UTI aberta no Brasil: uma realidade?

Desde a criação da Política Nacional de Humanização (2004), o formato da assistência em saúde mudou. Passou-se a buscar centrar o cuidado no doente.

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Desde a criação da Política Nacional de Humanização (PNH, 2004), o formato da assistência em saúde tem se modificado. Passou-se a buscar centrar o cuidado no doente, enquanto ser biopsicossocioespiritual, repleto de dimensões a serem consideradas, assim como à rede familiar que o acompanha. Essa transição de cuidado, veio para tentar romper a característica paternalista e focada na doença, que foi inconscientemente implementada frente ao avanço tecnológico em saúde.

Com essa mudança teórica de paradigmas implementada no Brasil pelo PNH, 14 anos depois (2018) nos vemos ainda em uma realidade prática bem distante do ideal sugerido. Não se trata apenas de uma realidade brasileira, mas mundial! Unidades de Cuidados Intensivo (UCI) com portas fechadas ainda é algo predominante, e é provável que ainda leve algum tempo para mudarmos este cenário.

A partir de pesquisas recentes que avaliam sintomas de estresse pós-traumático e comorbidades adquiridas em pacientes que passaram por internações prolongadas em UCI, tivemos um avanço inegável no que diz respeito à prevenção. Frente a isso, a humanização da assistência, em suas diversas possibilidades, vem a ser a melhor estratégia de proteção, cuidado e satisfação para paciente e família.

uti pediátrica

Humanização na UCI

Considerando esses dados, em 2007 foram publicadas as diretrizes relacionadas ao suporte familiar de pacientes críticos, pensando na assistência centrada no paciente, pelo American College of Critical Care Medicine (ACCCM), que trouxe algumas recomendações para o processo de Humanização em UCI. Essas recomendações quebram o paradigma de estruturação predominante de cuidado ao paciente crítico, exigindo mudanças conceituais, estruturais, administrativas e assistenciais, conforme se segue:

  • Decisões compartilhadas;
  • Acolhimento familiar;
  • Interações entre equipe e família;
  • Suporte Cultural;
  • Suporte espiritual;
  • Visita familiar;
  • Privacidade e acomodação para familiar;
  • Presença de familiares nos rounds multidisciplinares;
  • Presença da família na reanimação cardiopulmonar;
  • Cuidados Paliativos.

Como se vê, as mudanças sugeridas envolvem desde adequações estruturais, ambiência, mudanças administrativas e organizacionais, para só depois impactar a assistência ao usuário. Trata-se de uma idealização que, para se tornar realidade, necessita de protocolos, estruturação, treinamento contínuo da equipe e quiçá mudanças na cultura e educação do pais. Afinal, como seria possível pensar em 100% de UCIs de porta aberta sem a educação social sobre o respeito à terminalidade, aos limites da tecnologia e da ciência, e sem uma formação em âmbito acadêmico dos profissionais, pautada no cuidado centrado no paciente e na família?

UCI no Brasil

Em estudo multicêntrico² de 2014 avaliando a política de visitação em UCIs brasileiras, dos 162 questionários avaliados, apenas 2,6% utilizavam visitação liberada, 45,1% mantinham 2 horários de visitas durante o dia, e 69,1% das unidades realizavam apenas um horário de visita social com duração entre 31 e 60 minutos. Sobre a avaliação dos profissionais em relação à UCI aberta, uma porcentagem significativa reconhece que a presença de familiares aumenta a satisfação do doente, auxilia na recuperação reduz ansiedade e estresse no paciente, assim como sintomas de depressão nos familiares3,4. Entretanto salientam o aumento da carga e desgaste emocional na execução do trabalho, sensação de estarem sendo observados e controlados pela família3, assim como situações em que os acompanhantes não demostram controle emocional suficiente para estar na unidade, deixando o paciente mais agitado.

É notório que tanto no Brasil como em outros países, existem UCIs abertas de referência, que já estão servindo de espelho para diversas mudanças, mas ainda são minoria quase que esmagada por uma maioria significativa que funciona em regime de visitação restrita. Entretanto, esta não deve ser uma justificativa para a manutenção de padrões arcaicos, visto que já são de conhecimento científico os benefícios da presença da família na recuperação de pacientes críticos. O que se sugere, são reflexões mais realistas sobre as reais medidas de mudanças que precisam ser adotadas, para que um dia a UCI aberta seja prevalente.

Os números apenas representam a dificuldade em quebrar uma cultura já estabelecida, e o próprio déficit na formação básica dos profissionais da saúde quanto às habilidades de comunicação interpessoal e condução de situações difíceis. Se não preparamos os profissionais da assistência para a realidade da humanização, como podemos exigir que executem sua prática junto à família, conseguindo conduzir o cuidado técnico e as manifestações emocionais?

Trata-se de uma mudança que vai além das paredes do hospital. Não seria justo em uma sociedade que não fala sobre a morte exigir que o profissional da saúde seja o conscientizador direto do processo de morrer no momento em que ele ocorre, tendo que convencer a família de que não cabe mais realizar uma reanimação cardiopulmonar, ou que uma intubação não modificaria o desfecho de um paciente em fase terminal de doença. Isso porque leva tempo para modificar um padrão de comportamento social. É mais respeitoso com o ser humano falar sobre algo que já faz parte de sua cultura, de seu conhecimento, de sua rotina.

Entretanto, considerando que tais mudanças ocorram, o que é necessário fazer dentro do hospital para viabilizar a implantação de UCIs abertas, com qualidade no serviço?

– Adequação estrutural para acomodação de acompanhante;
– Treinamento da equipe assistencial na comunicação interpessoal e gerenciamento de conflitos;
– Triagem dos familiares para identificação dos membros mais aptos a acompanhamento;
– Treinamento básico da família para respeito às normas da unidade e segurança do paciente;
– Habilidade da equipe na transmissão de informações sobre o quadro, sistematicamente;
– Esclarecer diagnóstico e plano terapêutico, permitindo a participação da família nos rounds diários;
– Preparar a equipe para acolher as manifestações emocionais da família frente as adversidades.

Antes de implementar, o ideal é refletir sobre as condições reais de manter a qualidade do serviço proposto. Não vale a pena abrir as portas da UCI sem saber conduzi-la, do mesmo modo que não vale a pena manter portas fechadas ad eternum tendo evidências científicas da importância da presença da família na recuperação de doentes graves. Vale analisar com cautela a realidade de cada serviço, e ir fazendo mudanças progressivas, que respeitem a estrutura do local, a condição técnica/interpessoal da equipe, e o atendimento à política nacional de humanização.

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Referências:

  1. Davidson JE, Powers K, Hedauat KM, Tieszen M, Kon AA, Shepard E, et al.; American College os Critical Care Medicine Task Force 2004-2005, Society of critical care medicine. Clinical Practice guidelines for support of the family in the patient-centered intensive care unit: American College of Critical Care Medicine Task Force 2004-2005. Crit Care Med. 35(2):605-22.
  2. Da Silva RFJ, Fumis RR, Azevedo LC, Schettino G. Intensive care unit visitation policies in Brazil: a multicenter survey. Rev Bras Ter Intensiva. 26(4):339-46, 2014.
  3. Da Silva RFJ, Fumis RR, Azevedo LC, Schettino G. Perceptions of an open visitacion policy by intensive care unit workers. Ann Intens Care. 3:34, 2013.
  4. Biancofiore G, Bindi LM, Barsotti E, Menichini S, Baldini S. Opens intensive care units: a regional survey about the beliefs and attitudes of healthcar professionals. Minerva Anesteriol. 76(2):93-99, 2010.

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