Repolarização precoce pode indicar riscos ao paciente?

A repolarização precoce é uma alteração eletrocardiográfica relativamente comum e fonte de confusão para muitos médicos, porque pode parecer supra-ST.

A repolarização precoce é uma alteração eletrocardiográfica relativamente comum e fonte de confusão para muitos médicos. Quem nunca pegou o eletrocardiograma (ECG) de um paciente em suspeita de síndrome coronariana aguda e ficou na dúvida se aquela alteração era um supra-ST de infarto ou uma repolarização precoce?

Apesar de ser considerada um achado benigno, estudos recentes têm chamado a atenção para uma possível associação patológica com arritmias fatais. Algumas pesquisas mostraram que quase um terço dos pacientes com histórico de morte súbita revertida têm repolarização precoce no ECG de repouso. Além disso, a repolarização precoce também é mais comum naqueles com história familiar de arritmia fatal.

eletrocardiograma apresentando repolarização precoce com um estetoscópio em cima

Repolarização precoce e morte súbita

Logo, seria possível prever o risco de morte súbita de um paciente baseado na presença e morfologia dessa alteração eletrocardiográfica?

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Mecanismo

Existe uma explicação fisiopatológica plausível que associa as taquiarritmias potencialmente fatais à repolarização precoce. A maior parte dos casos de morte súbita que ocorrem sem um substrato evidente (como alterações estruturais cardíacas ou histórico prévio de arritmia, por exemplo) é atribuída a canalopatias. Em outras palavras, alterações nas proteínas canaliculares na membrana dos cardiomiócitos seriam responsáveis por desequilíbrios no fluxo iônico que gera os potenciais de ação e isso, por fim, resultaria em arritmias seguidas de morte.

Esse mecanismo vai de encontro com a fisiopatologia da repolarização precoce: nela, o epicárdio apresenta maiores correntes de efluxo de potássio e menores correntes de influxo de sódio e cálcio, comparado à musculatura do endocárdio. O resultado disso é a diferença na duração dos períodos refratários e da repolarização desses dois segmentos do miocárdio. Esse mecanismo é o mesmo responsável pelas arritmias com circuitos de reentrada, o que poderia apontar para uma possível natureza arritmogênica da repolarização precoce.

Síndrome da repolarização precoce

A repolarização precoce, em si, pode ser identificada por várias morfologias no ECG de 12 derivações, todas elas envolvendo a elevação do ponto J (localizado no fim do complexo QRS) em relação à linha de base. A alteração pode se mostrar como uma onda apiculada logo ao fim do QRS, como uma deflexão no fim da onda R ou como elevação do segmento ST.

O termo “síndrome da repolarização precoce” é usado nas situações em que a repolarização precoce pode ser associada a taquiarritmias potencialmente fatais. Logo, considera-se a presença da síndrome quando o paciente tem a alteração de repolarização associada a história pessoal de morte súbita revertida ou história familiar compatível.

Podemos dizer que o diagnóstico da síndrome da repolarização precoce é fechado quando há elevação do ponto J em 1 mm ou mais em 2 ou mais derivações contíguas + antecedentes compatíveis conforme descrito acima.

A importância definição é que, ao mesmo tempo em que essa alteração de repolarização é comum na população geral, se novas evidências têm mostrado uma potencial associação com arritmias fatais, vale a pena fazer uma estratificação de risco nesses pacientes (especialmente nos que fecham critérios para a síndrome).

Estratificação de risco

Como essas descobertas são relativamente recentes, ainda não existem estratégias de estratificação bem definidas. Porém, percebe-se que algumas alterações eletrocardiográficas estão relacionadas a maior risco.

A repolarização precoce pode ser dividida em dois padrões, conforme o comportamento da elevação de ST. O padrão horizontal/descendente é aquele em que o ST varia a amplitude em 0,1 mV ou mentos nos 100 ms após o ponto J, enquanto o padrão ascendente está presente quando o ST aumenta a amplitude em mais que 0,1 mV após o ponto J. Destes dois, o padrão descendente teve forte associação com morte súbita em comparação a pacientes sem repolarização precoce, enquanto o padrão ascendente não mostrou associação.

Outros estudos compararam pacientes portadores de repolarização precoce com e sem história pessoal de fibrilação ventricular. O grupo com antecedentes positivos apresentou, com mais frequência, algumas alterações adicionais do ECG como: intervalo QT prolongado, ondas J com maior amplitude, ondas T com menor amplitude e razão T/R baixa.

Outro estudo mostrou a utilidade dos testes ergométricos e de provocação para identificar a potencial malignidade de uma repolarização precoce. A pesquisa foi feita com um N de 229 pacientes com história pessoal de morte súbita revertida. Desses, 11% tinham repolarização precoce no ECG de repouso e foram submetidos a testes de tolerância ao exercício e de provocação com ajmalina. Os testes resultaram em desaparecimento das alterações eletrocardiográficas em 25% e 60% dos pacientes, respectivamente. O restante, que manteve as alterações de repolarização, tinham uma frequência significantemente maior de sintomas relacionados a arritmia.

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Tratamento

Assim como as estratégias de estratificação, o tratamento nessas condições também não é bem definido na literatura. É importante lembrar que, por mais que a associação repolarização precoce-arritmias fatais, essa alteração eletrocardiográfica não é por si só um risco para arritmias: o que está sendo investigado é sua utilidade como possível sinalizador para identificação precoce de risco para morte súbita. Logo, a presença de repolarização precoce em um ECG de rotina, por si só, não demanda nenhuma forma de tratamento (devendo-se, ao invés disso, prosseguir para a estratificação de risco).

Os objetivos do tratamento continuam sendo os mesmos já usados para morte súbita revertida. No caso de pacientes com síndrome da repolarização precoce e história pessoal positiva, a conduta é o implante de CDI. O mesmo não vale, por exemplo, para pacientes com alteração eletrocardiográfica sem episódios prévios.

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Em pacientes com a síndrome, é comum a ocorrência de fibrilação ventricular e tempestade elétrica após o implante de CDI. Para controle agudo dos eventos, as pesquisas mostram eficácia do isoproterenol, enquanto que para o controle a longo prazo recomenda-se quinidina ou hidroquinidina. Em pacientes já em uso de quinidina, porém que mantém alta frequência de episódios arrítmicos, o cilostazol tem se apresentado como boa opção para interrupção da crise.

Perspectiva

Ainda são necessários muitos estudos para, quem sabe um dia, construir diretrizes de estratificação e manejo de pacientes com síndrome da repolarização precoce. Algumas novidades com grande potencial que têm surgido para estratificação incluem a imagem eletrocardiográfica (método que une a detecção de atividade elétrica superficial com TC cardíaca) e os eletrodos de potencial de ação monofásico (cateter equipado com tais eletrodos que podem medir o os gradientes de repolarização transmural em detalhe).

De qualquer maneira, a repolarização precoce, antes considerada apenas um achado fisiológico do ECG, pode vir a se tornar uma valiosa ferramenta na prevenção de mortes súbitas.

Referência bibliográfica:

  • BOURIER, Feliz et al. Early Repolarization Syndrome: Diagnostic and Therapeutic Approach. Frontiers In Cardiovascular Medicine, [s.l.], v. 5, p. 1-8, 27 nov. 2018. Frontiers Media SA. http://dx.doi.org/10.3389/fcvm.2018.00169.

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