Transtornos mentais como fator de risco para infecção, hospitalização e morte por Covid-19

Há um esforço para se entender as implicações da Covid-19 nos transtornos mentais. Contudo, o sentido inverso tem sido menos explorado.

Há uma larga produção científica que procura entender as implicações da pandemia de Covid-19 nos transtornos mentais. Contudo, o sentido inverso dessa relação — como as condições psiquiátricas afetam a doença — tem sido menos explorado. As doenças psiquiátricas se apresentam como potenciais facilitadoras no processo de exposição ao SARS-CoV-2, uma vez que podem interferir em padrões de comportamento relevantes para os cuidados de saúde. Além disso, diferentes transtornos mentais já foram associados a quadros clínicos identificados como fatores de risco para complicações graves da infecção, como doenças cardiovasculares e diabetes. Agora, um estudo recente parece demonstrar que pacientes diagnosticados com transtornos mentais, independente de suas comorbidades clínicas, podem estar sob maior risco de complicações graves e morte por Covid-19.

Como transtornos mentais afetam pacientes com Covid-19

Método do estudo

Um estudo ainda não publicado, mas já disponível na versão online da World Psychiatry, utilizou uma base de dados de prontuários eletrônicos da IBM para avaliar a relação entre os diagnósticos de transtornos psiquiátricos e de Covid-19. A base é alimentada por 360 hospitais e mais de 300 mil profissionais espalhados pelos EUA. Dados de mais de 60 milhões de pacientes foram analisados para o estudo. Apesar de um trabalho complexo, o desenho do estudo era simples: calcular a razão de chances para infecção, hospitalização e morte por Covid-19 entre pacientes com e sem transtornos mentais diagnosticados, ajustando para faixas etárias, gênero, etnia e comorbidades. Para fins de análise estatística, os diagnósticos foram ainda divididos em TDAH, transtorno bipolar, transtorno depressivo e esquizofrenia.

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Para transtornos com diagnóstico recente, definido no estudo como realizado há até um ano, havia um grande aumento nas chances de infecção por Covid-19, com resultados mais significativos para depressão (OR=10,43; 95% CI=10,10-10,76) e esquizofrenia (OR 9,89; 95% CI=8,68-11,26). Mais interessante do que isso é o fato de que, apesar da relação perder força, ela se mantinha significativa para todos os transtornos mesmo após a correção para comorbidades médicas. Novamente, o efeito mais pronunciado ocorreu para pacientes com depressão (OR=7,64; 95% CI=7,45-7,83) e esquizofrenia (OR=7,34; 95% CI=6,65-8,10). Na comparação entre necessidade de hospitalização e morte por Covid-19, os achados também são desfavoráveis para pacientes com distúrbios psiquiátricos. No somatório, pacientes com Covid-19, mas sem diagnóstico recente de transtorno mental, foram internados menos frequentemente (18,6%) do que pacientes com Covid-19 e diagnóstico recente de transtorno mental associado (27,4%) (p < 0,0001). Em relação à letalidade da doença, os pacientes com transtorno psiquiátrico de diagnóstico recente também foram à óbito mais frequentemente (8,5%) do que aqueles sem essa condição (4,7%) (p < 0,0001).

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Os autores levantam diversas hipóteses para explicar a relação encontrada no estudo, incluindo fatores ambientais, comportamentais e possíveis relações biológicas. Pacientes psiquiátricos estão mais comumente sujeitos a piores condições socioeconômicas e a ambientes de trabalho mais insalubres. Eles também fazem mais visitas hospitalares e mais frequentemente residem em instituições, lares e até mesmo penitenciárias, o que pode facilitar a disseminação do SARS-CoV-2. Em termos comportamentais, pacientes com transtornos mentais tendem a ter maiores dificuldades em assimilar informações ou aderir a condutas preventivas de diferentes formas. Um paciente com TDAH, por exemplo, pode se esquecer de usar máscaras, higienizar as mãos ou manter o distanciamento em uma interação social. Já um paciente com depressão poderia apresentar um quadro de desmotivação no qual o autocuidado é negligenciado. Por último, para além das comorbidades clínicas sabidamente relacionadas aos transtornos psiquiátricos, os autores especulam se os estados inflamatórios associados à patogênese de depressão, esquizofrenia e transtorno bipolar não poderiam atuar como uma base fisiopatológica compartilhada com efeito sinérgico para as complicações da Covid-19.

Conclusão

Por fim, é válido ressaltar que, para além do entendimento teórico, os resultados expostos podem trazer implicações relevantes em diferentes níveis. Em relação à prática clínica, a assimilação desse contexto pelos profissionais de saúde pode trazer à luz a relevância de promover o autocuidado desses pacientes com maior ênfase em meio à pandemia. Em um nível mais amplo, a discussão em relação a grupos prioritários para vacinação se aquece à medida que nos aproximamos do momento de imunizar a população. A partir dos dados analisados nesse estudo, pacientes psiquiátricos podem e devem ser pensados como população de risco, tanto sob o ponto de vista utilitarista, sanitário e coletivo quanto sob a perspectiva ética de evitar dano e sofrimento individual.

Apesar das limitações relacionados a estudos realizados a partir de bases de dados e da necessidade de mais evidências para corroborar esse achado, é possível acolher a ideia de que pacientes com transtornos mentais estão provavelmente sob maior risco de contaminação, hospitalização e morte por Covid-19. Esse conhecimento ganha corpo em uma etapa em que a comunidade médica e científica ultrapassa a sombra do desconhecimento pleno em relação à pandemia e se encontra na margem de um momento de maior sobriedade e ação. Nesse cenário, achados como esse devem ampliar nossa lucidez para que decisões mais embasadas minimizem os danos e otimizem nossos acertos na batalha contra o coronavírus.

Referências bibliográficas:

  • DE Hert M, Correll CU, Bobes J, Cetkovich-Bakmas M, Cohen D, Asai I, et al. Physical illness in patients with severe mental disorders. I. Prevalence, impact of medications and disparities in health care. World Psychiatry. 2011 Feb;10(1):52–77. doi: 10.1002/j.2051-5545.2011.tb00014.x.
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