Tempos de pandemia de Covid-19: tempos de luto

A Covid-19 retirou cenários amortecedores do luto: não há trajetória de cuidado compartilhada nem informação, pois as equipes estão sobrecarregadas.

Escrevo esse texto no dia em que o Brasil declara 50.000 mil óbitos no país pela Covid-19. Uma dizimação humanitária nunca antes vista, nunca antes gerida, nunca antes imaginada.

Em pleno século 21, com tecnologias biomédicas, onde robôs entraram nos centros cirúrgicos, com intervenções de saúde inovadoras que prolongam vidas e aumentam a sobrevida de milhares de pessoas que há dez anos não teriam qualquer chance, hoje, seguimos determinações da Organização Mundial da Saúde para nos manter em casa, distanciados fisicamente do mundo social, das relações afetivas de forma contínua e imprevisível, pois fugimos de um vírus que já matou no mundo, 463 mil pessoas até o momento (junho/2020).

mulher sendo consolada por seu luto na covid-19

O luto

Como psicóloga especializada em luto e perdas há mais de dez anos, com uma clínica que assiste exclusivamente pacientes enlutados, por morte, entendo o quanto a trajetória do cuidado é fundamental para a construção da narrativa da morte e suas repercussões no luto pós óbito. Na grande maioria das vezes, um bom cuidado das equipes de saúde, que consideram não apenas técnicas intervencionistas, mas também escuta empática e ativa, compaixão e sensibilidade na comunicação, auxílio na expressão emocional e boa relação equipe-paciente-família, mesmo diante de prognósticos graves em doenças sem perspectivas curativas, podem transformar o processo de enfrentamento da morte e facilitar as  resposta do luto agudo no momento do pós-óbito imediato.

Leia também: Pandemia por Covid-19 e o risco de suicídio

A Covid-19 retirou esses cenários amortecedores do luto: não há trajetória de cuidado compartilhada, não há informação adequada, pois as equipes estão sobrecarregadas. Não há tempo ou disponibilidade para muitas equipes trabalharem a relação com o paciente e família, seja pelo risco de contaminação, pelos cuidados intensivos exigidos em um curto espaço de tempo, seja pela ausência de vínculo. Desta forma, todas as perspectivas apontam para caminhos emocionalmente tortuosos e desafiantes relacionados à saúde mental dos que cuidam e dos que sobrevivem à perda. Aspectos traumáticos das perdas pela Covid-19 deixarão marcas profundas, na sociedade de uma forma geral.

Processos de lutos graves e complicados que acometem a minoria dos enlutados, variam normalmente entre 8 a 12% da população geral, e, segundo algumas discussões recentes em grupos de teóricos e pesquisadores internacionais que se dedicam à temática do Luto Complicado, podemos ter um acréscimo de até 30% de casos graves de pessoas enlutadas. Espera-se que o impacto psíquico nas respostas de luto, com as sobreposições de sofrimento emocional  por comorbidades psiquiátricas, como ansiedade e depressão, seja de, pelo menos, uma década.

Vivemos tempos de luto e tempos de risco emocional severo.

No Brasil, são 50 mil mortos no momento, e se para cada uma morte temos em torno de quatro a onze pessoas apresentando reações agudas de luto, podemos prever que em torno de 200 mil pessoas estarão em intenso sofrimento emocional. Esses números não são apenas assustadores e dramáticos, são também alarmantes. Portanto, as ações precoces voltadas para o luto, nesse momento, são urgentes.

Veja mais: Estresse e isolamento: o ‘novo normal’ de ser profissional de saúde durante a Covid-19

A resposta de luto é uma reação normal, esperada e prevista quando perdemos um ente querido, quando um vínculo significativo é rompido. Naturalmente nos enlutamos e, algum tempo neste processo, pranteamos e lamentamos quem perdemos.

Diante da pandemia da Covid-19 com múltiplas mortes que podem acontecer em uma mesma família pela virulência do SARS-CoV-2, o processo de luto pode encontrar variáveis refratárias as intervenções psicológicas. Como sobreviventes de uma pandemia, transtornos ligados ao estresse agudo e traumático podem repercutir na qualidade de vida emocional de muitas pessoas, empobrecendo a funcionalidade vital, chegando a situações de franco adoecimento psíquico levando até ao suicídio.

O processo propriamente de luto, pode perder, portanto, suas características de normalidade.  As circunstâncias, o contexto e as consequências da morte no cenário da Covid-19 transformam as respostas de luto de sobremaneira que ainda teremos que aguardar alguns anos para compreender a dinâmica desse luto, diferente também, de tudo que conhecemos deste processo.

Urge, portanto, a capacitação das equipe de saúde, sobretudo psicólogos e psiquiatras para que tenham conhecimento, instrumentalização e maior arsenal de intervenções apropriadas que pretendam mitigar os possíveis complicadores de um cenário de risco psíquico sem proporções. O adoecimento por luto, talvez, possa se tornar uma questão de saúde púbica.

Por ser um assunto tão importante neste momento, participarei da próxima PEBMED Live, com a médica paliativista Carolina Neiva, para que possamos discutir a melhor abordagem para os enlutados nesse momento e o papel do médico. A live vai acontecer no instagram @pebmed_apps, na próxima segunda-feira, dia 13, às 21h. Não perca!

Referências bibliográficas:

  • The pandemic’s 4th wave; 2020. Em: https://hcldr.wordpress.com/2020/04/07/the-pandemics-4th-wave
  • STROEBE, M.; SHUT, H; VAN DEN BOUT, J. Complicated Grief – scientific foundations for heathcare professionals. Nova York: Routledge. 2013
  • EISMA, M.; BOELEN,P.; LENFERINK,L.I.M. Prolonged grief disorder following the Coronavirus (COVID-19) pandemic. Psychiatry Research; 288; 2020 https://www.elsevier.com/locate/psychres
  • ADEC –Grief, Bereavement and Death at a Distance: perspectives on the impact to the community. Conferência oral; abril; 2020. https://www.adec.org/
  • SHEAR, K. Grief in the coronavirus pandemic; Center for Complicated Grief, Columbia University; Conferência oral; abril; 2020.

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