Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide: Como manejar?

A síndrome do anticorpo antifosfolípide é uma doença autoimune que entra na lista de “diagnósticos difíceis” que temos em Medicina. Como lidar com ela?

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A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAAF) é, como o nome sugere, uma doença autoimune que entra na extensa lista de “diagnósticos difíceis” que temos em Medicina.

Relativamente rara, suas características clínicas não são específicas e, quando a síndrome se apresenta, também não costumam ser tão óbvias. Sem contar a possibilidade de se sobrepor a outras doenças autoimunes como o lúpus eritematoso sistêmico (LES).

Geralmente, a suspeita surge na presença de tromboses venosas em sítios não habituais. Ou também em pacientes sem fatores de risco, tromboses arteriais (como AVEi em pacientes jovens) e complicações obstétricas como abortamentos repetidos ou insuficiência placentária sem motivo aparente.

Segundo os critérios de Sapporo, define-se SAAF como um desses eventos clínicos associado a exames positivos para um ou mais dos 3 anticorpos envolvidos na doença (anticoagulante lúpico, anticardiolipina e  anti-beta-2-glicoproteína I). 

A grande questão é que, por se tratar de uma doença rara, existe pouca evidência respaldando como ela deve ser manejada. Em especial, pouquíssimos ensaios clínicos randomizados ou meta-análises. Por isso mesmo, a European League Against Rheumatism (EULAR) fez uma revisão da literatura e apresentou algumas conclusões.

Classificação de risco

Primeiramente, é importante classificar a síndrome quanto ao risco que o/a paciente corre de desenvolver eventos trombóticos ou complicações gestacionais. A classificação é feita de acordo com o perfil de anticorpo antifosfolípides do paciente.

Em outras palavras, de acordo com quais anticorpos estão presentes, quantos dos 3 tipos estão presentes e em que títulos, o/a paciente pode ser classificado/a em alto ou baixo risco.  A classificação sugerida pela EULAR é:

  • Alto risco: Pacientes anticoagulante lúpico positivo em 2 ou mais medidas dentro de 12 semanas, pacientes com dupla ou tripla positividade (pacientes com 2 ou 3 tipos de anticorpos positivos, respectivamente) ou pacientes com apenas 1 tipo de anticorpo, porém em títulos persistentemente altos.
  • Baixo risco: Pacientes com apenas anticardiolipina ou anti-beta2microglobulina positivo isoladamente e em baixos ou médios títulos, especialmente se a positividade for transitória.

A definição de altos títulos já é mais complexa e depende de cada laboratório.  Em uma visão global, a EULAR considera como altos títulos acima do percentil 99 quando medidos pelo teste de ELISA padrão. No caso do anticardiolipina, existem laboratórios que medem os anticorpos IgG e IgM em unidades (unidades GPL e MPL, respectivamente). Nesse caso, valores maiores que 40 unidades para qualquer um deles configuraria o que chamamos de alto título.

Leia mais:  Em pacientes com SAAF de alto risco, rivaroxabana é pior que varfarina

Como manejar a SAAF?

Primeiramente, é importante lembrar alguns pontos mais gerais. Os principais riscos em relação à SAAF são os eventos trombóticos e obstétricos. Logo, é importante classificar o paciente quanto ao risco conforme mostramos anteriormente, além de avaliar a presença concomitante de outras doenças autoimunes ou fatores de risco para eventos trombóticos.

Se tromboses, inclusive arteriais, são uma das principais manifestações da síndrome, é importantíssimo que o paciente controle todos os fatores de risco cardiovascular para reduzir suas chances de infarto do miocárdio ou AVE.

É importante, também, lembrar que situações com maior risco de trombose venosa (perioperatório, imobilização prolongada e puerpério, por exemplo) devem ser abordadas com anticoagulação profilática com heparina. Além disso, pacientes do sexo feminino em idade fértil devem passar por aconselhamento quanto a métodos contraceptivos, planejamento gestacional e terapia de reposição hormonal no pós-menopausa.

Outros pontos relevantes ressaltados pela EULAR são:

  • Tromboprofilaxia primária: a revisão sugere que pacientes que têm apenas anticorpos antifosfolípides positivos (sem eventos vasculares ou gestacionais) com perfil de alto risco, pacientes com LES com perfil de anticorpos de alto risco e mulheres com história prévia de SAAF gestacional (mesmo sem eventos fora da gravidez) devem receber profilaxia com AAS 100mg/dia.
  • Tromboprofliaxia secundária: nos casos de trombose, tanto arterial quanto venosa, o tratamento deve ser feito com anticoagulação mediante inibidor de vitamina K como a varfarina. Nas tromboses venosas, o tempo de tratamento é o mesmo das tromboses provocadas (como as que ocorrem por imobilidade), mas deve ser vitalício se a trombose foi não provocada.

Em ambos os sítios de trombose, caso os eventos sejam recorrentes, as estratégias que podem ser tomadas são: aumentar a anticoagulação objetivando RNI entre 3 e 4, adicionar AAS ou trocar a anticoagulação por heparina (preferencialmente, de baixo peso molecular).

Os anticoagulantes orais não costumam ser eficazes e têm alto risco de recidiva, especialmente a rivaroxabana.

SAAF obstétrica: pelo risco aumentado de trombose na gestação e no puerpério, o manejo da SAAF nesse contexto é bem mais cauteloso. 

A EULAR recomenda que mulheres com perfil de alto risco, mesmo sem história prévia de complicação obstétrica, podem receber AAS durante a gestação, conforme critério clínico e outros riscos (como o de sangramento).

No caso das mulheres que já tiveram história de SAAF obstétrica, se o critério foi 3 ou mais abortamentos com menos de 10 semanas ou um parto prematuro antes das 34 semanas por eclampsia ou pré-eclâmpsia grave, a EULAR recomenda uso de AAS e heparina em dose profilática durante a gestação. A recomendação também é de manter a heparina 6 semanas após o parto (período de puerpério). 

Se a paciente teve complicações gestacionais anteriores que foram suspeitas como SAAF, mas sem fechar os critérios exatos, a questão é mais controversa. AAS e heparina podem ser usados se a equipe assistente achar necessário, pesando riscos e benefícios.

Se a mulher teve episódios repetidos de SAAF obstétrica apesar do uso profilático de AAS e heparina, algumas estratégias incluem aumentar a heparina para dose terapêutica durante gestação ou adicionar outras medicações como a hidroxicloroquina, prednisolona em baixa dose ou até imunoglobulina IV durante o primeiro trimestre (sempre pesando os riscos e benefícios para o feto). Nesses últimos casos, existe pouca evidência, então não há doses bem estabelecidas a serem sugeridas. 

Já em mulheres com história prévia de eventos trombóticos, independente da história prévia de SAAF obstétrica, devem receber AAS e heparina em dose terapêutica durante a gravidez a fim de evitar novos eventos.

SAAF catastrófica: essa é uma forma muito grave da SAAF, em que ocorrem eventos trombóticos múltiplos e sistêmicos, podendo levar a falência orgânica. 

Os principais precipitantes são a descontinuação de anticoagulação em pacientes que já tem diagnóstico, a falta de tromboprofilaxia em situações de alto risco trombótico (especialmente no perioperatório) e infecções.

Claramente, então, a principal medida preventiva é orientar os pacientes quanto à importância de manter o uso das medicações. Além disso, é importante lembrar da prescrição da tromboprofilaxia química nos situações necessárias.

Caso o paciente desenvolva SAAF catastrófica, além da resolução da causa precipitante (ex: infecções), é recomendado associar heparina em dose plena, corticoides e imunoglobulina (ou plasmaférese). Se o quadro não for revertido com essas medidas, alguns artigos sugerem até mesmo a depleção de células B (com rituximab) ou medicações anticomplemento (eculizumab).

Evidências futuras

Por sua raridade e gravidade, é difícil encontrar evidências científicas quanto ao manejo da SAAF. Logo, muitas condutas dependem do famoso feeling da equipe médica assistente.

As pesquisas sendo planejadas buscam consolidar melhor essas evidências já apresentadas, além de testar novas táticas de manejo. Algumas programam investigar a utilidade de estatinas na SAAF e outras buscam entender melhor as possibilidades da hidroxicloroquina como opção durante crises e manutenção.

Em breve, teremos guidelines mais sólidos no manejo dessa doença.

 

Referências:

  • Tektonidou MG, et al. EULAR recommendations for the management of antiphospholipid syndrome in adults. Annals Of The Rheumatic Diseases, [s.l.], p.1-9, 15 maio 2019. BMJ. http://dx.doi.org/10.1136/annrheumdis-2019-215213. Disponível em: Acesso em: 13 jul. 2019.

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