Síndrome antifosfolípide: como diagnosticar e tratar?

A síndrome antifosfolípide é uma doença autoimune caracterizada pela ocorrência de eventos trombóticos em qualquer leito vascular e de eventos gestacionais.

A síndrome antifosfolípide (SAF) é uma doença autoimune caracterizada pela ocorrência de eventos trombóticos em qualquer leito vascular e de eventos gestacionais, na presença dos anticorpos antifosfolípides (aPL) persistentemente positivos.

estetoscópio em cima de prontuário de paciente com síndrome antifosfolípide

Síndrome antifosfolípide

Os primeiros relatos de detecção de anticorpos antifosfolípides datam do início do século XX, com identificação do anticorpo de Wasserman (inicialmente descrito em pacientes infectados pelo Treponema pallidum) em pacientes sem o diagnóstico de sífilis (falso positivo biológico para teste sorológico para sífilis). Nos anos 1950, foi descrito que tais pacientes apresentavam positividade para um inibidor da coagulação, denominado anticoagulante lúpico (LA), que é utilizado ainda hoje. Com a evolução dos testes e o aumento da disponibilidade dos métodos de ELISA, foram descritos os anticorpos anticardiolipina (aCL) e o anti-beta-2-glicoproteína I (aB2GPI), que também fazem parte dos critérios classificatórios atuais.

A ligação dos aPL aos fosfolípides de membrana se dá através da ligação com a beta-2-glicoproteína I. Após essa ligação, que acontece na presença de um second hit, ocorre ativação endotelial, de monócitos e plaquetas, levando a um estado pró-coagulante e pró-inflamatório e à ativação do complemento, o que gera trombose e interfere com o trofoblasto e com as células deciduais.

Diagnóstico da SAF

O diagnóstico da SAF é clínico-laboratorial e pode ser endossado pelos critérios classificatórios da doença, propostos em 2006 na cidade Sydney.

Um ponto importante de se comentar é que, apesar do grande volume de publicações nos últimos anos a respeito da síndrome, esses critérios classificatórios não acompanharam todo o corpo de evidência acumulado recentemente. Por esse motivo, novos critérios classificatórios vêm sendo discutidos por especialistas de todo o mundo e devem estar disponíveis nos próximos anos.

As manifestações clínicas mais características da SAF são as tromboses e as perdas gestacionais. As tromboses podem acometer qualquer leito vascular (arterial ou venoso), de qualquer calibre. As tromboses venosas são as manifestações mais frequentes, acometendo predominantemente os membros inferiores. Dentre as tromboses arteriais, as mais prevalentes são os acidentes vasculares encefálicos isquêmicos (AVEi).

As perdas gestacionais ocorrem, caracteristicamente, no final da gestação; no entanto, podemos encontrar as mais diversas formas de morbidade gestacional, como perdas precoces recorrentes, pré-eclâmpsia, eclâmpsia e síndrome HELLP.

Outras manifestações clínicas relativamente comuns que não fazem partes dos critérios classificatórios são: livedo/vasculopatia livedoide, plaquetopenia (geralmente entre 50-150 mil/mm3), anemia hemolítica, enxaqueca, fenômeno de Raynaud, valvopatia (mitral > aórtica), nefropatia (microangiopatia trombótica), coreia, entre outros.

Os aPL (LA, aCL e aB2GPI) devem ser pesquisados em todos pacientes com suspeita de SAF. A importância da realização dos 3 exames é que, na presença de tripla positividade, o risco trombótico se eleva muito. Como esses anticorpos podem se elevar transitoriamente, é importante que sejam confirmados 12 semanas após um primeira dosagem positiva.

Leia também: Síndrome do anticorpo antifosfolipídeo na gestação: como manejar?

Critérios classificatórios

Os critérios classificatórios atualmente utilizados são os de Sapporo modificados na cidade de Sydney (Myiakis, 2006). Eles estão descritos na tabela abaixo:

Critérios Clínicos

Critérios Laboratoriais

1. Trombose vascular: um ou mais episódios clínicos de trombose arterial, venosa ou de pequenos vasos, em qualquer tecido ou órgão. Trombose deve ser confirmada por estudos de imagem ou histopatológico. Para confirmação histopatológica, a trombose deve estar presente sem evidência significativa de inflamação da parede do vaso. 1. LA presente no plasma em 2 ou mais ocasiões com pelo menos 12 semanas de intervalo, ISTH. (International Society for Thrombosis and Haemosthasis).
2. Morbidade gestacional: (a) Uma ou mais perdas fetais inexplicadas na 10a ou mais semana de gestação, com feto morfologicamente normal documentado por ultrassonografia ou exame direto do feto, OU (b) Um ou mais nascimentos prematuros em um neonato morfologicamente normal antes da 34a semana de gestação por motivo de: (i) eclâmpsia ou pré-eclâmpsia grave, OU (ii) achados reconhecidos de insuficiência placentária, OU (c) Três ou mais abortos espontâneos inexplicados consecutivos antes da 10a semana de gestação, com exclusão de anormalidades anatômicas e/ou hormonais maternas e de causas cromossomiais maternas e paternas. 2. aCL IgG e/ou IgM, presente em títulos médios ou altos ≥40 GPL ou MPL, ou >p99), em 2 ou mais ocasiões, com pelo menos 12 semanas de intervalo, por ELISA.
3. Anticorpo aβ2GPI IgG e/ou IgM em títulos >p99, presentes em 2 ou mais ocasiões com pelo menos 12 semanas de intervalo, por ELISA

Avaliação do risco de trombose e de morbidade gestacional

Podemos classificar o risco do paciente com SAF para eventos trombóticos e gestacionais de acordo com o perfil de anticorpos e algumas características clínicas.

A definição de alto risco varia, mas conhecemos a importância da tripla positividade (positividade para os 3 anticorpos utilizados nos critérios classificatórios – LA, aCL e aB2GPI) na ocorrência de eventos na SAF. Este é o principal fator de risco laboratorial para ocorrência de trombose e eventos gestacionais.

Dentre os 3 anticorpos, o LA é o que apresenta maior associação com eventos, seguido pelos aCL IgG e aB2GPI IgG. Os isotipos IgM e IgA, tanto do aCL quanto do aB2GPI, parecem ter menor importância que os demais já citados.
Além disso, a presença de outros fatores adicionais, como fatores de risco cardiovascular, associação com lúpus eritematoso sistêmico (LES), tabagismo, imobilização prolongada, cirurgia, uso de anticoncepcional combinado oral, síndrome nefrótica, trombofilias hereditárias entre outros, aumentam a chance de novos eventos.

Na tentativa de unificar todos esses fatores de risco, foi desenvolvido um escore global de risco para pacientes com SAF que recebeu o nome de GAPSS (Global AntiPhospholipid Syndrome Score). Este escore inclui hipertensão (1 ponto), dislipidemia (3 pontos), positividade LA (4 pontos), aCL (5 pontos), aB2GPI (4 pontos) e antifosfatidilserina/protrombina (aPS/PT – 3 pontos). No entanto, devido à indisponibilidade de aPS/PT em muitos centros, esse escore foi ajustado, com supressão desse anticorpo (adjusted Global AntiPhospholipid Syndrome Score).

Tratamento da síndrome antifosfolípide

O tratamento da SAF pode ser dividido de acordo com a manifestação clínica apresentada e será apresentado separadamente a seguir, de maneira resumida.

Tromboprofilaxia primária

Nesse contexto, temos que considerar 3 grupos de pacientes: (1) aPL positivos sem LES, (2) aPL positivos com LES e (3) pacientes com passado de perda gestacional sem eventos trombóticos (SAF gestacional puro).

No primeiro grupo (aPL sem LES), não há estudos randomizados duplo-cegos que suportem o uso de AAS profilático. No estudo APLASA (The AntiPhosphoLipid Antibody Acetylsalicylic Acid), o número de eventos foi menor do que o esperado na análise interina e o estudo acabou sendo interrompido por incapacidade de obtenção de tamanho amostral adequado. Apesar disso, em uma meta-análise de estudos retrospectivos em sua maioria (N=1208 pacientes), o uso de AAS evitou a ocorrência de um primeiro evento arterial, mas não de um primeiro venoso. Um estudo para o uso de hidroxicloroquina (HCQ) em pacientes com aPL sem LES também foi desenvolvido, porém teve que ser interrompido por diversos motivos. Como conclusão, em pacientes com aPL sem LES, o uso de AAS é razoável naqueles com baixo risco de sangramento, desde que associado a padrão de aPL de alto risco (LA, títulos de aCL ≥80 e altos títulos de aB2GPI) ou de fatores de risco cardiovascular.

No caso de aPL com LES, o uso tanto do AAS quanto da HCQ parece ser benéfico na prevenção de trombose, conforme demonstrado por estudos observacionais. Desse modo, ambas as medicações estão indicadas em pacientes com LES e positividade para os aPL.

Por fim, no terceiro grupo (SAF gestacional puro), estudos de caso-controle demonstraram que esses pacientes possuem risco aumentado de trombose quando comparados com a população controle. No entanto, não temos ensaios clínicos com alta qualidade metodológica e os estudos observacionais com AAS apresentam resultados conflitantes. Ainda assim, devido ao maior risco de eventos trombóticos, é razoável se considerar o uso de AAS em pacientes com SAF gestacional, especialmente na presença de outros fatores de risco para trombose.

Tromboprofilaxia secundária: eventos venosos

Atualmente, sugere-se que o uso de anticoagulação de moderada intensidade com antagonistas de vitamina K (alvo de INR entre 2 e 3) por toda a vida seja o tratamento padrão para prevenção de novos eventos venosos em pacientes com SAF.

Em um estudo conduzido por Crowther et al., não houve diferença de desfechos entre o grupo com INR 2-3 e grupo com INR 3-4. No entanto, graves limitações metodológicas impedem a extrapolação desses resultados: a maioria dos pacientes apresentavam apenas eventos venosos, pacientes com recorrência venosa e INR >2 foram excluídos e os pacientes alocados no grupo INR 3-4 encontravam-se em faixa subterapêutica em 43% do tempo (sendo que 66% dos eventos trombóticos nesse grupo ocorreram com INR <2). Outro estudo com os mesmo critérios de exclusão encontrou resultados semelhantes.

Caso o paciente apresente recidiva da trombose com INR em faixa terapêutica (entre 2-3), algumas alternativas podem ser adotadas, como aumento do alvo do INR para 3-4, associação de AAS, HCQ ou estatinas (dados apenas de modelos murinos) ou troca para heparina de baixo peso molecular subcutânea. Os novos anticoagulantes orais diretos (DOACs) não devem ser usados nesse contexto.

Veja mais: Anticoagulantes orais diretos podem ser usados em pacientes com SAF?

Tromboprofilaxia secundária: eventos arteriais

A ocorrência de eventos arteriais é um marcador de gravidade na SAF e, portanto, é tratada de maneira mais agressiva que os eventos venosos. Via de regra, a maioria dos autores utilizam a varfarina com alvo de INR 3-4 ou a associação entre varfarina com INR 2-3 e AAS.

O estudo APASS (Antiphospholipid Antibodies and Stroke Study) não encontrou benefício da anticoagulação versus AAS. No entanto, também existem graves limitações relacionadas à metodologia desse estudo, como a dose de aPL em apenas um momento, a maioria dos pacientes selecionados possuíam baixos títulos de aPL e eram mais idosos (por volta dos 60 anos). Assim, não podemos considerar esse estudo como adequado para o entendimento atual da SAF e não deve ser, desse modo, utilizado.

Em uma revisão sistemática (N=1740 pacientes), pacientes com alvo entre 3-4 apresentaram menor risco de recorrência arterial (versus alvo entre 2-3), o que também foi documentado em outros estudos mais recentes.

Outro estudo sugere ainda que a associação de varfarina (qualquer alvo) com AAS apresenta melhores desfechos para pacientes com eventos arteriais, quando comparado com grupos sem AAS.

De maneira análoga aos pacientes com recorrência venosa, devemos testar os níveis de anticoagulação para pacientes com recorrência arterial. Caso ele esteja no alvo programado, devemos intensificar o tratamento: se AAS + alvo 2-3, subir para AAS + alvo 3-4; se alvo 3-4, associar AAS. Além disso, podemos considerar a associação com HCQ ou estatina (poucos dados em humanos) ou troca para heparina de baixo peso molecular subcutânea.

Tratamento da SAF catastrófica

A SAF catastrófica (SAFc) é definida como uma síndrome rara associada a falência orgânica multissistêmica aguda devido a oclusão microvascular (microangiopatia trombótica). Os critérios para seu diagnóstico são: envolvimento de 3 ou mais órgãos, em menos de 1 semana, com positividade para aPL e evidência histológica de trombose microvascular. Em 50% dos casos, a SAFc surge após um evento precipitante, como infecções, atividade de LES, retirada de varfarina, neoplasias, cirurgia e trauma.

Na última análise do CAPS Registry, um registro mundial para estudo da SAFc, o tratamento com terapia tríplice (anticoagulação + pulsoterapia com metilprednisolona + imunoglobulina humana ou plasmaférese) foi superior às demais combinações de terapia nas análises retrospectivas. Caso haja falha no tratamento, há relatos de casos anedóticos com rituximabe ou eculizumabe.

SAF gestacional: profilaxia de eventos gestacionais

Devido ao risco aumentado de pré-eclâmpsia, todo paciente com SAF gestacional deve receber profilaxia com AAS.
Para prevenção de novas perdas gestacionais, o tratamento padrão é o uso de heparina de baixo peso molecular em dose profilática (p.e., enoxaparina 1 mg/kg/dia), associada ao AAS. Isso se baseia em estudos que demonstraram que as taxas de sucesso gestacional foram maiores nesse tipo de tratamento, quando comparado com AAS isolado. Caso o paciente apresente recorrência de eventos gestacional com enoxaparina profilática, podemos utilizar doses terapêuticas (p.e. enoxaparina 1 mg/kg de 12/12 horas).

Após o parto, a enoxaparina deve ser mantida em doses profiláticas por, pelo menos, 6-12 semanas.
Uma consideração a ser feita é que, se o paciente apresentou passado de evento trombótico e está em uso de anticoagulação oral por toda vida, durante a gestação ele deverá ser tratado com enoxaparina em doses terapêuticas (1 mg/kg de 12/12 horas). Para evitar malformações fetais relacionadas à varfarina, essa troca para a enoxaparina deve ser realizada até 6 semanas da data da última menstruação.

Se a paciente apresentar perdas apesar da terapia otimizada, o uso de HCQ pode ser considerado, baseada em análises retrospectivas.

Manifestações não trombóticas

O tratamento das manifestações não-trombóticas não está totalmente definido e se baseia no tipo de acometimento.
A plaquetopenia e a anemia hemolítica relacionada à SAF são tratadas de maneiras semelhantes às outras citopenias de origem autoimune, com corticoides, IVIG, azatioprina, micofenolato e rituximabe.

Lesões cutâneas geralmente são tratadas com anticoagulação, AAS e/ou imunossupressores.

Nas manifestações cardíacas, renais e as outras não-trombóticas, não existe benefício documentado da anticoagulação. Medicações que interferem com a via do mTOR estão sendo testados no tratamento da SAF, especialmente em pacientes com manifestações renais e/ou transplantados.

Mais do autor: Como identificar a doença intersticial pulmonar associada à esclerose sistêmica?

Comentários

Esse artigo traz um panorama geral sobre o diagnóstico, estratificação de risco e tratamento das diversas manifestações da SAF, baseada em uma ampla revisão bibliográfica que contém vários dos artigos mais importantes relacionados ao tema.

Muitas das abordagens que utilizamos no tratamento da SAF ainda carecem de melhor documentação científica. Um dos grandes problemas relacionados a isso é o fato de a doença ser relativamente rara, o que dificulta os esforços para a realização de ensaios clínicos com alta qualidade metodológica.

Nesse contexto, surgiram grupos de colaboração internacional para o estudo da SAF, como o APS ACTION. Esses esforços coletivos serão, sem dúvida, um ponto importante para estudo e disseminação de conhecimento científico relacionado à síndrome.

Referência bibliográfica:

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