Por que o bem-estar do médico também deve ser considerado?

O bem-estar, médico ou não, engloba tanto os aspectos físico, mental e social quanto outros elementos importantes à qualidade de vida.

Quem trabalha na área da saúde sabe que suas profissões são, ironicamente, doentes. Quem trabalha em Medicina percebe isso nos colegas de várias formas, tanto sutis quanto gritantes: profissionais irritados, “grossos”, “preguiçosos”, que não dão tanta atenção ao paciente quanto ele gostaria, ou mesmo colegas claramente deprimidos que confessam uso de antidepressivos e até ideações suicidas.

A realidade é clara: os médicos estão doentes. E não é raro que pacientes, os serviços de saúde e os próprios médicos falhem em oferecer empatia e cuidado.

Mais do que afetar a saúde do profissional, o adoecimento dos profissionais da saúde resulta em pior qualidade da assistência, o que também prejudica sistemas de saúde a pacientes.

Leia também: Saúde mental dos médicos: burnout ou transtorno depressivo maior?

médicos reunidos sobre bem-estar médico

Bem-estar médico

O bem-estar, semelhante à definição de saúde pela OMS, engloba tanto os aspectos físico, mental e social quanto outros elementos importantes à qualidade de vida como os desafios, o crescimento e o sucesso pessoal e profissional.

Na avaliação e administração de serviços de saúde, em várias instâncias, são usados indicadores que traduzem a qualidade do atendimento prestado. A maioria destes envolve aspectos relacionados aos pacientes, como tempo de internação e satisfação com o serviço. Porém, muito raramente o bem-estar dos profissionais é levado em conta como um desses indicadores de qualidade.

Para analisar a fundo esse assunto e mostrar bem mais do que “chover no molhado”, a revista Lancet publicou uma pesquisa canadense que vamos revisar a seguir.

Riscos para o adoecimento médico

O trabalho em Medicina é estressante.

Isso é uma informação quase ao nível de conhecimento geral. Afinal, não é raro encontrar médicos trabalhando em sobrecargas de trabalho. Muitos trabalham 50 a 60 horas por semana, se não mais, sem contar a frequência com que se engajam em plantões de 24 horas ou mais.

A carga emocional do trabalho também é um fator importante, já que médicos estão constantemente lidando com sofrimento, medo, falhas e com a morte. Logo, não é raro que hajam atritos na relação médico-paciente, além da sensação de sobrecarga emocional. Médicos também têm de lidar com grandes quantidades de informação e processá-las de forma rápida, geralmente por longos períodos de tempo, o que resulta em esgotamento mental.

Mudanças mais recentes no modo de funcionamento da profissão médica também contribuem para isso. Atualmente, as demandas dos pacientes têm sido cada vez mais exigentes com o avançar da tecnologia, da medicina baseada em evidências e da cultura de judicialização da saúde. Redução da remuneração, aumento da burocracia necessária para manejo dos pacientes, além de conflitos entre as demandas de instituições de saúde e as necessidades dos pacientes também são fatores geradores de estresse.

Outra mudança percebia é a perda de autonomia do profissional. Cada vez mais, os médicos estão vinculados a instituições que, para facilitar o controle de seus processos internos, precisam diminuir a liberdade de decisão do profissional. Um bom exemplo é a instituição de protocolos de assistência em hospitais. Apesar de ser algo muito bom para uniformizar condutas e, sendo baseados em evidências, melhorar a qualidade do atendimento tanto para o médico quanto para o paciente, muitos profissionais se sentem insatisfeitos pelas limitações que o protocolo coloca em suas decisões.

Em um dos estudos citados, cerca de 46% dos médicos consideram o trabalho muito estressante. E as consequências disso não são nada simples: a incidência de Burnout em médicos varia de 25 a 60%, podendo chegar a 75% em alguns estudos; maior risco de depressão (especialmente nas mulheres); maior risco de doenças cardiovasculares; alta incidência de abuso de substâncias; e a taxa de suicídio entre médicos, que é 6 vezes maior que a da população geral. Além disso, falhas de atenção se tornam mais frequentes, aumentando riscos de condutas errôneas e acidentes de trabalho (como com perfuro-cortantes), sem contar os riscos de acidentes de trânsito (bem documentados em pesquisas anteriores).

Autocuidado

Médicos não são muito bons em cuidar da própria saúde.

Pesquisas em formas de questionários mostram que quase metade dos médicos acha que não cuida bem da própria saúde. Os profissionais tendem a procrastinar na hora de procurar auxílio profissional e o “auto-tratamento” é bem comum.

Médicos também, com frequência, trabalham doentes e esperam que os colegas de profissão façam o mesmo, ainda que não cobrem o mesmo dos pacientes. A pergunta que fica é: por quê?

A Medicina é uma profissão que tende a atrair pessoas com perfil perfeccionista, workaholic e mais “neurótico”, o que já aumenta o risco de sobrecarga de trabalho.

Além disso, médicos tendem a lidar com os próprios problemas de saúde através da negação. Muito disso é secundário ao “estigma do médico doente”. A cultura médica é centrada nas conquistas, independência e autossacrifício, além da crença de que a saúde do médico pode ser interpretada como um sinal de competência (cultura essa que é propagada tanto por profissionais quanto por pacientes). Logo, médicos temem que adoecer seja interpretado como sinal de fraqueza e que isso comprometa sua profissão de alguma maneira. Não é tão raro, de fato, que instituições e colegas de profissão exerçam algum grau de discriminação, especialmente no processo de seleção de novos médicos.

Há também o que o artigo chama de cultura do silêncio. Os médicos não são bons em fornecer apoio mútuo e muitos confirmam a tendência de manter a confidencialidade dos colegas mesmo quando um colega (hipotético) está em risco de cometer suicídio. Os serviços de saúde também falham, muitas vezes, em fornecer condições básicas para a manutenção da saúde como descanso e nutrição adequados.

Esses aspectos culturais da profissão se iniciam na faculdade, o que pode ser percebido por entrevistas com os estudantes. Em uma das pesquisas, de todos os formandos interrogados, 61% deles iriam ao trabalho mesmo com vômito repetidos; 83% se estivessem com sangue na urina; 76% se tivessem suspeita de úlcera gástrica; e 73% se estivessem com ansiedade severa.

Mais do autor: Como lidar com pacientes difíceis? Veja 10 dicas!

Mal-estar médico, mal-estar na saúde

O primeiro problema evidenciado pelo adoecimento médico é o surgimento de vagas ociosas. A falta de médicos na atenção primária (que é considerada muito estressante pelo contato mais próximo com pacientes) não é um problema exclusivo do Brasil, mas sim global.

A formação médica, já emocionalmente carregada, leva muitos a evitarem determinadas especialidades, além de deixarem de fazer especializações e até a nem exercer Medicina. Médicos insatisfeitos com seu trabalho têm maior chance de buscar outro trabalho dentro da Medicina ou trocar de profissão. Dentre os médicos recém-formados, aproximadamente 1 em cada 5 referem que não seguiriam novamente essa carreira e se pudessem voltar no tempo.

Isso, além de deixar furos na cobertura assistencial nos sistemas de saúde, também leva a altos custos. Em uma estimativa norte-americana, substituir um médico custa em torno de US$ 150.000 – 300.000 (incluindo a procura por novos médicos, entrevistas, o processo de contrato, além de compensação pela perda da produtividade).

A própria produtividade e eficiência durante o período de trabalho também ficam comprometidos. Além do absenteísmo e dos riscos de acidentes de trabalho já citados, médicos doentes pedem mais exames e prescrevem mais tratamentos desnecessários. Nas pesquisas, a maior parte dos participantes interrogados acreditam que o estresse, a privação de sono e exaustão são responsáveis por piora na atenção e cuidado ao paciente, irritabilidade e erros médicos graves (levando ou não à morte de pacientes).

O problema é ainda maior quando falamos de médicos cursando a Residência Médica, que têm uma incidência de 75% para Burnout e 20% para depressão. Eles também têm 2 a 3 vezes mais chance de fornecer um atendimento ruim ao paciente, incluindo nisso falha em discutir amplamente as opções terapêuticas, cometer erros mesmo com o conhecimento e habilidades adequados e não dar atenção adequada aos pacientes.

Médicos com mau perfil de saúde também tendem a fazer menos recomendações baseadas em evidências e a sugerir mudanças de estilo de vida aos pacientes. Ao contrário, médicos satisfeitos com o trabalho conseguem muito mais adesão por parte dos pacientes, inclusive naqueles com doenças crônico-degenerativas.

O bem-estar do médico como indicador de qualidade

Usar o bem-estar do profissional como indicador de qualidade pode ser algo muito benéfico. E isso porque, como outros indicadores de qualidade, esse parâmetro é passível tanto de mensuração quanto de ação.

Mensurável porque, como vimos nesse artigo, a melhora na saúde do médico melhora a saúde do sistema. Então, a saúde dos profissionais da saúde deve ser tão prioridade quanto a saúde dos pacientes ou as questões financeiras da instituição.

E passível de ação porque é possível adotar medidas que melhoram a qualidade profissional do médico. Uma das pesquisas apresentadas no artigo fez um estudo com grupo de intervenção e grupo controle em que o primeiro recebeu intervenções com objetivo de melhorar o controle que o médico tem sobre seu microambiente de trabalho, melhorar o fluxo do serviço (reduzindo burocracias, aumentando a eficácia de toda a equipe) e também contribuir para o sentimento de satisfação e significado profissional. O grupo da intervenção apresentou melhoras tanto subjetivas quanto objetivas na saúde do profissional e do sistema, ao contrário do grupo controle. Outras pesquisas mostram o mesmo resultado, com redução na incidência de erros após medidas de redução de estresse da equipe.

O problema é que o assunto ainda não é um foco. Logo, ainda são necessárias mais pesquisas para estruturação de estratégias adequadas.

Conclusão

Evidências como essas deixam claro que é necessário mudar a cultura em torno do cuidado e do bem-estar dos médicos.

Mais importante ainda é perceber que essa mudança depende de todos os componentes-chave do sistema de saúde: médicos, administradores do sistema de saúde e também do público geral. Isso porque se um elo da cadeia não considerar o assunto como importante, os outros dificilmente o farão. Se os pacientes não valorizarem a saúde do médico, dificilmente os próprios profissionais e os empregadores farão esforço para mudar o cenário. Da mesma forma, se médicos e instituições não demonstrarem compromisso com o bem-estar profissional, os pacientes também não vão valorizar os esforços nesse sentido.

Se mudarmos esse foco e passarmos a investir na saúde do profissional, médicos se beneficiarão como pessoas e também as organizações e pacientes se beneficiarão tendo acesso a profissionais de saúde mais eficientes e produtivos.

Referência bibliográfica:

  • WALLACE, Jean E; LEMAIRE, Jane B; GHALI, William A. Physician wellness: a missing quality indicator. The Lancet, [s.l.], v. 374, n. 9702, p. 1714-1721, nov. 2009. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/s0140-6736(09)61424-0.

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