Psicopatia na política

Dentro dos transtornos de personalidade, há um grupo chamado transtorno de personalidade antissocial. Saiba mais sobre a psicopatia.

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Dentro dos transtornos de personalidade, há um grupo chamado transtorno de personalidade antissocial. Dentro deste grupo, indivíduos que apresentariam maior gravidade de sintomas seriam conhecidos como “psicopatas”. O artigo deste mês fala sobre este assunto e, além de explicar um pouco sobre psicopatia e falar de seus tipos, detém-se em explorar um tipo em especial, diferente do estereótipo da maioria: os psicopatas “líderes”. Após, usa a série “House of Cards” para exemplificar como seria uma pessoa com este perfil. Este artigo foi escrito por Désiré Palmen, Jan Derksen e Emile Kolthoff e publicado online na revista Public Integrity em janeiro deste ano.

Psicopatia é um transtorno de personalidade grave, caracterizado por: “falta de consciência”, um caráter manipulador e egocêntrico, além de habilidades sociais sedutoras. Ao tocarmos neste assunto, é comum que nos lembremos de personagens de filmes, como Hannibal Lecter. No artigo analisado aqui, o personagem principal da série “House of Cards” introduz um novo tipo de psicopata: o líder. Este teria uma mistura de características consideradas “psicopatas” e “não-psicopatas”.

É importante ter cuidado, pois o líder psicopata pode ser facilmente confundido com um líder nato ou talentoso. Os psicopatas são charmosos, carismáticos e podem efetivamente influenciar e manipular os outros para atingirem seus próprios objetivos. Podem também esconder sua falta de lealdade e responsabilidade sem muito esforço, tornando-se líderes destemidos e bem-sucedidos, capazes de representar suas empresas, organizações ou países. Por gostarem de poder e controle, desempenham papéis de liderança. Estes indivíduos são difíceis de serem reconhecidos, pois possuem um perfil diferenciado dos psicopatas criminosos que estão presos.

presidente

PSICOPATIA

“A máscara da sanidade”

A ideia que os leigos possuem do que seria a psicopatia frequentemente não corresponde à realidade. A imagem de “assassino maluco e assustador” é bem distante dos reais aspectos de indivíduos psicopatas. Além de insensíveis e não terem o que geralmente se define como “falta de consciência”, também possuem dificuldades de formar laços de intimidade com outras pessoas, o que pode incluir sua própria família ou filhos. No entanto, ainda podem parecer amigáveis, simpáticos ou charmosos. Normalmente, o que uma pessoa leiga vê quando encontra um psicopata, especialmente no início da relação, é uma pessoa “normal”, agradável e amigável.

Características

Do ponto de vista do afeto e das relações interpessoais, esses indivíduos apresentam: insensibilidade; falta de empatia, remorso ou culpa; emoções superficiais; não se responsabilizam por seus atos; possuem um charme superficial; uma sensação de grandiosidade em relação a si; mentira patológica; destreza e comportamento manipulador. Já no aspecto comportamental e quanto ao estilo de vida, pode haver uma impulsividade marcante, relacionada à necessidade de estímulos para evitar o tédio; estilo de vida parasítico; falta de objetivos realistas a longo prazo; irresponsabilidade; dificuldades no controle do comportamento; problemas comportamentais já na infância ou adolescência; comportamento antissocial em adultos. Outras características podem estar presentes, como comportamento sexual promíscuo; relações de curta duração e revogação da liberdade condicional (dados do PCL-R).

Tipos

Existem alguns subtipos de psicopatas (primários e secundários) e hipóteses que justifiquem cada um. No caso, o subtipo que mais se enquadra neste contexto de liderança bem-sucedida é o subtipo “controlado”. Este combina destemor com uma emotividade superficial ao mesmo tempo em que apresenta bons níveis de competência social, assim como boas funções executivas. Estes tendem a ser indivíduos bem controlados, focados em um objetivo, inteligentes e charmosos. Costumam obter sucesso em profissões em que esses traços são apreciados, como CEO’s de empresas e na política. Nessas posições, tais indivíduos realizam sua necessidade de poder e de controle sobre os outros.

Líderes psicopatas

Pesquisas especulam que a maior parte dos psicopatas na população em geral não são abertamente criminosos e podem ser encontrados em diversos ambientes, inclusive nos de liderança. Este subtipo, ao apresentar boas funções executivas, conseguiria manter as aparências. Estes líderes parecem ser bons e terem excelente performance, mas podem não estar trabalhando para o melhor da organização que lideram, tomando decisões pouco éticas e, em alguns casos, ter um impacto negativo nas finanças da organização e em seus colegas. Postula-se que alguns desses psicopatas em algum momento se envolvam com algum comportamento considerado antissocial, pouco ético ou ilegal, podendo chegar à imoralidade. Alguns autores levantaram a hipótese de que tais líderes com esses traços psicopáticos terminem por se envolver nos chamados crimes de “colarinho branco” (como fraude e corrupção).

Numa pesquisa feita com acusados de crime de “colarinho branco” determinou-se que líderes com personalidade narcísica e psicopática teriam maior risco de se envolverem com esse tipo de atividade criminosa. Algumas hipóteses para essa relação seriam a perspectiva de oportunidade (percebem oportunidades convenientes para cometer fraudes), seu charme e manipulação envolvendo outras pessoas e a falta de sentimentos de lealdade, culpa ou vergonha. Além disso, as chances de ser descoberto cometendo esse tipo de crime não são tão altas e as penalidades, relativamente amenas.

Psicopatia na política

O charme, a apresentação carismática combinada às características manipuladoras e insensibilidade acabam sendo características que tornam um indivíduo bem-sucedido na política.

No artigo analisado aqui é usado o exemplo do personagem de ficção que compõe a série “House of Cards” para explicar mais sobre o assunto. Trata-se de uma série de ficção sobre os bastidores da política norte-americana, centrada na vida de um congressista americano chamado Frank Underwood. A série descreve a ambição política do personagem em se tornar presidente dos Estados Unidos, assim como o percurso para tentar chegar a este objetivo. O personagem é mostrado como manipulador, lidando de forma cruel com as pessoas. Ele exemplifica como um político psicopata bem-sucedido seria realmente.

Na série, Frank é mostrado como um político de sucesso, duro e insensível, obcecado pelo controle e poder. Contudo, é ao mesmo tempo carismático e charmoso, sabendo como manipular os outros de forma brilhante. Para preencher sua necessidade de controle, usa várias habilidades: charme, humilhação, mentiras cruéis, intimidação, intensificação gradual de ataques verbais, fingir empatia e preocupação e comunicação manipuladora. Torna-se claro que, para ele, as pessoas servem apenas com um propósito: são ferramentas através das quais consegue atingir seus objetivos. A combinação desses traços comportamentais, associada à habilidade de planejamento engenhoso e sua capacidade de prever alguns acontecimentos o ajudam a alcançar a posição que almeja. A vida emocional do personagem parece estável, contudo, é superficial. Ele aparenta experimentar emoções reais apenas quando sente raiva porque algo não ocorreu do modo planejado ou satisfação quando atinge sua meta. Também possui boa capacidade de encenar uma série de emoções, que podem ser facilmente trocadas de acordo com as circunstâncias.

Contudo, este personagem não apresenta características impulsivas ou de perda do autocontrole. Ao contrário, é extremamente calculista e focado em seu objetivo. Com isso, não cumpre algumas das características descritas para um psicopata (PCL-R). Isso é um contraste com uma série de outros tipos de psicopatas que se encontram presos e que possuem altos níveis de impulsividade, estilo de vida parasítico, pobre controle emocional, falta de objetivos ou planos realistas a longo prazo. Os autores do artigo defendem que ele se enquadra num outro subtipo de psicopatia: o líder. Este poderia ser definido como um tipo com manifestações de alto-funcionamento de uma psicopatia “não-criminal”. É um grupo marcado por ser menos impulsivo, possuir mais autocontrole, maior capacidade de reflexão sobre seu comportamento, conseguindo planejar melhor suas ações. São charmosos, carismáticos, astutos, capazes de se apresentarem com eloquência, inteligência e habilidade social. Não se afetam por sentimentos como culpa, vergonha ou empatia. São orientados para um determinado objetivo e sentem-se satisfeitos em posições de poder e controle.

O que os caracteriza são três aspectos principais: são destemidos (há uma hiporresponsividade do instinto de luta-ou-fuga); possuem altas habilidades nas funções executivas (determinadas pelo autocontrole) e apresentam sintomas afetivos e interpessoais clássicos do transtorno (insensibilidade; falta de empatia, remorso ou culpa; emoções superficiais; não se responsabilizam por suas atitudes; charme superficial; uma visão grandiosa de si; mentira patológica; destreza; comportamento manipulador). Com estas características reunidas, esse tipo de líder torna-se muito competente em manter as aparências em qualquer papel que precise atuar.

Com isso, o protagonista da série, Frank Underwood, acaba se enquadrando nas características acima e no tipo de líder psicopata. Na série, é possível observar uma baixa resposta fisiológica aos acontecimentos extremos. Após um conflito ou briga, ele não demonstra sinais de estar estressado ou ao menos chateado com a situação. Isso associado às mudanças de humor quando necessário para conseguir o que quer e à sua postura pouco afetada ao dizer mentiras ou admitir que as disse sugere uma hiporresponsividade do modelo de luta-ou-fuga. Isso torna-se mais claro quando em determinado momento da série ele comete o assassinato da jornalista com quem mantinha um relacionamento. Neste momento, ele aparece totalmente calmo durante e após o ocorrido.

Em outros momentos, observa-se sua postura mudando gradualmente ao atacar uma pessoa. Possui também capacidade de alterar o humor para provocar uma ressonância emocional nos outros a fim de conseguir maior controle sobre seu comportamento. Atua de forma direcionada para a conquista de seus objetivos. Tudo isso indica boas habilidades na função executiva, especialmente no autocontrole. Isso pode ser exemplificado quando em outro momento da série, tenta intimidar a secretária de estado norte-americana, admitindo que já matou duas pessoas e rindo disso. A seguir, sugere que ela faça o que ele pede, pois ele nunca se esqueceria caso ela o contrariasse.

Já os sintomas afetivos e interpessoais mostram-se presentes em quase todos os episódios. A insensibilidade, as emoções superficiais e a falta de empatia já podem ser observadas na primeira cena da série, quando mata um cachorro com as próprias mãos. Nesta hora, ele se explica para a câmera de forma racional e não se mostra abalado. É simplesmente um trabalho que deve ser feito. Sempre que é acusado de tomar uma decisão política ruim, ele não assume a responsabilidade por seus erros. Para ele, esses eventos só são considerados erros pelos outros. Lidar com os erros não é assumir a responsabilidade pelos mesmos, mas entendê-los como uma inconveniência e disfarçá-los ou culpar outros por eles.

O glamour e o charme superficial também o definem. Ele conquista as pessoas fingindo simpatia ou amizade ou fazendo favores pessoais para que possa ter o controle sobre elas. Suas habilidades na comunicação são usadas para manipular pessoas através de metáforas. Com isso, ele impressiona como um homem forte e inteligente.

A mentira patológica, a destreza e o comportamento manipulador também são bem claros ao longo de todo o programa. Ele está constantemente mentindo para os outros – inclusive para sua mulher – com tanta naturalidade como se ele mesmo acreditasse na própria mentira. Não há vergonha, culpa ou remorso: as mentiras são apenas os meios para se chegar a um fim. O senso de grandiosidade também é bastante presente: ele deveria ser presidente e está convencido de que será.

Isso pode acontecer na vida real?

Um estudo feito analisando as personalidades de 42 presidentes americanos demonstrou que traços de psicopatia também estiveram presentes em líderes da política americana. Uma escala validada foi utilizada nesse estudo. A primeira parte da escala avaliava a capacidade de serem destemidos e estava correlacionada positivamente com performance, como início de novos projetos. A segunda parte dizia respeito à impulsividade antissocial e esteve positivamente correlacionada com efeitos negativos do trabalho, como não corrigir comportamentos pouco éticos de sua equipe. Pode-se concluir que alguns traços podem ser positivos em posições de liderança, como a falta de nervosismo e um domínio nos relacionamentos interpessoais. Um líder com um perfil psicopata com características clássicas de egoísmo e impulsividade não seria desejado num cargo de tanta importância e representatividade.

Por que esses indivíduos representam um risco?

Em um outro estudo, foi usada a mesma escala que a anterior, mas foi adicionada mais uma dimensão: o “sangue-frio”, caracterizado pela falta de emoções/culpa e não demonstrar arrependimento no que concerne aos outros. Foram chamados historiadores especializados em figuras históricas e solicitado que preenchessem a escala do personagem em questão. Há várias correlações com o estudo anterior. Jesus Cristo teve uma alta pontuação sobre ser destemido, mas uma baixa pontuação sobre egoísmo e impulsividade e sobre ter “sangue-frio”. Saddam Hussein e Adolf Hitler tiveram altas notas nas três partes do teste, preenchendo todo o perfil de psicopatia. Se certos traços da escala de psicopatia serão bem aproveitados pelas lideranças políticas ou se vão oferecer um risco, isso depende dos traços e de seus níveis. Traços como ser destemido, possuir influência social, ter autocontrole e ser imune ao estresse são benéficas em posições políticas. Mas, quando traços negativos dessa personalidade estão muito presentes – como egoísmo, impulsividade, falta de empatia e culpa – esse líder pode agir de forma pouco eficaz e ética.

CONCLUSÃO

O psicopata líder é dificilmente reconhecimento e diagnosticado, já que essas pessoas tendem a controlar suas emoções e usar o que se chama de “máscara da sanidade”. O aparente sucesso social desses indivíduos pode cegar mesmo os observadores mais perceptivos quanto a comportamentos pouco éticos, decisões inescrupulosas e insensibilidade por trás da máscara. O perfil desses indivíduos é diferente do clássico perfil do psicopata criminoso que se encontra na prisão, marcado pela impulsividade e/ou estímulos sociais (sentimento de inferioridade). Alguns estudos sugerem que esse perfil pode estar presente em políticos da vida real, oferecendo risco ao tomarem decisões pouco éticas. Ainda correlaciona com a possibilidade dos chamados “crimes de colarinho branco”.

O autor ainda enfatiza que a integridade e a presença de valores morais são imperativas para líderes e políticos bem-sucedidos. Indivíduos com muitos traços de psicopatia carecem dessas características e dificilmente seriam considerados líderes de sucesso.

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Referências:

  • Désiré Palmen, Jan Derksen & Emile Kolthoff (2018) House of Cards: Psychopathy in Politics, Public Integrity, DOI: 10.1080/10999922.2017.1402736

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