Cirrose na emergência: como manejar as principais complicações (parte 1)

Em 2018 foi publicado um guideline de cirrose descompensada. Com base nele, esse artigo abordará o manejo das principais complicações.

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A cirrose hepática é uma doença complexa que possui diversas etiologias e complicações. Dentre as intercorrências possíveis, quatro são as que mais frequentemente levarão os pacientes à sala de emergência: hemorragia digestiva alta varicosa, peritonite bacteriana espontânea, encefalopatia hepática e disfunção renal / síndrome hepatorrenal. Saber reconhecê-las e tratá-las é fundamental para prevenir a insuficiência hepática crônica agudizada (acute-on-chronic liver failure – ACLF) e evitar um desfecho desfavorável, até que seja possível instituir o tratamento definitivo, que é o transplante hepático.

O manejo dessas complicações tem pontos semelhantes entre si, o que muitas vezes gera dúvidas em relação ao tratamento específico, doses de medicamentos e necessidade de profilaxia. Em 2018 foi publicado pela primeira vez um guideline de cirrose descompensada. Com base nele, o artigo de hoje dará início a uma série com esses quatro assuntos de grande importância na hepatologia e medicina de emergência.

cirrose

Hemorragia Digestiva Alta Varicosa (HDAv)

O que é:

Rotura espontânea de varizes esofagogástricas devido à alta pressão exercida na parede das varizes, que implica sangramento grave, autolimitado em apenas 50% dos casos. Em cirróticos, o sangramento varicoso é responsável por aproximadamente 70% das HDA e deve ser manejado como tal até que se prove ser por outra etiologia.

O que predispõe:

É necessária hipertensão portal com gradiente de pressão venosa hepática >12mmHg para formação de varizes com risco de rotura. A gravidade da cirrose (Child C), o calibre das varizes (grosso — maior que 5mm) e a presença de sinais vermelhos são considerados fatores de risco para hemorragia.

Manifestações:

As duas manifestações mais típicas são hematêmese e melena. Enterorragia pode acontecer se hemorragia maciça. Outras formas de apresentação são: encefalopatia hepática sem motivo aparente, queda do estado geral, síndrome anêmica.

Diagnóstico:

Endoscopia digestiva alta (EDA) é o exame indicado na suspeita de HDA, uma vez que é por meio dele que se faz tanto diagnóstico quanto tratamento. As varizes podem ser classificadas em esofágicas, esofagogástricas (GOV1 – em continuação com a pequena curvatura; GOV2 – em continuação com o fundo gástrico) e gástricas isoladas (IGV1 – isoladamente no fundo gástrico; IGV2 – qualquer outra região no estômago). O sítio mais comum de rotura é esofágico, mas o sangramento de fundo gástrico costuma ser mais grave e de mais difícil controle.

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Manejo:

Embora a EDA seja o exame de escolha, não se deve atrasar o tratamento frente a um paciente com HDA aguardando a endoscopia e todas as condutas devem ser iniciadas simultaneamente assim que se suspeita de HDAv. A divisão a seguir é apenas didática.

1º) Ressuscitação volêmica

– Deve ser feita com cristaloides, podendo-se também utilizar albumina (não há benefício de um sobre outro). Evitar outros coloides. Cuidado com hiper-hidratação! Deve-se lembrar que esses pacientes possuem albumina sérica baixa e hipertensão porta (muitas vezes com ascite).
– Terapia transfusional: restritiva, somente se hemoglobina <7g/dL e objetivar Hb 7 – 9g/dL.

2º) Medidas para interromper a hemorragia e evitar ressangramento

– Drogas vasoativas: devem ser iniciadas imediatamente após a suspeita de HDAv, antes da EDA, pois reduzem a incidência de sangramento ativo durante a EDA e facilitam a terapia endoscópica. Todas são realizadas por via IV e o tempo de tratamento é de 3 a 5 dias.

  • Terlipressina 2mg 4/4h por 48h, seguido de 1mg 4/4h por mais 3 dias
  • Octreotide 50mcg bolus + infusão contínua 50mcg/h
  • Somatostatina 250mcg bolus + infusão contínua 250mcg/h (pode aumentar até 500mcg/h)

– EDA: deve ser realizada o quanto antes, após a estabilização hemodinâmica, em até 12h após a admissão. Ligadura elástica (LEVE) é melhor que escleroterapia por ser mais efetiva em controlar o sangramento, ficando essa última restrita aos casos em que a LEVE não é possível. Exceção: escleroterapia é preferível para variz de fundo gástrico (IGV1 e GOV2) devido a menor taxa de ressangramento.
– Shunt portossistêmico de inserção transjugular (TIPS): principal indicação na hemorragia persistente e no ressangramento precoce; pode ser considerado 1ª escolha nas varizes de fundo gástrico; considerar TIPS preemptivo (nas primeiras 24 – 72h) nos pacientes com alto risco de ressangramento (Child C <14). Idealmente deve ser revestido com PTFE – reduz risco de trombose do TIPS. Avaliar se há encefalopatia hepática (contraindicação absoluta ao TIPS).
– Outras terapias: eco-endoscopia com injeção de cianoacrilato ou de coils também são terapias possíveis para varizes de fundo gástrico. Prótese de esôfago ou balão de Sengstaken-Blakemore para hemorragia maciça refratária por até 24h, como ponte.

3º) Medidas para prevenir complicações durante episódio agudo

– Antibioticoprofilaxia: indicada a todos os pacientes com HDAv, mesmo que não tenham ascite, com objetivo de prevenir PBE. É realizada com ceftriaxone 1g 1x/dia por 7 dias ou norfloxacino 400mg 12/12h por 7 dias.
– Suspender betabloqueadores, diuréticos, e evitar quaisquer medicações nefrotóxicas ou que possam causar hipotensão.

Profilaxia:

A profilaxia primária pode ser realizada com betabloqueadores não-seletivos (propranolol ou carvedilol) ou LEVE, e a secundária deve ser com a combinação de bbloq + LEVE. A profilaxia primária deve ser iniciada nos pacientes que possuem varizes com alto risco de sangramento (pelo menos um: Child C, grosso calibre ou sinais vermelhos).

Para a profilaxia secundária, há estudos que mostram maior sobrevida com adição de sinvastatina à terapia padrão e há a expectativa de ser incluída nos próximos guidelines. Ainda, a obliteração transvenosa retrógrada ocluída por balão (BRTO) já está sendo indicada na diretriz americana como terapia possível para variz de fundo gástrico para evitar ressangramento, após obtida hemostasia por EDA.

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Referências:

  • Angeli, P. et al. EASL Clinical Practice Guidelines for the management of patients with decompensated cirrhosis, Journal of Hepatology, 69: 406 – 460, 2018. doi: 10.1016/j.jhep.2018.03.024
  • de Franchis, R. Expanding consensus in portal hypertension: Report of the Baveno VI Consensus Workshop: Stratifying risk and individualizing care for portal hypertension. Journal of Hepatology , 63: 743 – 752, 2018. doi: 10.1016/j.jhep.2015.05.022
  • Garcia‐Tsao, G. , Abraldes, J. G., Berzigotti, A. and Bosch, J. (2017), Portal hypertensive bleeding in cirrhosis: Risk stratification, diagnosis, and management: 2016 practice guidance by the American Association for the study of liver diseases. Hepatology, 65: 310-335. doi:10.1002/hep.28906
  • Dadabhai, A. S., Fenkel, J. M., Brown, D. B. and Laine, L. (2012), Balloon‐occluded retrograde transvenous obliteration for the treatment of gastric varices. Hepatology, 55: 1301-1304. doi:10.1002/hep.25635
  • Abraldes JG, Villanueva C, Aracil C, Turnes J, Hernández-Guerra M, Genescà J, et al. Addition of simvastatin to standard treatment improves survival after variceal bleeding in patients with cirrhosis. A double-blind randomized trial (NCT01095185). EASL. 49th Annual Meeting of the European Association for the Study of the Liver. London, United Kingdom. April 9–13, 2014. J Hepatol 2014;60:S525. doi: 10.1053/j.gastro.2016.01.004
  • Bosch, J. et al. Esophageal varices: Stage-dependent treatment algorithm. Journal of Hepatology, 64: 746 – 748. doi: 10.1016/j.jhep.2015.11.039

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