Veja quatro motivos para abordar a espiritualidade no consultório

A espiritualidade vem sendo tema central de discussões em congressos. Ao mesmo tempo, vemos um crescimento exponencial de artigos publicados sobre o tema.

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Você gostaria de um método que fosse capaz de intensificar a relação médico-paciente, aumentar a adesão aos tratamentos e ainda melhorar os desfechos em saúde? Se a resposta for sim, vale a pena ler este artigo.

Nos últimos anos a Espiritualidade vem sendo tema central de inúmeras mesas e palestras em congressos de diversas especialidades. Ao mesmo tempo, vemos um crescimento exponencial de artigos publicados sobre o tema1. Em uma busca rápida, vemos mais de 10 mil resultados para o termo “espiritualidade” (spirituality), sendo que mais da metade são publicações dos últimos 10 anos. Mas o que de relevante vem sendo falado sobre o tema? Aliás, do que se trata Espiritualidade?

Apesar da divergência na literatura, podemos conceituar Espiritualidade como a dimensão do ser humano relacionada às questões de significado e propósito de vida; dimensão que reflete sobre o sentido existencial do indivíduo; e que pode ser buscada na religião, na música, arte, natureza ou mesmo em valores pessoais ou científicos, não necessariamente relacionados à religião2.

Mas a pergunta é: Por que eu deveria tirar alguns minutos sagrados da minha consulta para abordar Espiritualidade? Aqui vão quatro motivos:

espiritualidade

1) As pessoas querem falar sobre o assunto

Um das razões para que os profissionais não abordem a espiritualidade dos pacientes é o medo de impor pontos de vista religiosos ao paciente e não serem bem recebidos. No entanto, não é o que vemos na prática:

Em um estudo realizado pelo departamento de Medicina de Família da Northeastern Ohio Universities College of Medicine cerca de mil adultos foram entrevistados e questionados se gostariam que o seu médico abordasse questões relacionadas à sua espiritualidade3.

Cerca de 83% dos entrevistados relataram o desejo que os médicos perguntassem sobre crenças espirituais, sendo que os cenários mais aceitáveis ​​para discussão seriam aqueles que envolvessem doenças que ameaçem a vida, condições médicas graves e perda de entes queridos. Além disso, acreditavam que as informações relativas às suas crenças espirituais interfeririam na capacidade dos médicos de encorajar a esperança, dar aconselhamento médico e mudar a terapêutica proposta, se fosse necessário3.

Em revisão publicada em 2015, Best e cols identificou que em mais da metade dos artigos que buscavam comprender o desejo das pessoas em conversar sobre espiritalidade, a maioria das amostras consideravam que era apropriado para o médico saber sobre as necessidades espirituais do paciente4.

É fácil compreender este desejo ao pensarmos que nos momentos de angústia e sofrimento, recorremos àquilo que faz sentido para nossas vidas e independente de qual prática ou crença seja, esta busca pelo que traz paz e conforto representa a nossa Espiritualidade. Nos mesmos estudos citados acima, também foi relatado que os pacientes sentiriam mais empa­tia e confiança no médico que questionasse esses temas, proporcionando uma intensificação da relação médico-paciente6.

2) Há evidências de impacto na saúde

Outro motivo para não se falar sobre espiritualidade é a preocupação de atuar em uma área “não médica”, que não faria parte do papel do médico, ou ainda que não seria um conhecimento relevante ao tratamento médico.

Novamente tropeçamos nas evidências:

Em uma robusta revisão da literatura publicada em 2012, Koenig5 analisa mais de 3 mil artigos em que o binômio Espiritualidade/Religiosidade (E/R) provoca impactos na saúde. Ele descreve esses impactos nos contextos:

  • Saúde Mental;
  • Hábitos de Vida;
  • Saúde física.

Em todos eles foram observados diversos benefícios. Na saúde mental observou-se que E/R está realicionada com maior sensação de bem estar, otimismo, esperança e propósito de vida, além de possuir associação inversa com depressão, ansiedade, suicídio e abuso de substâncias. Observou também que há mais prevalência de hábitos de vida protetores nesses indivíduos, como prática de atividade física, dieta saudável e menor prevalência de tabagismo. Na saúde física, foi observado que a Espiritualidade está associada a menores índices de doença coronariana, câncer e acidente vascular cerebral, além de estar relacionada a melhor controle pressórico, menores índices de mortalidade por causas cardiovasculares e mortalidade em geral.

Como explicar todos esses dados? O autor justifica que reduzindo emoções negativas, aumentando suporte social e estimulando hábitos de vida saudáveis o envolvimento com práticas de E/R tem um impacto positivo em comorbidades orgânicas e em seu tratamento. Além do fato de gerar sentido de vida e propósito para o indivíduo, o que faz com que ele preserve e valorize mais sua própria saúde.

3) Existem instrumentos rápidos  e fáceis para realizar a abordagem

A falta de tempo e de treinamento também são barreiras que impedem os médicos de abordarem a espiritualidade. Para quebrar esses muros apresento um jeito rápido e fácil de fazer isso: o uso de instrumentos.

Existem diversos questionários elaborados com o fim de compreender a espiritualidade do paciente e coletar a chamada ANAMNESE ESPIRITUAL. Dentre eles o FICA se apresenta como um questionário simples, facil de se aplicar, flexível e rápido. O seu nome representa um mnemônico que orienta um conjunto de perguntas a respeito da espiritualidade do indivíduo:

  • F – Fé/Crença: Você tem crenças que te ajudam a lidar com os problemas? O que te dá significado de vida?
  • I – Importância/Influência: Você tem alguma crença específica que pode afetar decisões médicas ou em seu tratamento?
  • C – Comunidade: Você faz parte de alguma comunidade religiosa ou espiritual? Ela te dá suporte?
  • A – Ação no tratamento: Como você gostaria que o seu médico ou profissional da área da saúde considerasse a questão religiosidade/espiritualidade no seu tratamento?

O FICA não necessariamente precisa ser realizado na ordem do mnemônico e pode ser utilizado em qualquer momento da entrevista clínica em que haja abertura ao tema. O objetivo central ao coletar a anamnese espiritual é compreender melhor como o indivíduo lida com a doença, o que e quem oferece suporte a ele, identificar crenças que possam impactar nos cuidados em saúde (positiva ou negativamente) e oferecer um cuidado integral, contemplando também os aspectos subjetivos do indivíduo4,7.

4) A espiritualidade pode ser um problema

Aposto que em algum momento todos os médicos atuantes já devem ter escutado no consultório frases como “Graças a Deus melhorei!” ou “Vou ficar bom, se Deus quiser!”. Aposto com tranquilidade porque o Brasil é um país muito religioso. Mais de 90% dos brasileiros se autodeclaram pertencentes a alguma religião8 e é natural que essas pessoas utilizem de sua religiosidade/espiritualidade para enfrentar situações de estresse.

Esse movimento de utilizar as crenças para lidar com fatores estressores foi conceituado coping religioso/espiritual.5,9 Dizemos que a pessoa apresenta um coping positivo quando suas crenças estimulam hábitos de vida saudáveis, auxiliam a adesão ao tratamento, aumentam a resiliência ao estresse, entre outros benefícios. No entanto, algumas pessoas podem apresentar um coping negativo, caracterizado por culpas, medos ou mágoas que podem dificultar o tratamento ou ainda gerar piores desfechos clínicos.

Observa-se coping negativo quando a pessoa passa a delegar a Deus a resolução dos problemas, o que pode fazer com que desista das práticas médicas; considerar a doença como “punição divina” por seus atos; e em diversas outras situações.9

É necessário observar, detectar e intervir nas situações de coping negativo, de forma a ressignificá-lo, transformando-o em coping positivo. Esta intervenção pode se apresentar de forma mais complexa e demandar suporte de outros profissionais mais capacitados, como os capelães.

Leia maisPor que não falamos de espiritualidade no CTI?

Apesar de todas as evidências aqui citadas, a principal barreira para a abordagem da espiritualidade na prática clínica do profissional de saúde ainda é a falta de conhecimento sobre o assunto. Pouco se fala durante a formação médica, seja na graduação ou na residência. Este cenário, no entanto, vem mudando com a criação de ligas acadêmicas em saúde e espiritualidade, disciplinas optativas e obrigatórias em diversas universidades e com a divulgação científica das evidências.

Você se lembra da pergunta inicial deste texto? “Você gostaria de um método que fosse capaz de intensificar a relação médico-paciente, aumentar a adesão aos tratamentos e ainda melhorar os desfechos em saúde?” Pois então, este método agora está em suas mãos – abordar a espiritualidade dos pacientes vem se mostrando, cada vez mais, como uma prática baseada em evidências sólidas e com impactos positivos que não podem ser ignorados.

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Referências:

  1. Damiano RF et al. Brazilian scientific articles on “Spirituality, Religion and Health”. Arch Clin Psychiatry, 2016.
  2. Anandarajah G, Hight E. Spirituality and medical practice: using the HOPE questions as practical tool for spiritual assessment. AAFP, 2001.
  3. McCord G, Gilchrist VJ, Grossman SD, et al. Discussing spirituality with patients: a rational and ethical approach. Ann Fam Med, 2004.
  4. Gusso G, Lopes JMC Dias LC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade, 2ª edição, (Capítulo 95 – Espiritualidade e Saúde). Artmed, 2019.
  5. Koenig HG. Religion, Spirituality, and Health: The Research and Clinical Implications. ISRN Psychiatry Volume, 2012.
  6. Lucchetti G, Granero AL, Bassi RM, Latorraca R, Nacif SAP. Espiritualidade na prática clínica: o que o clínico deve saber? Rev Bras Clin Med, 2010.
  7. Puchalski CM, Borneman T, Ferrell B. Evaluation of the FICA Tool for Spiritual Assessment. Journal of Pain and Symptom Management, Vol. 40 No. 2, 2010.
  8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. https://censo2010.ibge.gov.br.
  9. Pargament KI, Koenig HG, Perez LM. The Many Methods of Religious Coping: Development and Initial Validation of the RCOPE. Journal Of Clinical Psychology, Vol. 56, 2000.

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