Teoria da imunidade de rebanho para Covid-19 funciona?

A imunidade de rebanho naturalmente induzida pela infecção de boa parte da população funcionou na epidemia de Covid-19? Veja análise.

E esperada teoria da imunidade de rebanho naturalmente induzida pela infecção de boa parte da população não se concretizou na prática. Ou pelo menos na pandemia de Covid-19, associada do coronavírus SARS-CoV-2, possivelmente não veremos fenômenos semelhantes.

O conceito de imunidade de rebanho consiste na diminuição / redução da propagação de um vírus em uma determinada população devido ao grau da imunidade existente em uma proporção X (geralmente 60 a 67% da população), o que reduz a chance do vírus infectar/encontrar indivíduos susceptíveis. Pode ser didaticamente interpretado como uma “barreira espacial”, com a redução gradual da probabilidade de ser transmitido a indivíduos suscetíveis em uma população e pode ser induzida de forma natural, por disseminação da doença na população, ou por imunização por vacina e o vírus acaba por ter a transmissão significativamente diminuída e tende a desaparecer ou a causar números endêmicos não alarmantes. Alguns autores sugerem inclusive que taxas de 10 a 40% da população infectada seriam suficientes para proporcionar a imunidade de rebanho (Anderson et al., 2020; Fontanet & Cauchemez, 2020; Frederiksen et al., 2020; Vignesh et al., 2020; Ruppel et al., 2021; Sridhar & Gurdasani, 2021).

Desde o início da polêmica pandemia de Covid-19, alguns governantes, políticos, pesquisadores e pensadores defenderam a hipótese da imunidade de rebanho natural como uma das “estratégias” a serem adequadas para evitar crises econômicas resultantes de lockdowns, confinamentos e outras medidas emergenciais, especialmente em países em desenvolvimento com baixos recursos de autossubsistência ou sistemas de saúde precários (Ruppel et al., 2021). Muitos dos defensores de tal hipótese, quando confrontados com as possíveis consequências para o sistema de saúde ou o número de mortes que poderiam resultar do descontrole da pandemia, suprimiram suas defesas. Outros elaboraram estratégias alternativas, como exemplo a não testagem em massa de indivíduos, como forma de sustentar os pensamentos.

Por outro lado, diversos programas nacionais ou internacionais de controle de doenças como tuberculose, malária e HIV seguem deteriorados frente ao foco intenso dedicado ao controle de Covid-19 em todo o mundo, e estamos assistindo ao detrimento da economia de diversos países, com taxas agravantes de desemprego e outros índices negativos. Muitos países não apresentam recursos nem para a compra de testes diagnósticos para a detecção de SARS-CoV-2, a estruturação de cuidados médicos aos doentes com Covid-19, vacinas ou mesmo não são prioritários na distribuição de recursos para o combate à doença (Ruppel et al., 2021).

Uma das respostas negativas à teoria da imunidade de rebanho pode ser como a que ocorreu em Manaus em janeiro de 2021. A capital do estado do Amazonas, Brasil, com população aproximada de dois milhões de indivíduos, densidade de 158 habitantes / km² e elevada proporção de indivíduos jovens, voltou a sofrer com nova epidemia com o elevado número de casos e rastro de óbitos por Covid-19. Desde a descrição do primeiro caso de infecção por SARS-CoV-2 em Manaus, em 13 de março de 2020, a cidade apresentou uma epidemia explosiva com pico em maio de 2020 e mortalidade 4,5x acima do esperado: em 1 de outubro de 2020, contabilizaram 2642 mortes confirmadas por Covid-19 (1193 / milhão de habitantes) e 3789 mortes por síndrome do desconforto respiratório agudo (SRDA) (1710 / milhão de hab.) na cidade. É importante ressaltar que os casos de Covid-19 se distribuíram de maneira uniforme nas diferentes faixas etárias na região (Buss et al., 2021; Sridhar & Gurdasani, 2021).

A pandemia do vírus SARS-CoV-2 teve sua origem possivelmente relacionada ao contato com animais silvestres exóticos.

Estudo avalia imunidade de rebanho para COVID-19

Buss et al. (2021) descreveram um estudo sorológico por imunoensaio quimioluminescente (AdviseDx, Abbott, com sensibilidade > 90% e especificidade > 99%), em amostragem de conveniência da população local de Manaus, realizado em junho de 2020, período aproximado de um mês após o pico epidêmico inicial da pandemia de Covid-19 até aquele momento. Em torno de 44% dos indivíduos da população de Manaus apresentaram anticorpos do tipo IgG para a proteína do nucleocapsídeo (N) de SARS-CoV-2. Com a correção para casos descritos sem resposta humoral (~8% dos infectados) e redução da produção dos anticorpos nos casos de infecção moderada (em torno de 100 dias após a infecção), a taxa de ataque da doença foi considerada como 66% nesse período, aumentando para 76% em outubro do mesmo ano. São consideradas nos estudos as limitações referentes à não pesquisa de anticorpos neutralizantes ou estudos da imunidade celular, o uso de outros alvos imunogênicos virais e outros aspectos importantes. Porém, é destacável que essas taxas observadas representam a maior taxa de ataque observada em todo o território brasileiro, quando comparado com o mesmo índice com valores de aproximadamente 29% em São Paulo, por exemplo (1070 mortes por Covid-19 / milhão de hab e 1652 mortes por SRDA / milhão de hab.), e com outros países do mundo, como Reino Unido (620 / milhão de hab.), França (490 / milhão de hab.), e Estados Unidos (625 / milhão de hab.), no mesmo período. Os autores passaram, então, a considerar Manaus como uma população “sentinela”, já que não foram assumidas medidas de controle adequadas antes, durante e depois da epidemia local.

E um novo fenômeno epidêmico voltou a ocorrer em janeiro de 2021 resultando em novos custosos altos números de casos e acúmulo de trágicas mortes pela infecção por SARS-CoV-2, nova crise no sistema de saúde local, inclusive com escassez de suprimento de oxigênio em instituições de saúde, representando nova e alarmante epidemia explosiva. Mesmo com uma soroprevalência em torno de 76% ou mais na região, ao final de 2020, e orientações quanto a prática do distanciamento social e uso de máscaras, verificou-se que a imunidade de rebanho não ocorreu. E, considerando o caso de Covid-19 e a cidade sentinela Manaus, diversos motivos possíveis sugerem que teoria da imunidade de rebanho não se aplica para Covid-19, incluindo:

  • A ausência de imunidade cruzada para Covid-19 e as novas variantes de SARS-CoV-2, detectadas em Manaus em janeiro de 2021, resultando em novas infecções por estirpes distintas;
  • A imunidade humoral e celular não duradoura para a doença Covid-19 possibilita casos de reinfecção;
  • A imunidade humoral e celular gerada, mas não protetora, em casos leves ou moderados de Covid-19 possibilitam casos de reinfecção.

Dessa forma, as ocorrências epidêmicas de Covid-19 em Manaus são significativamente alarmantes quando inferidas para outras localidades que apresentam maior proporção de idosos na população e as descritas taxas < 20% de soroprevalência, na maioria dos países até o momento. Tais achados adicionalmente sugerem que a pandemia de Covid-19 pode se alongar por períodos longos e indefinidos, e que as estratégias vacinais podem não ser suficientes. Além disso, pode ser praticamente impossível proteger populações suscetíveis ou gerar proteção de categorias específicas de indivíduos devida à dificuldade de detecção de assintomáticos ou separação de indivíduos saudáveis de vulneráveis ou com comorbidades. Com o reconhecimento da gravidade da doença em diversas faixas etárias (não somente idosos) e a substancial morbidade no pós-Covid-19, alerta-se para os altos riscos de exposição dos indivíduos a um vírus que ainda não se conhece profundamente. Muitos autores são categóricos em afirmar que a imunidade de rebanho natural, de fato não se aplica para Covid-19, e Manaus, infelizmente, é um laboratório real. As estratégias de imunização ativa por programas de vacinação efetivos ainda permanecem como uma das únicas esperanças (Anderson et al., 2020; Frederiksen et al., 2020; Vignesh et al., 2020; Ruppel et al., 2021; Sridhar & Gurdasani, 2021).

Referências bibliográficas

  • Anderson RM, Vegvari C, Truscott J, Collyer BS. Challenges in creating herd immunity to SARS-CoV-2 infection by mass vaccination. Lancet. 2020 Nov 21;396(10263):1614-1616.
  • Buss LF, Prete CA Jr, Abrahim CMM, Mendrone A Jr, Salomon T, de Almeida-Neto C, França RFO, Belotti MC, Carvalho MPSS, Costa AG, Crispim MAE, Ferreira SC, Fraiji NA, Gurzenda S, Whittaker C, Kamaura LT, Takecian PL, da Silva Peixoto P, Oikawa MK, Nishiya AS, Rocha V, Salles NA, de Souza Santos AA, da Silva MA, Custer B, Parag KV, Barral-Netto M, Kraemer MUG, Pereira RHM, Pybus OG, Busch MP, Castro MC, Dye C, Nascimento VH, Faria NR, Sabino EC. Three-quarters attack rate of SARS-CoV-2 in the Brazilian Amazon during a largely unmitigated epidemic. Science. 2021 Jan 15;371(6526): 288-292.
  • Fontanet A, Cauchemez S. COVID-19 herd immunity: where are we? Nat Rev Immunol. 2020 Oct;20(10):583-584.
  • Frederiksen LSF, Zhang Y, Foged C, Thakur A. The Long Road Toward COVID-19 Herd Immunity: Vaccine Platform Technologies and Mass Immunization Strategies. Front Immunol. 2020 Jul 21;11:1817.
  • Ruppel A, Halim MI, Kikon R, Mohamed NS, Saebipour MR. Could COVID-19 be contained in poor populations by herd immunity rather than by strategies designed for affluent societies or potential vaccine(s)? Glob Health Action. 2021 Jan 1;14(1):1863129.
  • Sridhar D, Gurdasani D. Herd immunity by infection is not na option. Science. 2021 Jan 15; 371(6526): 230-231.
  • Vignesh R, Shankar EM, Velu V, Thyagarajan SP. Is Herd Immunity Against SARS-CoV-2 a Silver Lining? Front Immunol. 2020 Sep 30;11:586781.

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