O choque circulatório é condição comum nos pacientes graves internados em UTI. Caracteriza-se por evidência clínica e laboratorial de hipoperfusão, originada por uma utilização inadequada do oxigênio pelas células, com ou sem pressão arterial sistólica menor que 95 mmHg. A avaliação adequada desses quadros permite estabilização no menor tempo possível, além de ajudar no processo de interrupção da cadeia de disfunção orgânica.
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Do ponto de vista clínico, tradicionalmente, utilizamos três janelas de avaliação, sendo: pele, rins e sistema neurológico. Do ponto de vista laboratorial, a hiperlactatemia, baixas saturações venosas de oxigênio (central ou mista) e um DeltaCO2 aumentado são marcadores laboratoriais importantes para diagnóstico e manejo dessas condições.
Avaliando a perfusão orgânica com a ultrassonografia
Durante nossa prática habitual, interpretamos frequentemente alterações da macro-hemodinâmica, assim como alterações indiretas da disfunção de vários órgãos. No entanto, a ultrassonografia aplicada à avaliação da perfusão orgânica pode trazer novos insights a respeito da função orgânica “fim”, até mesmo sendo possível antecipar alterações indiretas e mais tardias daquela função orgânica estudada, identificando, de forma precoce, deteriorações.
Avaliando a perfusão esplâncnica…
A avaliação da hemodinâmica da região esplâncnica é feita pelo índice de resistência ao Doppler. Tal medida, obtida a partir da pulsação do fluxo sanguíneo, reflete a resistência do leito microvascular ao fluxo sanguíneo. Assim, constitui uma ferramenta poderosa para detecção de anormalidades hemodinâmicas precoces relacionadas à disfunção orgânica, antes da ocorrência de alterações macro-hemodinâmicas ou bioquímicas. Isto se deve ao fato de que a hipoperfusão esplâncnica altera a microcirculação orgânica pelo aumento da resistência e, consequentemente, aumentando o índice de resistência ao Doppler.
Veja abaixo as “novas janelas” para avaliação da perfusão orgânica
- Perfusão renal e hepática:
A perfusão renal pode ser avaliada pelo índice de resistência renal (renal Doppler resistive index – RDRI). Quanto maior o RDRI, menor a complacência vascular renal. Apresenta alta sensibilidade para detecção de hipoperfusão oculta esplâncnica devido à hipovolemia inicial em pacientes aparentemente com hemodinâmica estável. Um RDRI > 0,7 pode também identificar desequilíbrio entre oferta e consumo quando a oxigenação arterial periférica é normal, refletindo então uma resposta precoce vascular à hipóxia sistêmica.
A avaliação do índice de pulsatilidade da veia porta (portal vein pulsatility index – PVPI) também pode ser usada como equivalente às interpretações obtidas com o RDRI.
Um PVPI > 50% esteve associado de forma independente a um maior grau de congestão venosa sistêmica, baixas pressões diastólicas de perfusão e maior incidência de injúria renal aguda pós-operatória.
- Perfusão esplênica:
Tanto em condições normais quanto patológicas, o baço é peça-chave na regulação da homeostase de fluidos no organismo. Um verdadeiro reservatório venoso, uma vez que recebe aproximadamente 10% do débito cardíaco e 2/3 do fluxo esplâncnico ( > 800 mL), valor que pode ser autotransfundido para a circulação sistêmica dentro de segundos, mediante estímulo de receptores alfa e beta adrenérgicos da vasculatura esplâncnica em caso de choque.
A perfusão esplênica pode ser avaliada pelo índice de resistência esplênica (splenic Doppler resistive index – SDRI). Tal índice tem sido associado com a função cardiovascular e fluidorresponsividade. Além de guardar correlação com níveis de lactato arterial e mudanças na saturação venosa central de oxigênio.
Um SDRI > 0,71 tem alta sensibilidade na detecção de choque hipovolêmico oculto e é possível utilizá-lo para aferir a adequação da ressuscitação, visando resolução da hipoperfusão oculta, mesmo quando os níveis de lactato arterial estão normais.
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Mensagens Práticas
- Com a maior disponibilidade do ultrassom point-of-care (POCUS), os índices apresentados tornam-se de potencial aplicação na prática clínica, principalmente nos casos que evoluam com alterações hemodinâmicas e em diferentes cenários clínicos (pré-hospitalar, departamento de emergência, anestesia e UTI).
- A avaliação da perfusão esplâncnica através do POCUS pode ser facilmente integrada à abordagem whole-body, principalmente em quadros complexos como trauma. Além disso, permite, de forma simultânea, a avaliação da perfusão global e regional.
- A técnica ainda é parcialmente explorada e tem potencial para se tornar uma poderosa aliada na obtenção de maior sensibilidade diagnóstica, permitindo uma maior compreensão das interações cardiovasculares na beira-leito.
Referências bibliográficas:
- Corradi F, Via G, Tavazzi G. What’s new in ultrasound-based assessment of organ perfusion in the critically ill: expanding the bedside clinical monitoring window for hypoperfusion in shock. Intensive care medicine, 2020;46(4):775-779. doi: 1007/s00134-019-05791-y