Qual efeito da traqueostomia precoce em desfechos funcionais de pacientes pós-AVC grave?

Ensaio clínico envolveu 26 UTIs de cuidados neurocríticos nos Estados Unidos e Alemanha para verificar o impacto da traqueostomia precoce.

Em pacientes com quadros neurológicos graves e com necessidade de ventilação mecânica, frequentemente nos questionamos se a melhor conduta é realizar a traqueostomia de forma precoce para saída mais rápida da ventilação mecânica e menor tempo de UTI, ou se aguardaremos a janela clássica de tempo (10 a 14 dias) para tomada dessa decisão. Muitas vezes, mesmo após extubados, tais pacientes ficam sob risco de dificuldade no controle de secreção de vias aéreas, assim como de broncoaspiração.

O estudo piloto e unicêntrico, Stroke-Related Early Tracheostomy vs Prolonged Orotracheal Intubation in Neurocritical Care Trial (SETPOINT), randomizou 60 pacientes pós-AVC (acidente vascular cerebral) e em ventilação mecânica, para um grupo traqueostomia precoce (03 dias de VM) e para outro grupo de traqueostomia tardia (entre os dias 07 e 14). O estudo não mostrou diferença estatisticamente significativa em relação ao desfecho primário (tempo de internação em UTI), no entanto o uso de sedação, duração de ventilação mecânica e mortalidade foram menores no grupo traqueostomia precoce.

Leia também: É necessário converter cricotireoidostomia de emergência em traqueostomia?

Qual o impacto da traqueostomia precoce em desfechos funcionais a longo prazo? Para responder esta pergunta, o mesmo grupo de pesquisa publicou o SETPOINT2 trial.

Qual efeito da traqueostomia precoce em desfechos funcionais de pacientes pós-AVC grave

SETPOINT2 trial

O estudo, Effect of Early vs Standard Approach to Tracheostomy on Functional Outcome at 6 Months Among Patients With Severe Stroke Receiving Mechanical Ventilation: The SETPOINT2 Randomized Clinical Trial foi publicado no JAMA, em maio de 2022. Trata-se de ensaio clínico randomizado, envolvendo 26 UTIs de cuidados neurocríticos nos Estados Unidos e Alemanha, incluindo pacientes no período de julho de 2015 a janeiro de 2020.

Critérios de Inclusão

Foram incluídos pacientes com necessidade de VM invasiva após um quadro agudo de AVC isquêmico não traumático, hemorragia intracerebral ou hemorragia subaracnoide caso o escore de traqueostomia precoce, SET score (Stroke-Related Early Tracheostomy), fosse maior que 10 (calculado no dia da inclusão). Além disso, o julgamento clínico do neurointensivista deveria ser concordante com a demanda do paciente pelo procedimento e período prolongado de VM.

Sobre o SET Score: trata-se de escore validado para predição de demanda antecipada de traqueostomia em pacientes pós-AVC recebendo VM. Utiliza 15 itens, envolvendo critérios clínicos e radiográficos.

Critérios de Exclusão

Escala de Rankin modificada maior que 1, previamente ao quadro agudo, indicando algum grau de incapacidade leve, duração da VM maior que 4 dias, condições clínicas que contraindicassem a traqueostomia precoce ou obrigassem a realização da traqueostomia cirúrgica, entre outros como gravidez e expectativa de vida menor que três semanas.

Grupos e desfechos 

A randomização ocorreu na proporção 1:1 para um dos seguintes grupos: traqueostomia precoce (dentro de 5 dias da intubação) e traqueostomia padrão (não realizada antes do dia 10, caso o desmame ventilatório não tivesse sido bem-sucedido). O método de eleição para as traqueostomias foi o percutâneo por dilatação. Inclusive, os próprios centros recrutados já usavam essa técnica como padrão no seu cuidado habitual.

Em relação ao desfecho primário, o estudo utilizou a escala modificada de Rankin, que avalia o grau de incapacidade ou dependência para realização de atividades diárias. A avaliação da escala foi realizada no follow-up de 6 meses.

O estudo dicotomizou dois grupos de achados em relação à escala: 0 a 4 (sobrevida com incapacidade moderada, dependendo parcialmente para as atividades diárias, ou melhor) e 5 a 6, indicando incapacidade grave com dependência completa ou óbito.

Resultados

Foram analisados 380 pacientes, 186 no grupo traqueostomia precoce e 194 no grupo controle (traqueostomia padrão). As características da baseline de ambos os grupos eram similares. A distribuição dos diferentes tipos de AVC (AVCi, hemorragia subacracnoide e hemorragia intracerebral) foi similar em ambos os grupos, assim como o valor do NIHSS de entrada (NIHSS do grupo traqueo precoce — mediana de 20, enquanto no grupo traqueo padrão, mediana do NIHSS foi de 19).

A mediana de tempo para realização da traqueostomia no grupo precoce foi de 4 dias, com três pacientes extubados (1,6%) antes da traqueostomia. No grupo traqueostomia padrão, a mediana foi de 11 dias para realização do procedimento e 43 pacientes (22% do grupo padrão) foram extubados com sucesso.

Vamos então analisar os principais achados

Desfecho primário: escala modificada de Rankin entre 0 e 4 na avaliação de 6 meses. Grupo precoce com 43,5% de pacientes vs. 47,1% no grupo padrão. Não houve diferença estatisticamente significativa.

Diferença −3.6% [95% CI, −14,3% a 7,2%]; OR ajustado para desfecho favorável 0,93 [95%CI, 0,60-1,42; P = 0,73].

Desfechos secundários: sem diferenças significativas também quanto à duração da ventilação mecânica ou de internação em UTI.

Algumas limitações listadas pelos autores: o tamanho amostral não foi adequado para obtenção de diferença absoluta menor que 15% quanto ao desfecho neurológico aceitável. O estudo combinou três tipos diferentes de AVC, com características clínicas e trajetórias diferentes (por exemplo hemorragia subaracnoide). Não houve também padronização em relação ao protocolo de desmame ventilatório entre os centros participantes.

Saiba mais: Traqueostomia percutânea precoce em pacientes com Covid-19

Conclusão

Entre pacientes com AVC recebendo VM, uma estratégia de traqueostomia precoce não aumentou a taxa de sobrevida sem incapacidade severa em 6 meses. No entanto, os intervalos de confiança amplos podem envolver efeito clínico importante. Sendo assim, não se pode excluir algum tipo de benefício clínico ou até mesmo dano a partir de tal estratégia.

Mensagens Práticas 

  • O tempo clássico para decisão de traqueostomia em pacientes em VM prolongada gira em torno de 10 dias, conforme o TracMan trial, uma das principais evidências sobre o tema em pacientes graves;
  • É comum em pacientes com quadros neurológicos graves recebendo VM, existir uma necessidade de traqueostomia em algum momento;
  • Conforme a evidência discutida acima, realizar a traqueostomia precoce nesse perfil de pacientes não modificou a sobrevida sem impacto no desfecho funcional;
  • Na prática clínica, continuarei usando o julgamento clínico nesses cenários, ponderando o custo-benefício da saída precoce de VM conforme prognóstico neurológico esperado de forma individual.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Bösel J, Niesen WD, Salih F, et al. Effect of Early vs Standard Approach to Tracheostomy on Functional Outcome at 6 Months Among Patients With Severe Stroke Receiving Mechanical Ventilation: The SETPOINT2 Randomized Clinical Trial. JAMA. 2022;327(19):1899-1909. DOI:10.1001/jama.2022.4798

Especialidades