Embora muitos avanços tenham sido alcançados nas estratégias de tratamento e prevenção da infecção pelo vírus HIV, ainda não se encontraram formas definitivas de se evitar o estabelecimento de infecção ou de se eliminar o vírus uma vez que ela tenha se instalado. Para que uma vacina contra o HIV seja bem-sucedida, é necessário que haja estímulo para a produção de anticorpos amplamente neutralizantes (bnAbs) capazes de prevenir infecção pelos diversos tipos de isolados virais encontrados naturalmente.
Estratégias de evasão imune por parte do vírus, como diversificação antigênica durante a replicação e a proteção de epítopos importantes no envelope viral, são alguns dos motivos que têm impedido o desenvolvimento de uma vacina eficaz.
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Por meio de técnicas laboratoriais e moleculares, vacinas baseadas em estruturas virais têm sido desenvolvidas. Essa abordagem foi utilizada recentemente em vacinas contra vírus sincicial respiratório e SARS-CoV-2.
Para o HIV-1, um imunógeno viral modificado, solúvel e com conformação de pré-fusão e resistente a mudanças conformacionais induzidas por interação com receptores CD4 (Trimer 457I) foi desenvolvido, sendo capaz de elicitar anticorpos neutralizantes em ensaios pré-clínicos.
Um artigo publicado na The Lancet mostra os primeiros resultados de um estudo de fase 1 do uso do Trimer 457I como base para uma vacina contra o HIV-1.
Materiais e métodos
O trabalho é um estudo de fase 1, aberto, randomizado e unicêntrico, conduzido em indivíduos adultos saudáveis e sem infecção pelo HIV, entre 18 e 50 anos de idade. O objetivo principal foi avaliar a segurança e imunogenicidade do uso do Trimer 457I, em diferentes doses e por diferentes vias de administração.
Os participantes elegíveis foram randomizados, em proporção 1:1, para receberem 100 microgramas do produto por via IM ou por via SC. Posteriormente, os participantes subsequentes foram randomizados, também em proporção 1:1, para receberem 500 microgramas por via IM ou SC. Em todos, o Trimer 457I foi administrado em conjunto com suspensão de hidróxido de alumínio como adjuvante e nas semanas 0, 8 e 20.
Os participantes foram seguidos por 40 semanas após a primeira injeção e foram capturados dados sobre eventos adversos locais e sistêmicos nos 7 dias subsequentes a cada injeção. Para eventos não solicitados, o período de observação foi de 28 dias após cada administração e eventos adversos graves ou comorbidades novas foram captados durante todo o período do estudo.
Todos os indivíduos também foram monitorados em relação ao desenvolvimento de VISP (soropositividade induzida por vacina), em que anticorpos contra o HIV induzidos por vacina podem ser detectados por testes diagnósticos na ausência de infecção pelo vírus. Nesses casos, a ausência de infecção foi confirmada por exame de carga viral e os participantes receberam cartas explicando a condição.
O desfecho primário foi avaliar a segurança e tolerabilidade do produto do estudo. O desfecho secundário foi a resposta de anticorpos induzidos pela vacina 2 semanas após o término do esquema de 3 injeções.
Resultados
Foram incluídos 16 participantes, sendo 6 homens e 10 mulheres, com uma média de idade de 33 anos (22 – 48 anos). Todos receberam todas as injeções planejadas pelo protocolo.
Os eventos de reatogenicidade locais e sistêmicos foram leves ou moderados, exceto por um relato de rubor no local da injeção — classificado como grave — que foi autolimitado, com resolução após 6 dias de seu início. Os sintomas mais frequentes foram sensibilidade no local da injeção e mialgia. Entre os eventos não solicitados, o mais frequente foi prurido no local da injeção. Todos foram considerados leves e se resolveram sem sequelas. Não houve relatos de eventos não solicitados graves.
A ocorrência de VISP foi detectada em 7 pacientes, sendo 6 (86%) no grupo que recebeu 500 microgramas do produto, com 4 (57%) recebendo-o por via IM. Em todos os participantes que desenvolveram VISP, o fenômeno ocorreu após as administrações repetidas e teve resolução espontânea exceto em 1 participante.
Anticorpos neutralizantes contra o Trimer 457I foram detectados em participantes de todos os grupos, com as maiores respostas sendo observadas nos que receberam 500 microgramas IM 2 semanas após a dose de semana 20. Os títulos de anticorpos mostraram-se significativamente mais altos em relação à entrada no estudo nos participantes que receberam 500 microgramas por ambas as vias e 100 microgramas por via SC.
A especificidade desses anticorpos também foi avaliada, com todos os participantes apresentando aumento significativo de anticorpos contra o Trimer 457I 2 semanas após completar o esquema. Contudo, anticorpos contra regiões do envelope viral — loop V3, peptídeo de fusão, gpI20 e gp4I — que normalmente são encontrados em indivíduos infectados pelo HIV não foram detectados nesses voluntários.
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Em relação à atividade neutralizante, a administração do Trimer 457I foi capaz de induzir anticorpos neutralizantes contra regiões hipoglicosiladas, porém de forma limitada. Também não foi detectada atividade neutralizante contra epítopos relacionados a CD4. Análises sorológicas e por visualização em microscopia eletrônica mostraram que os anticorpos induzidos pelo produto têm como sítio de ação, em sua maior parte, a base do trímero.
Os autores discutem que os achados sugerem que as baixas respostas de neutralização podem ser devidas à imunodominância da base do trímero, que é livre de glicanos, em comparação com as superfícies, que são grandemente glicosiladas, e pouco imunogênicas.
Mensagens práticas
- Os resultados mostram que a administração de Trimer 457I foi segura e bem tolerada em indivíduos adultos saudáveis e sem infecção pelo vírus HIV.
- As administrações foram capazes de elicitar resposta imunológica, mas atividade neutralizante foi limitada aos grupos que receberam a dose de 500 microgramas.
- Os anticorpos produzidos em resposta à administração do produto têm atividade prioritariamente contra regiões da base do trímero, tendo pouca ação contra regiões de superfície altamente glicosiladas.
- O achado de baixos títulos de anticorpos neutralizantes foram diferentes dos estudos pré-clínicos, o que mostra a dificuldade em desenvolver vacinas imunogênicas contra o HIV em humanos.