Terapia transfusional: hemocomponentes modificados e suas indicações

Vamos abordar de maneira sucinta e objetiva os principais hemocomponentes disponíveis e suas respectivas indicações durante a assistência.

Diariamente, seja nos hospitais de cidades do interior do Brasil seja nas grandes capitais, nos deparamos com um dilema ao lidar com o paciente com citopenias em sangue periférico: será que devo transfundí-lo(a)? Se sim, qual hemocomponente devo utilizar? E mais, não é preciso comparecer a um círculo de hematologistas ou hemoterapeutas para ver que essa questão é extremamente recorrente. Você precisa apenas ser médico para se ver questionado ora ou outra sobre tal procedimento. Abaixo, vamos abordar de maneira sucinta e objetiva os principais hemocomponentes disponíveis e suas respectivas indicações para que isso não seja mais um problema durante a assistência.

Leia também: Estratégia de transfusão restritiva vs. liberal: recomendações para RN com extremo baixo peso ao nascer

Terapia transfusional: hemocomponentes modificados e suas indicações

Sangue total, a salvação de uma época

As indicações de transfusão de sangue total a cada dia se tornam mais obsoletas frente à possibilidade técnica de fracionamento de hemocomponentes, o que torna o procedimento mais seguro e mais acurado. O sangue total, como o próprio nome já diz, se refere a transfusão de hemácias, plaquetas, fatores de coagulação assim como proteínas dispersas no plasma do doador.  Muito utilizado antigamente como expansor volêmico (coloide), principalmente em situações de choque hemorrágico, hoje tem suas indicações restritas à indisponibilidade dos demais hemocomponentes.

Hemocomponentes desleucocitados ou filtrados

Antes de descrevermos suas principais características e indicações é importante destacar: no que diz respeito a hemocomponentes modificados, as regras se aplicam tanto a transfusão de concentrado de hemácias quanto à administração de plaquetas. Sabendo disso, vamos lá. Produtos celulares derivados do sangue total (concentrado de hemácias e plaquetas) são contaminados com pequenas quantidades de leucócitos do doador e, dessa forma, expõe o receptor a antígenos HLA presentes na membrana destas células. Dessa forma, o contato com esse complexo de histocompatibilidade gera, no receptor, o desenvolvimento de resposta imune adaptativa contra os diversos antígenos ali presentes. A desleucocitação consiste no uso de um filtro de leucócitos que diminui a carga dessas células no hemocomponente escolhido.

  • Vantagens:
    • Redução de refratariedade a transfusão plaquetária a longo prazo;
    • Redução da transmissão de CMV;
    • Redução nos casos de reação febril não hemolítica;
    • Redução de aloimunização por exposição ao HLA relacionada a transfusão.
  • Indicações clássicas:
    • Hemoglobinopatias, anemias autoimunes, doenças plaquetárias com perspectiva de transfusão, doenças onco-hematológicas e aplasia de medula óssea, antecedente de 2 ou mais reações febris não hemolíticas, síndromes de imunodeficiências congênitas;
    • Transfusão intrauterina, HIV positivo com sorologia para CMV negativo, transplante de órgãos sólidos com doador e receptor com sorologia para CMV negativa, gestantes com CMV negativo, Recém-nascidos baixo peso (< 1.200 g) de mães com sorologia para CMV negativa ou desconhecida.
    • Pacientes com perspectiva de politransfusão;
    • Pacientes com perspectiva de transplante de medula óssea;
    • Pacientes submetidos a tratamentos onco-hematológicos.

Hemocomponentes desleucocitados e irradiados

A irradiação de hemocomponentes consiste na exposição de tais produtos a radiação-ionizante (25Gy) com a intenção de depletar a população linfocitária do doador. Isso tem como principal objetivo a prevenção da Doença Enxerto-Hospedeiro associada a transfusão (DECH-AT), caracterizando pela expansão clonal desses linfócitos em receptores susceptíveis.

  • Indicações clássicas:
    • Pacientes com linfoma de Hodgkin;
    • Pacientes expostos a análogos de purina: cladribina, fludarabina, deoxicorformicina;
    • Pacientes submetidos a transplantes (Medula óssea, sangue de cordão, órgãos sólidos);
    • Pacientes em uso de terapia imunossupressora com doenças hematológicas (até 6 meses de exposição);
    • Pacientes com imunodeficiências congênitas graves;
    • Pacientes prematuros e baixo peso (< 1.200 g) ou transfusão intrauterina.

Hemocomponentes lavados e reações alérgicas graves

A transfusão de hemácias lavadas é reservada na prática clínica, basicamente, para pacientes com reações alérgicas graves a transfusão de hemocomponentes (como choque anafilático e incluindo pacientes com deficiência severa de IgA e reações alérgicas recorrentes) e transfusões intrauterinas. Consiste na exposição do produto a solução salina isotônica com objetivo de redução de proteínas alergênicas do plasma do doador. É um procedimento válido, porém muito dependente de técnica correta com objetivo de reduzir infecções do produto, sendo, portanto, preferido em muitas ocasiões o uso de hemocomponentes plasma reduzidos.

Concentrado de Hemácias fenotipado – sangues raros e politransfundidos

Nesse tópico faremos uma observação importante: o uso de hemocomponente fenotipado serve apenas para Concentrado de Hemácias!!! Mas por que será? Vamos lembrar um pouco de imuno-hematologia.

Na membrana celular dessas hemácias possuímos diversas glicoproteínas que funcionam como uma identidade. Dessa forma, o sistema imune reconhece (ou pelo menos deveria reconhecer, mas isso é um tema para outro tópico) que não deve produzir anticorpos contra essas proteínas. Assim, desde quando nascemos, mas principalmente após o amadurecimento do sistema imune (que começa por volta dos 6 meses de idade aproximadamente), já começamos a produzir certos anticorpos contra proteínas não próprias. Em outros casos somos expostos a determinados antígenos que iniciam a cascata de produção de anticorpos. Essas glicoproteínas são os sistemas sanguíneos: ABO, Rh, Kell, Duffy, Diego, Lewis, MNS, P, Kidd, dentre outros. Alguns desses antígenos possuem extrema relevância clínica por induzirem reações transfusionais graves quando há incompatibilidade transfusional.

Mas como saber quais pacientes necessitam de hemocomponentes fenotipados ?

Em geral, pacientes politransfundidos, com diagnóstico de anemias hemolíticas autoimunes ou mulheres em idade fértil expostas a gravidez prévia com incompatibilidade ABO/Rh são os principais candidatos. Mas existe um teste pré-transfusional, chamado de Pesquisa de Anticorpos Irregulares (ou apenas PAI para os íntimos) que identifica a presença de anticorpos específicos a frio ou a quente no plasma do receptor. Prosseguimos então com a realização do painel de hemácias que identifica contra quais antígenos aqueles anticorpos previamente identificados foram produzidos. Mas chega de conversa e vamos ser objetivos:

  • Indicações clássicas:
    • Sexo feminino, idade fértil, PAI negativa >> preferir CH negativo para Kell-1.
    • Receptores PAI positivos >> compatibilizar para anticorpos específicos >> Recomendável sempre compatibilizar para antígenos mais imunogênicos: Rh (E,e,C,c) e Kell (K1)
    • É recomendado, se possível, utilizar hemocomponentes compatíveis para sistema Rh, Kell, Duffy, Kidd, MSN para pacientes que entrarão em esquema de politransfusão e são PAI negativo.

Saiba mais: Choosing Wisely para anemia e transfusão: 5 práticas não recomendadas

Plaquetas Randômicas x Pool de Plaquetas x Plaquetas por aférese

Em resumo: quando diferenciamos esses componentes, estamos nos referindo ao número de doadores utilizados para obtenção de uma unidade terapêutica de plaquetas (equivalente a 3×10¹¹ plaquetas) e sobre a técnica utilizada para esta coleta. De maneira geral:

  • Plaquetas randômicas: obtidas a partir da centrifugação do PrP (Plasma rico em Plaquetas); a dose terapêutica do adulto com peso aproximado de 70 kg é de 5 UI de concentrado de plaquetas (advindos de 5 doações de sangue total). É aceitável também, principalmente naqueles casos em que o peso do paciente difere muito do valor supracitado, uma dose estimada de 1 UI a cada 7-10 kg. Esse método apresenta maior contaminação por hemácias devido ao método de processamento.
  • Pool de plaquetas: obtido a partir da técnica de separação da camada leucoplaquetária (“buffy coat“). Em geral advém de 4-5 coletas de doadores distintos. Menor contaminação por hemácias se comparado à técnica anterior.
  • Plaquetas por aférese: Obtida a partir de doador único em máquina de aférese. Possui maior quantidade de plasma. Menor exposição à diferentes HLA’s (antígeno leucocitário humano) e HPA’s (antígeno plaquetário humano). Menor risco de contaminação bacteriana e menor risco de GVHD (reação enxerto-hospedeiro transfusional).

Deve-se dar preferência para menor exposição a diversos doadores a fim de se evitar fenômenos imune-mediados a longo prazo assim como a menor exposição a contaminação bacteriana. No entanto, diversos estudos mostram que a escolha entre Pool e Aférese pouco impacta no que diz respeito a infecção, sendo que o segundo procedimento é mais caro que o primeiro. Dessa forma, reservamos a doação por aférese àqueles pacientes que serão submetidos a múltiplas transfusões de plaquetas e eventualmente transplante de medula óssea.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Guia para Uso de Hemocomponentes, Departamento de Atenção Especializada; 2ª edição, 3ª reimpressão. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2016.
  • Condutas para a Prática Clínica: Hemoterapia. Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais.
  • ASH-SAP: American Society of Hematology Self-Assessment Program. Sixth edition, 2016.

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