Síndrome de descontinuação: como fazer o desmame correto dos ISRS?

Foi proposto termo síndrome de descontinuação para se referir aos sintomas de retirada/abstinência dos ISRS. Saiba quais são e como evitar a síndrome.

Os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) constituem uma classe de medicamentos muito prescrita pelos psiquiatras e mesmo outros médicos. Por isso é importante falar também sobre o que acontece na hora de descontinuá-los e como fazê-lo. As orientações a seguir foram retiradas de um artigo publicado em março deste ano no Lancet Psychiatry.

medicamentos variados junto dos ISRS que causam síndrome de descontinuação

Síndrome de descontinuação

Muitas medicações estão associadas à síndromes de descontinuação ou abstinência, especialmente as classes que atuam sobre o sistema cardiovascular e o sistema nervoso central. A maioria dos chamados “antidepressivos” (inibidores da MAO, tricíclicos e ISRS e inibidores seletivos de recaptação de serotonina e noradrenalina) estão associados a estes quadros.

No que diz respeito a esses fármacos, foi proposto o termo síndrome de descontinuação para se referir aos sintomas de retirada/abstinência. Esta síndrome de descontinuação dos ISRS, como descrito pelo DSM-5 e no Discontinuation-Emergent Signs and Symptoms checklist, compreende uma gama de sintomas somáticos e psicológicos.

Em parte, pode se assemelhar a sintomas ansiosos e depressivos para os quais a medicação foi inicialmente prescrita. Contudo, ela pode ser diferenciada de episódios de recorrência ou recaída pela rapidez de seu início (dias ao invés de semanas), pela rápida resposta à reintrodução da medicação (em horas ou dias) e pela presença de sintomas somáticos ou psicológicos distintos da doença original (ex: tontura, náusea, sensação de choque, etc). Se for confundida com uma recorrência do transtorno original, pode levar ao tratamento prolongado de pacientes que já não necessitam.

A síndrome de retirada ocorre em muitos pacientes, com uma incidência variando entre 42% e 100% para paroxetina e de 9 a 77% para fluoxetina, com uma média de 53,6% para a classe, segundo 14 estudos que avaliaram este assunto. A incidência e a gravidade dos sintomas parece estar associada à meia-vida de cada medicação, grau de afinidade pelo receptor, dose e duração do tratamento, forma de descontinuação e características individuais de cada paciente (o que pode incluir os efeitos de antecipação). O período de descontinuação (14 dias após a interrupção) também está associado com um aumento de 60% nas taxas de suicídio quando comparado com usuários prévios de antidepressivos.

Esta síndrome pode durar mais tempo do que uma a duas semanas, como se pensava anteriormente. Em um estudo concluiu-se que os sintomas duravam em média seis semanas, sendo que ¼ dos pacientes os referiu por um período de até 12 semanas. Outro estudo encontrou que para 86,7% dos pacientes que relataram os sintomas, estes duraram pelo menos seis meses, e para 58,6% a duração foi de um ano enquanto para 16,2% duraram mais de três anos. Alguns relatos de caso apresentaram uma duração de um ano ou mais.

O uso a longo prazo dos ISRS também pode estar aumentando justamente porque alguns pacientes não conseguem interromper seu uso, já que sofrem com efeitos adversos que sentem com a retirada da medicação e a falta de informações sobre como lidar com a situação.

No geral, as diretrizes sugerem evitar a descontinuação abrupta. Várias referências sugerem que a descontinuação seja feita de forma gradual e num período de 2 a 4 semanas com reduções lineares até a dose terapêutica mínima ou metade da menor dose terapêutica antes da completa retirada. Em algumas delas sugere-se que a fluoxetina não precisa dessa descontinuação gradual ou que, caso esteja em doses altas, seja reduzida ao longo de duas semanas. Contudo, em estudos randomizados a redução em 14 dias apresentou apenas mínima, se não nenhuma redução da gravidade dos sintomas quando comparado com a descontinuação abrupta.

A partir disso se conclui que a redução ao longo de um período maior de tempo pode ser necessária. E, de fato, os estudos feitos com um período de descontinuação maior (ex.: meses) apresentaram melhores resultados. Por exemplo, em um dos trabalhos uma redução da dose da paroxetina em 10 mg a cada 2 semanas diminuiu a incidência dos sintomas de retirada de 33,8% para 4,6%.

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Quando os pacientes deste estudo relataram sintomas de retirada, foi feita a redução de 5 mg a cada duas ou quatro semanas, sendo então os sintomas evitados com sucesso. Em outro estudo com paroxetina pacientes que reduziram até descontinuar a medicação ao longo de 38,6 semanas apresentaram uma incidência de 6,1% da síndrome quando comparados com 78,2% que fizeram a retirada abrupta. A redução da medicação a pequenas frações da dose terapêutica mínima também apresentaram resultados favoráveis (ex: 0,5 mg de paroxetina ou citalopram), inclusive entre aqueles pacientes que tiveram a síndrome de descontinuação anteriormente.

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Por que surgem os sintomas?

Do ponto de vista da neurobiologia, a decisão de ir desmamando os ISRS se baseia no conhecimento de sistemas biológicos que terão mais tempo para se adaptar às reduções da substância química ligante, reduzindo os sintomas de abstinência. Os receptores ativados pela medicação sofrem frequentemente downregulation ou exibem sensibilidade diminuída para manter a homeostase. A remoção abrupta da medicação interrompe esse equilíbrio homeostático, resultando em menor estimulação, que é sentida através dos sintomas de abstinência, geralmente opostos aos efeitos da droga (exemplo: retirada de antidepressivos tricíclicos, que possuem uma forte ação anticolinérgica, é sentida através de efeitos ou sintomas colinérgicos).

Medicações com meia-vida curtas estão relacionadas a uma maior incidência de síndrome de abstinência, início mais rápido da mesma e maior gravidade do quadro do que as drogas com uma meia-vida maior. Isso ocorre provavelmente porque a retirada de medicações com menor meia-vida está mais associada a uma diminuição mais rápida da concentração do ligante que produz o efeito. Os sintomas de abstinência podem ser eliminados com a reintrodução do agente que se pretendia descontinuar, retornando o equilíbrio homeostático.

A principal forma de amenizar os sintomas de descontinuação é reduzir a dose na qual este equilíbrio é interrompido, permitindo tempo para adaptação do sistema a um menor número de ligantes, limitando os sintomas a um nível tolerável. Isso pode ser conseguido de duas maneiras: substituir por uma medicação de meia-vida maior antes de iniciar o desmame ou diminuir a velocidade de desmame de uma droga de menor meia-vida.

Curiosamente diminuir a medicação numa velocidade constante (numa redução linear) tende a causar efeitos colaterais mais importantes ao longo do tempo. Este efeito é, provavelmente, consequência de um efeito de dose-resposta em forma de hipérbole na relação entre a droga e seu receptor.

Sobre a retirada dos ISRS

Acredita-se que os ISRS surtem efeito através da inibição do transportador de serotonina, aumentando tanto as concentrações de serotonina nas sinapses quanto a resposta nos receptores serotoninérgicos. Por sua vez, os neurônios serotoninérgicos modulam outros sistemas de neurotransmissores, como a noradrenalina, a dopamina e o GABA. Acredita-se que outros efeitos relacionados a esta classe estão relacionados com inflamação, neurogênese e com o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal.

Embora sejam necessários mais estudos para esclarecimento, a abstinência dos ISRS tem sido atribuída a uma deficiência relativa de serotonina num contexto em que já ocorreu a adaptação dos receptores serotoninérgicos, visto que o tratamento altera a densidade desses (downregulation) em ratos. Já está demonstrado que em humanos, mesmo a curto prazo, a administração de ISRS reduz a sensibilidade cortical de alguns receptores. As alterações relacionadas a outros neurotransmissores também pode ter algum papel na síndrome de retirada.

A síndrome de abstinência ou descontinuação é mais comum quando os ISRS são administrados em maior dose ou por maiores períodos de tempo. Medicações com uma meia-vida mais curta, como a paroxetina, apresentam maior incidência de sintomas, início mais rápido e maior gravidade do que aquelas com meia-vida maior, como é o caso da fluoxetina. Seguindo esse exemplo, a paroxetina produz sintomas de descontinuação em dois dias, enquanto a os sintomas da fluoxetina podem aparecer em duas a seis semanas.

Como em outras síndromes de abstinência, um desmame gradual também implicará numa redução gradativa de sua ação sobre os seus principais alvos (os transportadores de serotonina). Estudos com PET-scan nos quais radioligantes foram ligados a transportadores de serotonina mostraram uma curva de dose-resposta conforme a típica curva de hipérbole (já citada), que surge como consequência como a lei de ação em massa.

Dessa forma, é provável que os regimes de desmame lineares possam causar reações de retirada mais graves à medida que a redução da inibição do transportador de serotonina aumenta. Ou seja, ao invés de reduzir a dose em valores fixos (ex: reduzir 5 mg de um total de 20 mg/dia de citalopram a cada x dias), fazer a redução em intervalos fixos de efeitos biológicos (ex: 10% na redução da ocupação dos transportadores de serotonina – reduzir de 20 mg de citalopram para 9,1 mg, depois para 5,4 mg, depois 3,4 mg, seguido de 2,3 mg, depois 1,5 mg, depois 0,8 mg, depois 0,4 mg, finalmente 0 mg). Este regime usa doses próximas ao que vem sido usado com sucesso nos estudos sobre descontinuação.

Sugere-se, então, que a dose retirada seja personalizada para que se estabeleça um regime de redução equivalente a uma redução de 10% dos transportadores, com monitorização subsequente da gravidade e duração dos sintomas. Ao seguir esse esquema de redução, a dose inicial do desmame pode coincidir com a metade da dose terapêutica mínima, o que geralmente é bem tolerado pela maioria dos pacientes (ex: 20 mg de citalopram para 10 mg). Se o paciente ficar bem após um mês da redução dessa dose inicial, aí é possível reduzir em 10% a ocupação dos transportadores a cada mês, mantendo a monitorização.

Os ISRS devem ser reduzidos de tal forma que a redução final até zero seja igual ou menor que a quantidade de redução tolerada anteriormente (o que deve ocorrer quando a dose for equivalente a aproximadamente uma ocupação de 10% dos transportadores de serotonina), correspondendo a uma dose muito pequena (ex: 0,4 mg de citalopram). A medicação líquida pode ser necessária para alcançar essas doses.

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Sobre o tempo de desmame

É difícil estabelecer um intervalo ótimo entre as reduções. Na ausência de estudos avaliando a taxa em que a neuroadaptação ocorre, alguns aspectos podem servir de guia. Para todos os ISRS, exceto a fluoxetina, as propriedades farmacocinéticas sugerem que um estado de estabilidade das medicações seja alcançado entre 5 a 14 dias após a redução da dose.

Mas como já foi descrito, os sintomas de descontinuação foram observados por diferentes períodos de tempo, variando de alguns dias até semanas, meses ou anos. Estes dados geralmente são provenientes da interrupção abrupta da medicação, sendo possível que uma redução feita com maior cautela faça com que os sintomas de redução durem por um período de tempo menor.

Vamos observar que os efeitos clínicos dos ISRS podem demorar algumas semanas para surgir, ao passo que os efeitos colaterais podem surgir em dias. Ainda não está claro se os sintomas de descontinuação seguem esse padrão temporal, mas parece prudente aguardar quatro semanas após a redução da medicação para verificar se algum efeito ocorre com certo atraso. Isso também permite avaliar a recorrência dos sintomas ou aguardar se alguns instrumentos de avaliação, caso usados, retornam ao normal (como o Discontinuation-Emergent Signs and Symptoms).

Outras questões envolvendo os sintomas de retirada

Características de cada paciente e o uso de outras medicações pode interferir na gravidade dos sintomas. Fatores relacionados aos pacientes, como a presença de diferenças enzimáticas do citocromo, sensibilidade do inibidor de transporte de serotonina e questões psicológicas aumentem as chances da ocorrência da síndrome, o que ainda merece atenção.

É necessário destacar que a paroxetina e a fluoxetina são metabolizadas pelo citocromo P450 e inibem o seu próprio metabolismo, o que resulta numa cinética não linear, gerando reduções desproporcionais nas concentrações plasmáticas durante a retirada. Este efeito não é tão significante para a fluoxetina, já que sua meia-vida é longa, mas é relevante para a paroxetina. A paroxetina, por sua vez, produz uma síndrome de retirada mais grave que outros ISRS, pois possui efeito de antagonista muscarínico pronunciado e efeito moderado na inibição do transportador de noraepinefrina.

A substituição com fluoxetina

A substituição de ISRS de meia-vida curta por fluoxetina tem sido sugerido como uma forma de evitar sintomas de retirada intoleráveis. A síndrome de retirada da fluoxetina tem sido descrita como menos grave do que a de outras medicações da classe, o que é atribuído a sua meia-vida maior.

A fluoxetina leva de 35 a 75 dias para alcançar um estado de estabilidade e provavelmente isso pode estar relacionado com o fato de seus sintomas de retirada demorarem até algumas semanas para serem percebidos. Neste caso seria prudente esperar até 3 meses (35-75 dias + 4 semanas) para avaliar se irá ocorrer o aparecimento dos sintomas. Mas já que a fluoxetina possui propriedades um pouco diferentes, talvez seja razoável reduzir as doses em 30% da ocupação dos transportadores de serotonina, conforme a tolerância do paciente.

É preciso ter cuidado com a ideia de que a fluoxetina pode ser reduzida de forma mais rápida ou abrupta, como algumas diretrizes sugerem. Embora seu perfil farmacocinético permita uma redução gradual de seus níveis plasmáticos, uma redução mais curta (ex: 2 semanas) ainda pode representar uma retirada rápida.

Conclusões

O método proposto neste trabalho deve ser avaliado em futuros estudos.

Deve-se também levar em consideração que outros aspectos podem influenciar na variação da resposta à descontinuação, como os níveis séricos da medicação, questões relacionadas ao status enzimático, a ocupação do transportador de serotonina e outros fatores metabólicos, genéticos e psicológicos que também devem ser esclarecidos.

Algumas outras ferramentas farmacológicas e não farmacológicas talvez possam melhorar a tolerância aos sintomas de retirada e merecem ser estudadas. Algumas técnicas de psicoterapias (ex: terapia cognitivo-comportamental preventiva) já parecem diminuir as chances de recorrência da depressão durante o desmame.

Como há poucas desvantagens em fazer um desmame gradual da medicação, sugere-se que este esquema já possa ser colocado em prática e que deva ser evitada a descontinuação em 2-4 semanas. O desmame ao longo de um tempo maior e envolvendo doses menores parece ser mais eficaz na redução dos sintomas de retirada.

Referência bibliográfica:

  • Horowitz MA, Taylor D. Tapering of SSRI treatment to mitigate withdrawal symptoms. Lancet Psychiatry 2019 Published Online March 5, 2019. http://dx.doi.org/10.1016/ S2215-0366(19)30032-X

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