Precisamos aposentar as crises hipertensivas?

Como síndromes são um conjunto de sinais e sintomas, também não é possível caracterizar as “crises hipertensivas” como entidades próprias.

A elevação sustentada da pressão arterial em pacientes com hipertensão arterial sistêmica (HAS) ocasiona lesão vascular em múltiplos órgãos, a longo prazo. A percepção de que muitas “catástrofes” médicas usualmente vêm associadas à pressão arterial elevada levou o médico Edward Freis a cunhar o termo “crise hipertensiva” em 1969, indicando que a hipertensão era a causa da lesão orgânica 9. De forma precoce, o termo foi adotado por guidelines, e desde então ele não saiu mais de nosso vocabulário.  

Leia também: Monitorização da Pressão Arterial Invasiva: além da Pressão Arterial Média (PAM)

Quando níveis pressóricos elevados causam lesão orgânica aguda, dizemos que o paciente apresenta uma “emergência hipertensiva”. O nível de pressão arterial (PA) capaz de causar lesão orgânica é variável, a depender da rapidez de sua elevação, porém usualmente a pressão arterial sistólica se encontra > 180 mmHg e a diastólica > 120 mmHg 8. Note que não existem valores de corte definidos, uma vez que pacientes sem HAS prévia podem apresentar sintomas significativos com a elevação rápida de PA, mesmo abaixo desse patamar (ex: eclâmpsia).   

Quando a pressão arterial se encontra substancialmente elevada, porém sem lesão orgânica aguda, damos o diagnóstico de urgência hipertensiva. Conforme discutiremos adiante, não existe qualquer benefício na redução rápida da pressão arterial em pacientes sem uma verdadeira emergência hipertensiva. No entanto, essa medida apresenta diversos riscos associados. Assim, o termo “urgência hipertensiva” é inapropriado por induzir médicos a uma falsa sensação de “risco iminente”, quando o risco, na verdade, não existe. 

Pacientes podem se apresentar no Pronto Socorro de duas formas: com sintomas relacionados à doença crítica sendo identificada pressão arterial (PA) elevada, ou buscar atendimento oligossintomáticos referindo elevação da PA medida em domicílio. Abordaremos separadamente esses dois tipos de paciente.   

Avaliação inicial   

Como dito, alguns pacientes são admitidos em função de sintomas de doenças graves, cujo controle da pressão arterial é parte importante da abordagem terapêutica (ex: síndrome aórtica aguda, acidente vascular encefálico hemorrágico). Nesse caso, a patologia específica irá ditar a rapidez com que a pressão arterial precisa ser controlada, o alvo de pressão, e outras medidas necessárias para o tratamento (ex: revascularização na síndrome coronariana aguda – SCA).  

Por outro lado, alguns pacientes são admitidos com “queixa” de PA elevada, aferida em domicílio, assintomáticos ou com sintomas frustros. A etapa mais importante na avaliação desses casos é identificar se existe disfunção orgânica, visando distinguir as “emergências hipertensivas” da “urgência hipertensiva”.   

Pacientes oligo ou assintomáticos  

Alguns pacientes se apresentam no pronto-socorro com queixa de PA elevada sem outros comemorativos, ou oligossintomáticos. Nessa situação, devemos realizar uma rápida avaliação clínico-laboratorial para determinar se o paciente apresenta uma emergência hipertensiva real.   

Devemos fazer uma anamnese rápida, questionando a ocorrência de: 

  • Déficit neurológico focal ou convulsões; 
  • Confusão mental ou rebaixamento do nível de consciência;
  • Alterações visuais; 
  • Náuseas ou vômitos; 
  • Traumatismo cranioencefálico (TCE); 
  • Dor torácica, equivalentes anginosos ou dispneia; 
  • Disfunção renal prévia; 
  • Possibilidade de gestação atual; 
  • Início ou interrupção de medicamentos; 
  • Uso de drogas recreativas.

A depender dos sintomas apresentados pelo paciente, alguns exames complementares podem ser necessários imediatamente para descartar a presença de disfunção orgânica aguda: 

  • Fundoscopia: se sintomas visuais; 
  • Eletrocardiograma e Rx de tórax: se dor torácica, equivalentes anginosos ou dispneia; 
  • Troponina: se suspeita de SCA; 
  • Função renal, eletrólitos e Urina tipo 1: se disfunção renal prévia ou nova; 
  • Teste de gravidez: se mulher em idade fértil, pela possibilidade de pré-eclâmpsia; 
  • TC de crânio: se houver qualquer sintoma neurológico, história de TCE, ou sintomas de hipertensão intracraniana (ex: náusea, diplopia).

Pacientes com lesão orgânica aguda induzida pela hipertensão, ou quando a elevação da pressão arterial pode piorar a evolução clínica, apresentam emergência hipertensiva. Quando houver a presença de PA elevada, sem ocorrência de disfunção orgânica aguda, o paciente apresenta urgência hipertensiva.

Apesar de muito usado em textos brasileiros, o termo “pseudocrise hipertensiva” não é utilizado por nenhum dos principais guidelines internacionais sobre o assunto. Assim, sua definição conforme lemos em textos nacionais é um tanto arbitrária e sem grande embasamento científico.   

Saiba mais: Sotatercept no tratamento da hipertensão pulmonar

Conduta na urgência hipertensiva  

Pacientes com urgência hipertensiva não apresentam lesão orgânica aguda e podem ser hipertensos previamente ou não. A confirmação do diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS) deve ser feita ambulatorialmente, uma vez que diversos fatores podem causar elevação temporária na PA. Da mesma forma, anti-hipertensivos de uso contínuo não devem ser prescritos no pronto-socorro, sob diversos riscos.  

A administração de anti-hipertensivo deve ser acompanhada de acompanhamento médico seriado para avaliar resposta e efeitos adversos da medicação. O uso dessas medicações para controle da pressão arterial em pacientes no pronto-socorro está associado a riscos como isquemia coronariana e AVC isquêmico.

Além disso, a administração de dose única de anti-hipertensivo para pacientes admitidos com PA elevada no pronto-socorro não apresenta qualquer evidência de benefício para o controle da comorbidade a longo prazo 

Assim, a melhor conduta frente a pacientes com urgência hipertensiva é tranquilizar o paciente quanto à ausência de risco a curto prazo e reforçar a necessidade de acompanhamento médico para evitar complicações de longo prazo. O paciente deve então ser encaminhado à unidade básica de saúde, visando:  

  • Confirmar o diagnóstico de HAS; 
  • Avaliar início de terapia (medicamentosa ou não); 
  • Acompanhamento de resposta e efeitos adversos da terapia.  

Alvos de pressão arterial nas emergências hipertensivas  

O alvo de PA e a rapidez com que ele deve ser atingido varia conforme a emergência hipertensiva subjacente. De forma geral, a pressão arterial média (PAM) deve ser reduzida gradualmente, em 10-20% na primeira hora, seguido de 5-15% ao longo do resto do primeiro dia.   

A encefalopatia hipertensiva, por exemplo, é uma emergência hipertensiva onde adotamos essa estratégia. Usualmente os sintomas (ex: cefaleia, náuseas, confusão mental ou rebaixamento do nível de consciência) melhoram conforme a PA é reduzida.  

Mais importante do que o controle da pressão arterial é o tratamento da doença subjacente. Assim, não devemos negligenciar os outros alvos terapêuticos em busca do controle da pressão arterial. Outra questão é que cada emergência hipertensiva possui uma estratégia diferente para controle da pressão arterial:  

  • Acidente vascular encefálico isquêmico (AVCi) 

No AVCi o alvo de PAM depende da terapia instituída. Pacientes que não foram submetidos à trombólise não devem receber anti-hipertensivos, exceto se a PA exceder > 220 x 120 mmHg. Pacientes candidatos à trombólise química só podem receber a terapia se a PA estiver < 185 x 110 mmHg. Após início da infusão do trombolítico, a PA deve ser mantida < 180×105 mmHg. O alvo de PA após trombectomia mecânica ainda é incerto. Esse assunto é alvo de intenso debate neste ano de 2023, após publicação de diversos trabalhos.   

  • Acidente vascular encefálico hemorrágico (AVCh)

Não menos polêmico do que o tópico anterior, o controle da PA após AVCh ainda é alvo de intenso debate. No entanto, um guideline recente da AHA 4 orienta um alvo de pressão arterial sistólica (PAS) entre 130-150 mmHg, nos pacientes admitidos com PAS > 220 mmHg. O alvo de pressão arterial deve ser atingido em até 1 hora. Além disso, devemos evitar PAS < 130 mmHg, pelo risco de piora no desfecho renal. Nos pacientes admitidos com PAS > 220 mmHg ainda não sabemos a melhor meta de pressão arterial média (PAM).   

Na HSA, o alvo de PAS deve ser < 160 mmHg, até o tratamento do aneurisma. Em seguida, níveis mais elevados de PA podem ser tolerados e o foco deve ser evitar a hipotensão. Após o tratamento do aneurisma, se o paciente evoluir com vasoespasmo sintomático, podemos ativamente induzir hipertensão com drogas vasoativas.  

  • Síndromes aórticas agudas (SAA): 

Nas SAA, inicialmente a frequência cardíaca deve ser controlada com uso de betabloqueadores endovenosos (ex: esmolol ou metoprolol), com alvo de FC < 60 bpm. Em seguida, devemos buscar rapidamente um alvo de PAS 100-120 mmHg, em até 20 minutos, com uso de anti-hipertensivos endovenosos (ex: nitroprussiato).  

  •  Insuficiência cardíaca descompensada (IC): 

Pacientes com IC podem apresentar edema pulmonar em função da elevação das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo (VE). Podem contribuir para o edema: a disfunção contrátil do VE, insuficiência valvar, aumento do volume circulante efetivo e aumento do volume estressado. O uso de diuréticos auxilia na redução do volume circulante efetivo.

A vasodilatação reduz o edema pulmonar através da redução da pós-carga do VE, com aumento do volume sistólico, assim como pela redução do volume estressado. Nessa situação, o alvo específico de PAM varia conforme o grau de disfunção de VE, presença de disfunção valvar importante e comorbidades associadas.

Em geral, alvos de PAM entre 55 a 60 mmHg podem ser utilizados, com acompanhamento do débito cardíaco (DC) através de ecocardiografia point-of-care seriada. A vigilância de sintomas de baixo débito, marcadores de microcirculação e disfunção orgânica irão determinar se o DC atual está adequado, ou não, para o consumo atual (VO2) do paciente.  

Mais importante do que a percepção da elevação da pressão arterial é a investigação e diagnóstico da doença de base que precipitou esse achado. Além disso, não existe um alvo pressórico que seja aplicável a todas essas condições, reforçando que o nosso foco deve ser identificar e tratar a doença subjacente e não a “pressão arterial elevada”.  

Veja ainda: Hipertensão pulmonar nas doenças intersticiais pulmonares: novos conceitos

Conclusão 

A “urgência hipertensiva” é um termo inacurado, instigando o tratamento inapropriado de pacientes que deveriam ser avaliados ambulatorialmente. Além disso, o termo “emergência hipertensiva” potencialmente pode desviar a atenção do médico para o tratamento da elevação da pressão, em detrimento da verdadeira doença crítica subjacente.

A elevação da pressão arterial é um sinal clínico, comum a diferentes doenças, algumas graves e outras não. Como síndromes são definidas por um conjunto de sinais e sintomas, também não é possível caracterizar as “crises hipertensivas” como entidades próprias, uma vez que a elevação da pressão arterial é o único ponto em comum a incontáveis entidades clínicas que manifestam essa apresentação.  

Considerando todos os fatos, talvez seja apropriado “aposentar” o uso dos termos urgência e emergência hipertensiva, em favor de diagnósticos mais acurados que nos levarão a tratamentos mais apropriados. Dessa forma, seremos capazes de identificar a “síndrome coronariana aguda” que precisa de revascularização, a “pré-eclâmpsia” que precisa de avaliação do obstetra, e, talvez mais importante, a “pressão arterial elevada” onde somente precisamos tranquilizar o paciente e fornecer um acompanhamento ambulatorial.

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