Glomerulonefrite difusa aguda pós-estreptocócica em pediatria

A glomerulonefrite difusa aguda pós-estreptocócica aguda (GNPE) é a glomerulonefrite pós-infecciosa mais comum na infância.

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A glomerulonefrite difusa aguda pós-estreptocócica aguda (GNPE) é a glomerulonefrite pós-infecciosa mais comum na infância. Caracteriza-se pela rápida deterioração da função renal devido a uma resposta inflamatória após infecção por estreptococos. Os microrganismos responsáveis são, em sua maioria, estreptococos β-hemolíticos do grupo A (EBHGA). A doença afeta os glomérulos e os pequenos vasos sanguíneos de ambos os rins.

Epidemiologia

Embora a GNPE continue a ser a causa mais comum de nefrite aguda em crianças em todo o mundo, ela ocorre principalmente em países em desenvolvimento. Dos estimados 470.000 novos casos anuais de GNPE globalmente, 97% ocorrem em regiões com baixo nível socioeconômico, com uma incidência que varia de 9,5 a 28,5 por 100.000 indivíduos/ano.

Nos países mais desenvolvidos e industrializados, a incidência reduziu nas décadas de 70 a 90. Por exemplo, com base nos dados do Italian Registry of Renal Biopsies (Registro Italiano de Biópsias Renais), a incidência anual estimada foi de 0,3 por 100.000 indivíduos entre 1992 e 1994. As razões podem incluir o acesso mais fácil ao tratamento de infecções estreptocócicas e a presença generalizada de flúor na água, o que diminui os fatores de virulência do Streptococcus pyogenes. Má higiene, superlotação e baixo nível socioeconômico são importantes fatores de risco para surtos de estreptococos, e isso explica a maior incidência de GNPE nos países empobrecidos.

O risco de GNPE é  maior em pacientes idosos (maiores de 60 anos) e em crianças entre 5 e 12 anos de idade. A GNPE é incomum em crianças com menos de três anos. É duas vezes mais frequente no sexo masculino que no feminino, mas pode haver igualdade nesta relação durante epidemias. Os fatores genéticos podem predispor à condição, uma vez que quase 40% dos pacientes apresentam uma história familiar positiva. Não há gene específico que ocasione a GNPE.

Etiologia

Em geral, a doença se manifesta após um quadro de infecção pelo EBHGA. Ocasionalmente, pode ser decorrente dos grupos C ou G. Apenas as cepas denominadas nefritogênicas podem causar a GNPE. Estas cepas são identificadas pela presença da proteína M, presente na parede celular. Os sorotipos mais comuns após um quadro de impetigo são M 2, 49, 55, 57 e 60. Já os sorotipos mais frequentes após faringites incluem M 1, 3, 4, 12, 18, 25 e 492.

Quadro Clínico

Geralmente, os pais relatam uma infecção recente por estreptococos, como faringite, amigdalite ou impetigo. Contudo, alguns pacientes desenvolvem GNPE sem apresentar sintomas de infecção, o que pode resultar em um atraso no diagnóstico da doença. A GNPE ocorre com maior frequência em crianças, uma a duas semanas após um quadro de faringite, ou duas a seis semanas após uma infecção de pele (impetigo).

As manifestações clínicas clássicas da GNPE englobam edema, hematúria, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e oligúria. O edema, não muito exuberante, ocorre em 85% dos casos de GNPE e sua intensidade é bastante variável. Frequentemente, é notado somente por queixas indiretas, como observação de que sapatos e/ou roupas estão apertados, ou ainda, pelo aumento do peso. De forma menos comum, sofre influência postural.

O edema periorbitário é bastante típico (lembre-se: nem todo edema periorbitário é angioedema!). É mais proeminente pela manhã e tende a regredir ao final do dia. O edema costuma anteceder a hematúria, que é macroscópica em 2/3 dos casos: a urina é, geralmente, descrita como esfumaçada, cor de chá, cor de Coca-Cola ou enferrujada. A hipertensão arterial surge em 60 a 90% dos casos. Costuma ser moderada, depende da intensidade da hipervolemia e pode piorar com a ingestão elevada de sódio. Muitas vezes, o estado geral da criança é bom, havendo queixas vagas como inapetência, indisposição e cefaleia

As possíveis complicações da GNPE incluem: congestão circulatória, encefalopatia hipertensiva e insuficiência renal aguda (IRA). Estas complicações podem se manifestar de forma isolada ou associada.

Diagnóstico

  1. Anamnese e exame físico: O pediatra deve questionar se a criança apresentou quadros prévios de faringite ou impetigo. Além disso, deve estar atento para a presença de edema, hematúria, hipertensão e manifestações extra renais.
  2. Exames laboratoriais – Quadro 1.

  3. Exames histológicos: A biópsia ratifica o diagnóstico. Contudo, raramente é necessária, pois a confirmação se dá principalmente pela hipocomplementemia. A biópsia renal não é indicada, a menos que existam características que tornem o diagnóstico duvidoso, ou que haja necessidade de avaliação do prognóstico e/ou por potenciais razões terapêuticas.
    – Microscopia de luz: todos os glomérulos apresentam hipercelularidade (células endoteliais, mesangiais e inflamatórias). Estes achados são inespecíficos e estão presentes em outras doenças glomerulares;
    – Microscopia eletrônica: o achado mais característico por microscopia eletrônica é a presença de corcovas, que são depósitos de elétrons densos no espaço subepitelial próximo à membrana basal glomerular. O principal antígeno é, provavelmente, uma cisteína proteinase de zimogênio, a exotoxina B (zimogênio/SPE B);
    – Microscopia de imunofluorescência: mostra depósitos de imunocomplexos com IgG e C3 em um padrão granular se a amostra de tecido for coletada nas primeiras 2 a 3 semanas da doença.

Diagnóstico diferencial

  • Glomerulonefrite membranoproliferativa;
  • Glomerulonefrite rapidamente progressiva;
  • Doença de Berger;
  • Síndrome hemolítico-urêmica;
  • Púrpura de Henoch-Schönlein;
  • Lúpus eritematoso sistêmico (glomerulonefrite lúpica).

Tratamento

Na maioria dos casos, a GNPE é uma condição autolimitada. O tratamento de suporte visa a controlar as complicações da sobrecarga de volume, como hipertensão e edema, que são proeminentes durante a fase aguda da doença. Além disso, o tratamento deve ser individualizado conforme o quadro clínico e condições culturais e socioeconômicas. Deve-se dar preferência ao tratamento ambulatorial. Na maior parte das vezes, a internação não é necessária. Entretanto, pacientes com oligúria intensa e/ou com sinais de insuficiência cardíaca ou de encefalopatia hipertensiva devem ser hospitalizados

Em relação ao repouso, este deve ser relativo, limitado pelo próprio paciente, de acordo com sua disposição. Deve ser recomendado enquanto houver edema, hematúria macroscópica e HAS. Ou, ainda, se houver qualquer complicação. O repouso prolongado não modifica a evolução da doença. Cuidados dietéticos são relevantes para a redução do edema e dos níveis de pressão arterial – Quadro 2.

O tratamento medicamentoso encontra-se resumido no Quadro 3.

Embora não haja evidências de estudos controlados randomizados sobre os benefícios da pulsoterapia com metilprednisolona, as recomendações do KDIGO Clinical Practice Guideline for Glomerulonephritis consideram seu uso em pacientes com glomerulonefrite rapidamente progressiva (crescêntica).

A GNPE apresenta prognóstico favorável, mas pode desenvolver insuficiência renal progressiva com necessidade de hemodiálise. Esteroides sistêmicos em altas doses possuem um papel limitado no manejo desta doença.

No entanto, recente caso publicado por Yang e colaboradores (2018) demonstrou o benefício da alta dose corticoide em um paciente de 19 anos com doença renal proliferativa por GNPE, embora não crescêntica, e insuficiência respiratória. Mais estudos são necessários para avaliar o uso rotineiro de esteroides nestes casos selecionados de GNPE.

Evolução e Prognóstico

Em geral, a terapêutica de suporte proporciona a recuperação da função renal. A melhora pode ser evidenciada, primeiramente, quando há aumento da diurese com diminuição do edema e normalização da pressão arterial. A hematúria macroscópica regride entre a primeira e a segunda semanas. Já a hematúria microscópica pode persistir por 18 meses, o que não significa que haja um prognóstico ruim.

A proteinúria nefrótica desaparece em quatro semanas. A proteinúria discreta pode permanecer por alguns meses. Em geral, a GNPE apresenta bom prognóstico. Apenas 5% dos pacientes se tornam crônicos. O prognóstico em longo prazo é pior nos pacientes, principalmente adultos, que apresentam proteinúria persistente após seis meses. Óbitos por GNPE são raros, relacionados a condução inadequada ou tardia das complicações

 

Referências:

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