha de segurança em um laboratório com amostras de coronavírus modificados.

No caso do SARS-CoV-2, a teoria indicaria os laboratórios do Instituto de Virologia de Wuhan como possível origem do vazamento, uma vez que se localiza na cidade em que o vírus foi inicialmente identificado e por onde a pandemia teria se iniciado e possui laboratórios em que são realizadas pesquisas com coronavírus selvagens que infectam animais.

Além de uma pandemia causada por vazamento de um vírus modificado em laboratório não ter precedentes, as instalações do Instituto de Virologia de Wuhan são classificadas como nível 4 de biossegurança, o mais alto existente é exigido para o trabalho de patógenos com fácil disseminação via aerossóis e que podem causar doença grave a fatal em humanos. Diversas medidas de engenharia, administrativas e de proteção individual são necessárias para que um laboratório seja habilitado com esse nível de segurança, visando justamente prevenir acidentes e vazamentos.

Uma investigação conduzida pela OMS declarou que uma origem em laboratório para o SARS-CoV-2 era improvável, mas o debate acerca das origens do vírus ressurgiu após ressalvas sobre a transparência das autoridades e órgãos chineses durante o processo investigativo e a publicação de documentos envolvendo a realização de pesquisas com coronavírus de morcegos no laboratório de Wuhan e a hospitalização de 3 funcionários do local antes dos primeiros casos terem sido detectados.

Frente a esses fatos, membros da comunidade científica vêm pedindo que uma nova investigação, com maior transparência, seja conduzida para tentar determinar a verdadeira origem do SARS-CoV-2.

Referências bibliográficas:

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  • World Health Organization. Urgent health challenges for the next decade. Disponível em: https://www.who.int/news-room/photo-story/photo-story-detail/urgent-health-challenges-for-the-next-decade

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