Retrospectiva 2020: relembre os principais tópicos em terapia intensiva

Em um ano pesado, pesquisadores conseguiram fazer um papel importante. Confira os principais estudos do ano em terapia intensiva!

O ano de 2020 foi marcado por mudanças drásticas em nosso cotidiano. A experiência de viver em meio a uma pandemia causada por um vírus mortal e altamente contagioso saiu das obras de ficção científica e invadiu as casas de cada um de nós.

Agora, boa parte da população leiga sabe o que é uma intubação orotraqueal, um ventilador mecânico, uma hemodiálise. O grande volume de casos graves, em curto período de tempo, ressaltou o papel fundamental do médico intensivista no sistema de saúde.

Confira aqui¹ um curto vídeo demonstrando a evolução exponencial do número de casos de Covid-19 no mundo ao longo do ano de 2020.

Nesse momento, é unânime a sobrecarga física e mental que acomete os profissionais da saúde. No entanto, o Brasil e o mundo demonstraram que são capazes de fazer pesquisa de qualidade em meio a uma catástrofe.

paciente internado em terapia intensiva

Pesquisas, terapia intensiva e pandemia

Uma simples busca no Pubmed com o termo “Covid-19” revela mais de 81 mil artigos científicos publicados. Esse é o tamanho da resposta da comunidade médica aos desafios impostos pelo SARS-CoV-2.

Tabela: Publicações sobre a covid-19 ao longo do tempo no Pubmed.

Diversos grupos de pesquisa foram formados, na tentativa de agilizar estudos sobre intervenções para o manejo da covid-19. Daremos destaque ao grupo britânico RECOVERY e ao brasileiro Coalizão. É importante ressaltar que os estudos conduzidos pelo grupo brasileiro trouxeram maior número de informações clínicas sobre desfechos nos pacientes incluídos do que o grupo britânico.

Nesse universo de artigos publicados, quais foram os mais impactantes?

Azitromicina e hidroxicloroquina

Ambos grupos publicaram estudos demonstrando a ausência de benefício do uso dessas medicações na infecção por SARS-CoV-2.

O grupo brasileiro publicou no New England Journal of Medicine (NEJM) um artigo³, avaliando o uso da hidroxicloroquina (HCQ) associada ou não à azitromicina, comparados ao cuidado habitual, sem o uso destas medicações. Não houve benefício com uso desses fármacos. Muito pelo contrário, houve maior incidência de prolongamento do intervalo QT e elevação de aminotransferases no grupo intervenção.

O braço do RECOVERY que analisou a HCQ também publicou seus resultados4 no NEJM e, de maneira similar, não constatou benefício com o uso da medicação. O mesmo grupo publicou em 14 de dezembro um anúncio² divulgando seus resultados preliminares com a azitromicina, relatando a ausência de benefício deste antimicrobiano em modificar a evolução natural da doença.

Tocilizumabe, plasma de convalescença, ivermectina, e outras ideias que não deram certo…

Uma série de outras terapias foram testadas para tratamento da Covid-19, sem sucesso. O tocilizumabe falhou em demonstrar benefício em artigo5 publicado recentemente no NEJM. O mesmo ocorreu com o uso de plasma de convalescença6, em trabalho lançado em novembro no NEJM.

A ivermectina não foi avaliada em estudos prospectivos, de forma que não deve ser utilizada para profilaxia ou tratamento da Covid-19. Em outubro, um estudo repleto de problemas metodológicos reacendeu a discussão sobre essa medicação. Nesse contexto, cabe ressaltar que nenhum guideline recomenda o uso da medicação. Além disso, os próprios autores concluem que “ensaios clínicos randomizados desenhados de forma apropriada devem ser realizados antes que qualquer conclusão possa ser tomada.”

Dentre os antivirais, temos um sobrevivente

Diversos antivirais foram avaliados ao longo da pandemia. Dentre eles, apenas o remdesivir foi capaz de demonstrar benefício, ao encurtar o tempo para recuperação clínica em pacientes hospitalizados pela Covid-19. Mais uma vez, o NEJM foi a revista científica que publicou o artigo. No entanto, quando comparado a dexametasona, o remdesivir possui custo muito maior, para obter um desfecho de menor importância clínica. Assim, o seu uso não foi amplamente adotado.

Leia também: SOLIDARITY: Remdesivir e interferon-β1a podem reduzir a mortalidade por Covid-19?

Dexametasona na Covid-19 e na SDRA

Essa foi sem dúvida a principal medicação que mudou a conduta na Covid-19, mas de onde surgiu a ideia para a sua utilização?

Ela surgiu antes da pandemia, em fevereiro de 2020, com a publicação do gigantesco estudo DEXA-ARDS7, realizado em UTIs espanholas. Pela primeira vez, em pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), foi demonstrada a redução de mortalidade em 60 dias, com um protocolo de dexametasona 20 mg/dia por cinco dias, seguido de 10 mg/dia por mais cinco dias (–15,3% [IC –25,9 a –4,9 %]; p=0,0047). Além disso, foi demonstrada redução de dias em ventilação mecânica (-4,8 dias [95% IC -2,57 a -7,03]; p<0,0001), sem aumento de efeitos colaterais, como hiperglicemia ou infecções, quando comparada ao placebo.

Com o surgimento de SDRA causada por Covid-19, foi natural que a droga fosse estudada nesse contexto, tanto pelo grupo Coalizão quanto pelo RECOVERY. No entanto, o estudo britânico foi mais rápido, publicando em 17 de julho de 2020 no NEJM seus resultados8 preliminares. Foi observada redução drástica de mortalidade com uso da medicação em pacientes com necessidade de oxigênio suplementar.

O grupo brasileiro publicou seu trabalho CoDEX9 no Journal of the American Medical Association (JAMA) em setembro de 2020. Foram avaliados pacientes mais graves, demonstrando o aumento de dias livres de ventilação mecânica com uso do glicocorticoide. Além disso, a medicação não foi relacionada a maior incidência de hiperglicemia ou infecções em relação ao grupo controle.

A pedido da Organização Mundial de Saúde, o artigo brasileiro foi analisado em conjunto com o estudo britânico, além de outros cinco estudos randomizados. Essa grande metanálise10, publicada no JAMA, fundamentou a recomendação formal da OMS para o uso dessa medicação globalmente.

Tiveram discordâncias sobre como ventilar o paciente…

Onde há ventilação mecânica existe polêmica, e no centro dela, dois renomados professores possuem visão bastante diferente sobre o assunto.

A confusão começou em abril de 2020, quando o Dr. Luciano Gattinoni publicou um editorial12 no JAMA, defendendo a intubação precoce dos pacientes com Covid-19, na tentativa de prevenção da chamada “P-SILI” (patient self induced lung injury). O problema é que esse conceito, até então, é em grande parte teórico, surgindo há apenas cinco anos. A maior evidência até o momento foi um estudo14 interessante, porém realizado em ovelhas.

A publicação gerou uma resposta13 contundente por parte do Dr. Martin Tobin, também autor de uma infinidade de livros e publicações na área da ventilação mecânica. Ele argumenta que inicialmente precisamos saber se a P-SILI existe de fato, para depois avaliar quais danos ela acarreta, e aí então ponderar se vale a pena mobilizar esforços para preveni-la. O custo da intubação precoce para evitar a possível P-SILI, é a universalmente reconhecida VILI (ventilator induced lung injury), esta última comprovada por décadas de estudos. Essa resposta brilhante, na minha opinião, é um dos artigos mais importantes do ano.

Não só de Covid-19 vive o intensivista, mas não teve muita coisa além disso…

Publicado aqui no Portal PEBMED, discutimos o artigo 65-trial16, que demonstrou ser possível um alvo de pressão arterial média (PAM) mais baixa em pessoas com mais de 65 anos de idade, sem aumento de eventos adversos relacionados.

Este estudo veio dar sequência a outros, como o SEPSISPAM e o OVATION, que avaliaram qual a meta ideal de PAM nos pacientes internados em UTI.

O aguardado estudo STARRT-AKI15, envolvendo diversas sociedades de terapia intensiva, veio dar uma resposta conclusiva a respeito de qual a melhor estratégia para início de diálise em pacientes com lesão renal aguda (LRA).

Este estudo comparou uma estratégia de início de hemodiálise precoce (até 12h após diagnóstico de LRA KDIGO II ou III) versus “tardia”, apenas se estivessem presentes indicações clássicas, como hipervolemia, hiperpotassemia, ou acidose metabólica refratárias. Não houve diferença entre os grupos no desfecho primário de mortalidade em 90 dias. Além disso, no grupo de hemodiálise “tardia”, 38,2% dos pacientes não chegaram a precisar da terapia, pois apresentaram melhora progressiva da função renal. Assim, atualmente, a melhor estratégia parece ser indicar terapia de substituição renal apenas a partir das indicações clássicas.

O ano de 2020 acaba como um dos mais importantes na história da medicina. Os profissionais da saúde foram testados até seu limite. No entanto, ao mesmo tempo, foram reconhecidos como heróis pela população, de forma que conseguimos sair com uma imagem revitalizada. Com a perspectiva do início das vacinações contra o SARS-CoV-2, estamos chegando possivelmente a um armistício em nossa luta. No nosso contexto, um dos aforismos de Hipócrates nunca foi tão atual:

“A vida é curta, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência enganosa, o julgamento difícil”

Veja mais retrospectivas deste ano:

Referências bibliográficas:

  1. Mapa atualizado da Covid-19. https://www.healthmap.org/covid-19/
  2. Recovery – Azitromicina: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.12.10.20245944v1
  3. Coalizão – HCQ e Azitromicina: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2019014?query=featured_coronavirus
  4. Cavalcanti AB. Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19. N Engl J Med. 2020 Nov 19;383(21):2041-2052. doi: 10.1056/NEJMoa2019014.
  5. RECOVERY Collaborative Group. Effect of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with Covid-19. N Engl J Med. 2020 Nov 19;383(21):2030-2040. doi: 10.1056/NEJMoa2022926.
  6. Stone JH. Tocilizumab Trial Investigators. Efficacy of Tocilizumab in Patients Hospitalized with Covid-19. N Engl J Med. 2020 Dec 10;383(24):2333-2344. doi: 10.1056/NEJMoa2028836.
  7. Simonovich VA; PlasmAr Study Group. A Randomized Trial of Convalescent Plasma in Covid-19 Severe Pneumonia. N Engl J Med. 2020 Nov 24:NEJMoa2031304. doi: 10.1056/NEJMoa2031304.
  8. Villar J. Dexamethasone treatment for the acute respiratory distress syndrome: a multicentre, randomised controlled trial. Lancet Respir Med. 2020 Mar;8(3):267-276. doi: 10.1016/S2213-2600(19)30417-5.
  9. RECOVERY Collaborative Group. Dexamethasone in Hospitalized Patients with Covid-19 – Preliminary Report. N Engl J Med. 2020 Jul 17:NEJMoa2021436. doi: 10.1056/NEJMoa2021436.
  10. Tomazini BM, COALITION COVID-19 Brazil III Investigators. Effect of Dexamethasone on Days Alive and Ventilator-Free in Patients With Moderate or Severe Acute Respiratory Distress Syndrome and COVID-19: The CoDEX Randomized Clinical Trial. JAMA. 2020 Oct 6;324(13):1307-1316. doi: 10.1001/jama.2020.17021.
  11. WHO Rapid Evidence Appraisal for COVID-19 Therapies (REACT) Working Group. Association Between Administration of Systemic Corticosteroids and Mortality Among Critically Ill Patients With COVID-19: A Meta-analysis. JAMA. 2020 Oct 6;324(13):1330-1341. doi: 10.1001/jama.2020.17023.
  12. Meta de PAM na UTI: https://pebmed.com.br/cbmi-2020-qual-deve-ser-a-meta-de-pressao-arterial-na-uti/
  13. Gattinoni L. Management of COVID-19 Respiratory Distress. JAMA. 2020 Jun 9;323(22):2329-2330. doi: 10.1001/jama.2020.6825.
  14. Tobin MJ. Caution about early intubation and mechanical ventilation in COVID-19. Ann Intensive Care. 2020 Jun 9;10(1):78. doi: 10.1186/s13613-020-00692-6.
  15. Mascheroni D. Acute respiratory failure following pharmacologically induced hyperventilation: an experimental animal study. Intensive Care Med. 1988;15(1):8-14. doi: 10.1007/BF00255628.
  16. STARRT-AKI Investigators. Timing of Initiation of Renal-Replacement Therapy in Acute Kidney Injury. N Engl J Med. 2020 Jul 16;383(3):240-251. doi: 10.1056/NEJMoa2000741.
  17. Lamontagne F. Effect of Reduced Exposure to Vasopressors on 90-Day Mortality in Older Critically Ill Patients With Vasodilatory Hypotension: A Randomized Clinical Trial. JAMA. 2020;323(10):938-949. doi:10.1001/jama.2020.0930

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