Transtornos relacionados ao estresse: como identificar possíveis casos durante a Covid-19?

Com o crescente número de casos por Covid-19 no Brasil, há intensa divulgação midiática o que pode gerar transtornos de estresse.

Recentemente observamos um aumento crescente de casos por Covid-19 no Brasil. Isso tem sido acompanhado por intensa divulgação midiática e a discussão sobre uma série de medidas comportamentais. O rascunho de um artigo recente, pré-publicado no Lancet Psychiatry em março, foi feito na China durante o surto dessa mesma doença e encontrou importantes dados de prevalência de transtornos mentais associados a este momento. Dentre eles estão os transtornos relacionados ao estresse. Por isso, este mês optamos por escrever um pouco sobre esses transtornos.

homem com a mão na cabeça por transtorno de estresse relacionado à covid-19

Transtornos relacionados ao estresse

Vamos começar entendendo cada um deles.

1. Transtorno de ajustamento

Para diagnosticar este transtorno, o paciente deve ter sofrido com um ou mais eventos estressores que desencadeiam alterações comportamentais e emocionais até três meses após seu início. Junto com essas alterações deve ocorrer prejuízo funcional importante nas diversas áreas da vida e/ou grande sofrimento, mas desproporcional ao evento que desencadeou o quadro.

É importante destacar aqui a natureza do estressor: ela é diferente dos quadros a seguir, podendo envolver questões referentes ao trabalho, relacionamentos (ex: divórcio), problemas financeiros, falência ou doenças, por exemplo. Alguns sintomas que compõem esse quadro são ansiedade, insônia, preocupação, tristeza, humor deprimido, raiva, dificuldade de concentração, etc. Ele pode se apresentar de forma concomitante ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

2. Transtorno de estresse agudo

Este transtorno guarda muitas semelhanças com o TEPT, sendo de menor duração. Aqui o paciente deve ter sido exposto à violência sexual, alguma forma de lesão grave ou ameaça de morte. Isso pode ter acontecido ao ter tomado conhecimento de que o episódio estressor ocorreu com alguém que lhe é próximo, ter vivido diretamente o episódio, ter sofrido exposição extrema ou recorrente aos detalhes do episódio (destaque para os exemplos de profissionais que trabalham com segurança ou na área de saúde) ou ter testemunhado o episódio.

Além disso deve apresentar nove características que envolvem sintomas dos seguintes grupos: humor negativo, evitação (evitar lembranças, pensamentos, etc), sintomas intrusivos (como lembranças ou sonhos), aumento da excitabilidade (aqui exemplificados como episódios de raiva, problemas relacionados ao sono, déficit de concentração, problemas de vigilância ou sobressalto desproporcional) ou sintomas de características dissociativas (percepção alterada do ambiente ao redor ou da realidade e amnésia dissociativa).

O quadro surge até três dias após o trauma, mas persiste até um mês após o mesmo. Após esse período ou há a resolução do transtorno ou ele pode evoluir para TEPT.

Leia também: Transtornos relacionados ao estresse aumentam o risco de infecções?

3. Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)

Guarda muitas semelhanças ao transtorno de estresse agudo. Por exemplo, o paciente também deve ter sido exposto à violência sexual, alguma forma de lesão grave ou ameaça de morte, sendo que deve ter passado por pelo menos uma das experiências a seguir: ter tomado conhecimento que o evento ocorreu com alguém que lhe é próximo, ter vivido diretamente o episódio, ter sofrido exposição extrema ou recorrente aos detalhes do episódio (ex: pessoas ligadas à segurança ou à área de saúde) ou ter testemunhado o episódio.

Contudo, ele obrigatoriamente deve ter pelo menos 1 sintoma intrusivo (revivescência – ex: pesadelos, flashbacks, etc), 1 sintoma evitativo (ex: de gatilhos que o façam lembrar do episódio, falar sobre o ocorrido, evitar certas localizações, etc), 2 sintomas de cognição ou humor negativos (ex: não se recordar de detalhes do trauma, culpa, crenças negativas, etc) e 2 manifestações de aumento da excitabilidade (hipervigilância, dificuldade para dormir ou se concentrar, irritabilidade, etc) com duração superior a 1 mês.

Transtornos de estresse na Covid-19

Observamos quadros que guardam semelhanças entre si, mas com gravidade progressiva e potencialmente causadores de sofrimento e/ou alterações funcionais na vida do paciente. No geral, o evento estressor deve causar medo e a consequência é o surgimento de um transtorno que transcende a capacidade do indivíduo de manter seu equilíbrio emocional e psíquico. Podem também estar presentes queixas físicas, incluindo cefaleia, fadiga, alterações gastrointestinais, dentre outras. Cabe ressaltar, contudo, que apenas um percentual dos indivíduos expostos irá desenvolver um transtorno.

Mas, infelizmente uma parcela poderá desenvolver um desses quadros ou mesmo outro tipo de transtorno mental. Contudo, a literatura descreve alguns fatores de risco para que isso ocorra, como maior a proximidade do evento potencialmente traumático, sua duração e gravidade; o grau de vulnerabilidade o paciente e seu temperamento; a presença de familiares de primeiro grau com transtorno depressivo; presença ou ausência de sistemas de suporte, dentre outros. Também é comum a presença de comorbidades, como transtornos de humor, ansiosos, uso de substâncias (ex: álcool), transtornos de personalidade ou doenças clínicas.

Diagnóstico

Alguns testes podem auxiliar o diagnóstico, como é o caso do PCL-5 para TEPT (este disponível em português).
O diagnóstico diferencial também envolve os transtornos ansiosos, transtorno dissociativo, luto, transtorno por uso de substâncias, depressão, algumas formas de transtorno psicótico (ex: transtorno psicótico breve ou esquizofrenia), transtorno factício, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno de personalidade (especialmente borderline) e os próprios transtornos relacionados ao estresse. A principal complicação para qual devemos estar alertas é o risco de suicídio, mas outras complicações podem estar presentes (como a automutilação, a agressividade direcionada a terceiros, prejuízos acadêmicos ou laborais, dentre outros).

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Tratamento

A literatura descreve que, sem tratamento, em 1 ano até 50% dos pacientes com TEPT se recuperam. Mas o desenvolvimento do prognóstico conta com a presença ou ausência de suporte social e/ou familiar, presença de comorbidades, etc. Já o prognóstico para o transtorno de adaptação tende a ser um pouco melhor: após o fim do agente estressor, espera-se que o paciente se recupere em até 6 meses ou após período de adaptação semelhante. Mas, se o estressor persistir, o transtorno também pode permanecer de forma prolongada.

Ao se deparar com um paciente com estes quadros, o médico deve encorajar a discussão sobre o episódio, mas sem pressionar o paciente a falar. Deve também oferecer apoio e orientar sobre técnicas para lidar com a situação. Além disso deve fornecer educação sobre o diagnóstico, explicando os sintomas, o prognóstico, a proposta terapêutica e como funcionam as possíveis medicações prescritas, para garantir a adesão.

Tudo isso deve ser feito com sensibilidade e conforme a capacidade do paciente de discutir o assunto, ou seja, respeitando o seu tempo. Deve-se explicar também sobre estratégias de enfrentamento, que incluem se alimentar adequadamente, descansar, desenvolver atividades recreativas, evitar o acesso midiático à notícias sobre o evento traumático, explicar sobre os sintomas de cada transtorno e avaliar a presença de sentimentos de medo e culpa.

A psicoterapia oferece bastante auxílio, sendo a primeira linha para o transtorno de adaptação. Algumas técnicas que podem ser indicadas para esse grupo de transtornos envolvem com grande destaque a terapia cognitivo-comportamental (TCC). As técnicas cognitivas-comportamentais também têm sido adotadas através de modelos disponíveis na internet, o que tem sido cada vez mais estudado, com alguns trabalhos relatando sua eficácia (inclusive em relação à abordagem sintomática – ex: insônia).

Uma fonte também cita que quando o risco de desenvolver TEPT for alto, é possível recomendar a TCC antes do início do quadro. Mas outras abordagens também podem ser indicadas: a hipnose (em alguns casos), a psicodinâmica, a terapia de apoio, a intervenção de crise, a dessensibilização e reprocessamento do movimento ocular (EMDR), a terapia de família, mindfulness e/ou terapia em grupo (em alguns casos). A idéia é que sejam trabalhados mecanismos de enfrentamento, apoio, educação e aceitação.

Outra importante estratégia não farmacológica envolve a recomendação da prática de exercícios físicos, especialmente os aeróbicos. Deve-se estimular também que os pacientes permaneçam ativos em outras funções para evitar que suas vidas fiquem cada vez mais restritas.

Abordagem farmacológica

A abordagem farmacológica difere um pouco conforme os transtornos e conforme as orientações de diferentes instituições. No transtorno de estresse agudo, o propranolol auxilia com o aumento da excitabilidade, enquanto que os sintomas dissociativos, psicóticos, agressivos ou de agitação intensa podem ser tratados com antipsicóticos ou estabilizadores do humor.

Alguns anti-histamínicos (ex: difenidramina) podem ajudar nos transtornos do sono, enquanto os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) atuam em outros sintomas centrais do quadro, com o benefício de poderem ser usados a longo prazo. Já no caso do TEPT, o United Kingdom’s National Institute for Health and Care Excellence (NICE) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) não recomendam nenhuma medicação como primeira linha de tratamento.

Entretanto, algumas importantes organizações americanas e algumas bibliografias sugerem que o tratamento farmacológico está indicado, sendo a primeira linha é composta pelos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS). Desses, apenas a paroxetina e a sertralina foram aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration – EUA) com essa função. Uma opção são os antidepressivos tricíclicos, com destaque para a amitriptilina e a imipramina. A princípio a medicação é prescrita por 2 meses e, apresentando resposta satisfatória, deve ser mantida por cerca de 1 ano.

Outras opções citadas, mas que não constituem-se como primeiras escolhas são os inibidores da monoaminoxidase (IMAOs), anticonvulsivantes, trazodona, propranolol (alguns estudos indicam que se usado nas primeiras horas após o trauma, poderia diminuir os sintomas de excitabilidade) e clonidina (esta com indicação também para agitação).

Há também recomendações sobre o uso de prazosin para o tratamento de insônia e pesadelos. Alguns estudos feitos com MDMA (ecstasy) associada à psicoterapia sugerem que essa abordagem poderia ter bons resultados, mas ainda não está oficialmente recomendada. O uso de antipsicóticos no TEPT é controverso na literatura, tendo algumas fontes citado que sua associação com antidepressivos poderia ser benéfica (com destaque para a risperidona). Já os benzodiazepínicos não estão recomendados no TEPT, mas poderiam ser usados com cautela e por curto prazo no transtorno de estresse agudo.

Já o tratamento farmacológico para o transtorno de adaptação não é o ideal, ou seja, não é o tratamento principal, mas pode ser necessária uma abordagem sintomática. Por exemplo, o uso de antidepressivos (especialmente os ISRS e os duais), benzodiazepínicos ou hipnóticos não benzodiazepínicos podem ser considerados desde que sob supervisão e por curto prazo. Outras opções podem incluir o uso de anti-histamínicos ou fitoterápicos.

Veja também: Atendimento de saúde mental durante a epidemia de coronavírus

Prevenção secundária de TEPT

Antes de finalizar essa pequena revisão, quero discutir sobre a prevenção secundária de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Essa abordagem deve ser considerada em pacientes que foram expostos a um evento estressor ou situação potencialmente traumáticos. Nesses casos uma estratégia de “primeiros-socorros psicológicos” (livre tradução do inglês Psychological First Aid – PFA) pode ser aplicada.

Ela envolve suporte emocional e redução do estresse ao garantir que o paciente tenha acesso aos seus entes queridos, abrigo e alimentação, além de trabalhar ideias de culpa ou vergonha, ajudar a encontrar algum possível significado para o trauma, garantir que sua reação não é sinônimo de fraqueza ou que não se sentirá assim para sempre. Deve-se evitar comentários como “isso não é tão ruim”, discussões sobre assuntos que não podem ser resolvidos naquele momento ou sobre outros temas que possam piorar a situação no momento. Deve-se também ficar atento para a identificação de alterações ou complicações clínicas (ex: infecção, traumatismo crânio-encefálico, desidratação, etc) e possível manejo da dor.

Em vários casos, num primeiro momento, pode ser adequado evitar a terapia em grupo, pois pode ser difícil para o paciente tanto falar de sua situação, como ouvir a experiência dos demais. Na verdade há o risco de isso até piorar o quadro. Contudo, como já citado, a terapia cognitivo-comportamental (TCC) precoce poderia ser benéfica. Do ponto de vista farmacológico há estudos indicando que o uso precoce de propranolol também poderia ser benéfico, enquanto benzodiazepínicos devem ser evitados.

Esperamos que esta breve revisão estimule mais o estudo sobre esses assuntos e que os profissionais de saúde possam, através dele, realizar mais e melhores diagnósticos, além de fornecerem acolhimento e tratamento adequado para a melhora dos pacientes.

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Referências bibliográficas:

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