Pneumotórax espontâneo primário: drenar ou observar?

Quadro frequente nos prontos socorros, o pneumotórax espontâneo é definido pela presença de ar na cavidade pleural não relacionado a nenhum tipo de trauma.

Quadro frequente nos prontos socorros, o pneumotórax espontâneo, definido pela presença de ar na cavidade pleural não relacionado a qualquer tipo de trauma, pode ser classificado como primário ou secundário a depender da concomitância de doença pulmonar subjacente.

O manejo dos quadros primários ainda possui grande heterogeneidade na literatura, sendo a intervenção cirúrgica – ora com drenagem pleural fechada, ora com outras modalidades como simples aspiração ou mesmo a cirurgia pleuropulmonar – ponto de grande debate especialmente quanto aspectos de resolução, recorrência e morbidade relacionadas às opções terapêuticas.

Por outro lado, a observação associada ao uso de medicamentos sintomáticos, definindo o tratamento conservador, também é definida como alternativa para pacientes selecionados, sendo embasada por estudos de coortes históricas e consensos acerca desta enfermidade.

cirurgiões realizando drenagem pleural em paciente com pneumotórax espontâneo

Manejo do pneumotórax espontâneo primário

Em um recente estudo publicado na revista New England Journal of Medicine, o grupo australiano e neozelandês liderado pelo Dr. Brown levantou a hipótese quanto a efetividade do tratamento conservador no manejo dos pacientes com pneumotórax espontâneo primário (PEP) em relação ao clássico tratamento intervencionista, objetivando em primeira instância demonstrar sua não inferioridade.

Metodologia

Desenhado como um trial multicêntrico, prospectivo, randomizado, não cego e de não inferioridade, o estudo incluiu ao todo 39 hospitais metropolitanos e rurais (de diferentes portes) na Austrália e Nova Zelândia, no período entre julho 2011 a março 2017.

Com objeto de estudo apenas os quadros de PEP, os pacientes elegíveis correspondiam a indivíduos entre 14 a 50 anos, com apenas quadros unilaterais e primeiro episódio, de moderado a grande volume (≥32% na radiografia de tórax, soma > 6 cm) aferido pela equação volumétrica de Collins: soma da distâncias interpleurais em centímetros, medidas em 3 pontos (apical e pontos médios da metade superior e inferior do pulmão colapsado) do hemitórax avaliado por radiografia de tórax (RxT) póstero-lateral supina em inspiração profunda. Os pacientes foram randomizados na proporção 1:1 entre as estratégias conservadora vs intervencionista.

Grupos comparados:

  • Todo o grupo randomizado formado por 316 pacientes, foi abordado inicialmente de forma idêntica com analgesia oral ou venosa e oxigenoterapia suplementar (apenas se SO2< 92% em ar ambiente).
  • O grupo de intervenção, formado por 154 pacientes, foi submetido ao protocolo de drenagem pleural com dreno ≤12Fr por inserção pela técnica de Seldinger, aplicado a selo d’água sem aspiração. Uma hora após a drenagem, repetia-se a RxT, caso o pulmão apresentasse reexpansão e não houvesse escape aéreo no selo d’água o dreno era fechado por 4 horas. Após este período, se o paciente estivesse estável clinicamente e a nova RxT não demonstrasse recidiva, o dreno era retirado e o paciente tinha alta hospitalar. Por outro lado, na falha de resposta ao protocolo (resolução radiográfica insuficiente ou recidiva), o dreno era aberto, mantido no selo d’água e o indivíduo era internado, com demais medidas a critério da equipe assistente.
  • Quanto ao grupo conservador, por sua vez formado por 162 pessoas, o protocolo seguido correspondia a uma observação assistida por 4 horas, seguida de repetição do mesmo exame de imagem. Se não houvesse necessidade de oxigenoterapia e o paciente caminhasse sem dificuldades, era liberado para o domicílio com analgesia e orientações escritas. Intervenções foram permitidas no protocolo conservador nas seguintes circunstâncias: persistência de sintomas clínicos à despeito da adequada analgesia; dor torácica / dispneia impedindo a mobilização; paciente contrário a manutenção da terapia conservadora; instabilidade fisiológica (PAS < 90 mm Hg, SO2 < 90% em ar ambiente, FC em bpm ≥ PAS em mmHg, FR > 30 irpm) ou RxT com aumento do pneumotórax associada a instabilidade fisiológica. Nestas situações a intervenção ficava a cargo da equipe assistente.

Ressalta-se que no grupo de intervenção 10 pacientes (6.5%) opuseram-se a qualquer intervenção, enquanto 25 pacientes (15.4%) do grupo conservador foram submetidos a alguma intervenção, por diversos motivos.

O seguimento dos pacientes foi feito pessoalmente, por avaliação clínica ambulatorial, não cega, entre 24 a 48 horas da randomização e, posteriormente, nas 2ª, 4ª e 8ª semanas; incluindo na análise RxT (na condição de não reexpansão pulmonar completa em exame prévio) e questionário padronizado com tópicos referentes aos sintomas, uso analgésico e satisfação com o tratamento. Recorrências foram avaliadas no 6º e 12º meses após a randomização por ligação telefônica para os pacientes e pesquisadores.

Desfechos

O desfecho primário do estudo foi resolução radiográfica completa do PEP (determinada pelo médico tratante) dentro de 8 semanas da randomização. Dados coletados após 56 dias foram definidos como perdidos, a não ser que RxT confirmasse pneumotórax persistente, caracterizando falha terapêutica. Ademais, duas análises de sensibilidade foram empregadas: na primeira o limite da visita da oitava semana foi estendido até nove semanas (63 dias) e na outra somente até 56 dias, determinando-se os casos perdidos e falha conforme referido previamente.

Quantos aos desfechos secundários analisados definiram-se: análise do próprio protocolo de avaliação do desfecho primário; reexpansão pulmonar completa após 8 semanas avaliada por dois radiologistas não cientes do grupo de randomização; tempo até resolução completa dos sintomas (ausência de dor e uso de analgésicos); recorrência do pneumotórax ipsilateral (após confirmação da resolução radiológica prévia ≥ 24 horas de retirada do dreno); eventos adversos graves; tempo de internação hospitalar nas primeiras oito semanas; número de procedimentos invasivos e investigações radiológicas; número de dias de suspensão de atividades laborativas; fuga aérea persistente (≥ 72 horas) e satisfação do paciente.

Mais do autor: Trauma torácico contuso em idosos: peculiaridades no seu manejo

Resultados

Quanto aos resultados referentes ao desfecho primário observou-se que houve resolução do quadro em oito semanas em 98.5% dos casos do grupo de intervenção, comparados a 94.4% no grupo conservador (diferença de risco -4.1 pontos % IC 95% -8.6 a 0.5, p=.002 para não inferioridade). Nas referidas análises de sensibilidade, quando utilizado o valor limite de 63 dias a resposta de não inferioridade foi mantida com resultado em 98.5% na intervenção e 94.9% na observação (diferença de risco -3.7 pontos % IC 95% -7.9 a 0.6), porém o mesmo não ocorreu quando os dados de perda após 56 dias foram incluídos como falha (93.5% para intervenção vs 82.5% na observação, diferença de risco – 11 pontos %, IC 95%, -18.4 a-3.5).

Analisando-se os desfechos secundários isoladamente, podemos apontar uma mediana menor de tempo de resolução radiográfica para o grupo intervenção (16 dias vs 30 dias), sendo que os radiologistas identificaram mais que os médicos que atenderam os pacientes quadros de não resolução após 8 semanas. A resolução completa dos sintomas na 8ª semana foi reportada numericamente mais no grupo conservador (94.6% em relação aos 93.4% do grupo de intervenção), porém sem diferença substancial entre o tempo de resolução dos sintomas em ambos os grupos.

Interessantemente, a recorrência no primeiro ano foi maior no grupo de intervenção e com menor tempo de ocorrência em relação ao outro grupo. O risco de evento adverso grave foi cerca de 3x maior no grupo de intervenção, muitos relacionados ao procedimento de drenagem pleural e a presença do próprio dreno. Nenhum dos grupos possuiu desfecho fatal relatado ao protocolo, porém houve um óbito no grupo conservador por suicídio.

Drenagem pleural prolongada (> 72 horas) foi mais comum nos pacientes do grupo de intervenção inicial, bem como uso de aspiração e progressão para cirurgia (4.21x mais). O tempo de internação hospitalar e afastamento laboral foram maiores para o grupo de intervenção. A satisfação com o tratamento foi menor para o grupo de pacientes drenados, com uma razão de chances de 0.68 (IC 95%, 0.43-1.07) favorecendo o grupo conservador.

Conclusões

Diante dos resultados apontados, o estudo conseguiu demonstrar por evidências modestas a não inferioridade do tratamento conservador na resolução radiológica em oito semanas mesmo para quadros de PEP de maior volume, poupando 85% dos pacientes de um procedimento invasivo, com menor tempo de internação hospitalar, menor probabilidade de tempo de drenagem, menor necessidade de cirurgia e menos eventos adversos, além de menor recidiva no primeiro ano.

Todavia, deve-se atentar que apesar dos resultados irem de encontro com paradigmas estabelecidos, podemos identificar fragilidade estatística no estudo, sendo sua maior limitação o não planejamento inicial adequado quanto a especificação da janela de oito semanas de reavaliação para análise estatística além de como os dados radiológicos perdidos seriam manejados para o desfecho primário, o que alterou a avaliação de 22 pacientes.

Outras limitações apontadas incluem o não mascaramento dos atributos do estudo para pesquisadores / pacientes; alguns episódios de recidiva subclínicos podem ter se perdido no seguimento seja por não avaliação radiológica ou limiar sintomático diferenciado entre os grupos; casos interpretados como recidiva precoce (principalmente nos 3 meses inicias) no grupo de intervenção podem ter decorrido de fístulas aéreas pequenas apesar da reexpansão pulmonar adequada inicial ou pela reexpansão pulmonar rápida levando a lesões adicionais da pleura visceral que com ou sem aspiração, dificultaram a cicatrização pleural.

Leia também: Antibioticoprofilaxia e drenagem pleural no trauma: qual a evidência?

Mensagem prática

De fato, os dados obtidos são surpreendentes, podendo trazer benefícios de uma terapia conservadora e segura mesmo para pacientes com pneumotórax primários de maiores volumes, desde que adequadamente selecionados: estáveis clinicamente, previamente sãos, com fácil e rápido acesso aos serviços de saúde tanto hospitalar quanto ambulatorial e que não planejem serem submetidos à variações de pressão atmosférica durante o seguimento (viagem aérea ou mergulho).

Trazendo para a realidade brasileira, devemos ter em mente que o protocolo de intervenção utilizado difere muito do aplicado pela maioria dos hospitais, além de outros pontos já discutidos, tornando ainda de grande cautela a aplicação de tal estratégia em nossa rotina assistencial.

Referências bibliográficas:

  • Brown SGA, Ball EL, Perrin K, Asha SE, Braithwait I, Egerton-Warburton D, et al. Conservative versus interventional treatment for spontaneous pneumothorax. N Eng J Med. 2020, 382 (5):405-415
  • Broaddus VC. Clearing the Air — A Conservative Option for Spontaneous Pneumothorax. N Eng J Med. 2020, 382 (5): 469-470
  • McDuffy A, Arnold A, Harvey. Management of spontaneous pneumothorax: British Thoracic Society pleural disease guideline 2010. Thorax. 2010; 65 (Suppl 2):ii18eii31
  • Baumann MH, Strange C, Heffner JE, Light R, Kirby TJ, Klein J, et al. Management of Spontaneous Pneumothorax – An American College of Chest Physicians Delphi Consensus Statement. Chest. 2001; 119 (2): 590-602
  • Collins CD, Lopez A, Mathie A, Wood V, Jackson JE, Roddie ME. Quantification of Pneumothorax Size on Chest Radiographs Using lnterpleural Distances: Regression Analysis Based on Volume Measurements from Helical CT. Am J Rad. 1995; 165 (5): 1127-1130

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