Um olhar em meio ao caos: reflexão sobre a profissão do médico

Há algo que, mesmo quando estamos afogados no caos, nos impulsiona a continuar estudando e buscando o nosso melhor como médico. Leia mais na crônica.

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Plantão em emergência costuma ter uma pitada de caos na vida de todo médico e nesse dia não foi diferente. Aguardava um paciente que já havia recebido a ficha. Estava demorando, fui pessoalmente buscá-lo. Cumprimentei os familiares e eu mesma puxei a cadeira de rodas, que estava com os pneus avariados, saí algo desgovernada pelo corredor, com um esforço imenso pra fazer aquela roda girar. Os filhos, um homem e uma mulher pareciam indiferentes. Fiquei incomodada com a situação, mas continuei me esforçando.

Sentamos no consultório, perguntei o que havia acontecido com aquele senhor, era uma amaurose súbita do olho esquerdo com desorientação. Continuei a conversa, até que em algum momento da história, eles confessaram que estavam meio apavorados porque há alguns meses a mãe deles havia falecido de infarto agudo do miocárdio na sala de espera daquele hospital. Ela foi atendida na triagem com dor torácica e o médico pediu exames. Enquanto ela esperava (por horas), teve uma parada cardíaca e as tentativas de reanimação não conseguiram reverter. O médico, que havia atendido a paciente inicialmente, chorou.

Semanas após este relato, hoje estava novamente naquele plantão com uma concha de caos. Sou chamada pelo médico da triagem, havia um paciente de 51 anos com dor torácica importante. Ele não havia conseguido rodar o eletrocardiograma porque era tanta dor que estava agitado. “Abri o protocolo de dor torácica e já fiz AAS e clopidogrel”. Neste hospital, não temos protocolos estabelecidos, mas ele abriu este pseudoprotocolo da mente dele e rapidamente me chamou, a médica da “sala vermelha”.

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Fiz analgesia, colhi laboratório com enzimas cardíacas, fiz o combo de medicações de novo porque o paciente vomitou tudo em cima de mim, fiz antiemético. Enquanto isso, tentávamos ajustar o eletro. Enfim rodou, infras e supras, corro para unidade coronariana, passo o caso, infarto agudo do miocárdio. Em 15 minutos, o paciente estava se preparando para a hemodinâmica. Eu senti uma sensação de paz quando passei o bastão com a certeza de que ele teria uma chance real de sobreviver. Olhei para esposa e disse que ele ia ficar bem. Ela me agradeceu e seus olhos marejaram. O paciente, ao sair do elevador, disse para nos prepararmos porque ele ia fazer um churrasco quando tudo terminasse.

Cheguei em casa, fisicamente exausta, e vi no Facebook um relato de um médico próximo dizendo que estava cansado. A pressão da profissão, as exigências por estar sempre certo, as possíveis consequências de seus erros, haviam sugado suas forças. Ele deve estar em um dia do médico que chorou, como muitas vezes eu já estive. A faculdade não nos prepara para os momentos em que tudo dá errado, não nos diz que você obviamente não vai render 100% nas 24h horas de plantão. (A propósito, quem inventou as 24h de plantão?).

Mas há algo que, mesmo quando estamos afogados no caos, nos impulsiona a continuar estudando e buscando o nosso melhor. Talvez seja o olhar de agradecimento daquela esposa, ou poder segurar a mão de alguém no pior momento de sua vida. Que sigamos procurando nas pequenas pistas, a certeza de que estamos onde deveríamos, um significado real para nossa própria existência.

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