Via aérea difícil em Pediatria é definida quando um anestesista qualificado lida com um ou mais das seguintes dificuldades: manter ventilação adequada; colocar o laringoscópio na posição correta; visualizar as cordas vocais; dificuldade para inserir o tubo traqueal.
Em dezembro de 2023, a Sociedade Brasileira de Anestesiologia publicou um artigo com as novas recomendações sobre manejo de via aérea difícil em Pediatria no Jornal Brasileiro de Anestesiologia baseado na literatura atual a fim de auxiliar o processo de decisão desde a abordagem inicial do paciente até as estratégias de intervenção. As recomendações são voltadas para anestesistas, mas aqui trazemos contribuições que podem ajudar o dia a dia do pediatra com o paciente grave.
Introdução
Um estudo observacional multicêntrico europeu feito por Engelhardt e colaboradores publicado em 2018 que analisou 31.204 procedimentos anestésicos pediátricos revelou que 0,9% das crianças (n:120) tinham via aérea difícil.
Peculiaridades pediátricas que podem tornar a via aérea difícil:
- Anatômicas: neonatos e lactentes têm cabeças relativamente grandes em relação ao pescoço e tórax, e maior proeminência occipital; hipertrofia de adenoide no início da infância; a glote é mais anteriorizada; os ligamentos da laringe são imaturos; a epiglote de neonatos é mais longa, estreita, menos tônica e em formato de ômega; a cartilagem cricoide é o ponto mais estreito da laringe até 10-12 anos de idade;
- Condições adquiridas por neoplasia, inflamação ou trauma;
- Malformações congênitas: fenda palatina, disostose craniofacial (estas duas primeiras são as mais frequentes), hipoplasia maxilar e/ou mandibular, e micrognatia;
- Doenças: laringomalacia, epiglotite, amigdalite, abscesso amigdaliano, laringoespasmo, desordem da articulação temporomandibular, doenças que reduzem a motilidade cervical ou condições que cursam com instabilidade da coluna cervical, teratoma, estenose subglótica pós intubação;
Leia também: Esquistossomose em Pediatria
Quando pode-se predizer que a via aérea é difícil?
Antes de acessar a via aérea, pode-se predizer por meio de avaliação com anamnese e exame físico verificando se há preditores de via aérea difícil:
- Idade < 6 meses ou peso < 5 kg;
- História prévia de intubação difícil;
- Método mnemômico ABCDE:
- A de Anomalias congênitas ou adquiridas (p. ex., radioterapia, inflamação, queimadura ou trauma em cabeça/pescoço) associadas à via aérea difícil);
- B de Boca (abertura, língua, dentes e hipoplasia/retrognatia mandibular);
- C de Cervical (limitação de movimentação, deformidade e articulação temporomandibular);
- D de Disfagia e Disfonia, e
- E de Estridor e Estenose.
A importância da adequada oxigenação durante a intubação
O objetivo principal durante a intubação deve ser oxigenar adequadamente o paciente ao invés de intubar a qualquer custo a fim de garantir a sobrevivência sem causar dano.
Em Pediatria, apneia causa queda de saturação de oxigênio mais rápido que nos adultos por conta de maior consumo de oxigênio (5-8 mL/kg/min) e maior volume-minuto (130 mL/kg/min). Para reduzir a ocorrência de hipoxemia, é muito importante fazer pré-oxigenação com FiO2 a 100% por 3 minutos e oxigenação durante a intubação (apneica ou durante respiração espontânea).
Ouça ainda: Anafilaxia em Pediatria [podcast]
A oxigenação durante a intubação pode ser feita com sistema de baixo fluxo de oxigênio (p. ex., cateter nasal ou cânula nasofaríngea — limitando o fluxo a 0,2 L/kg/min, garantindo bom posicionamento) ou de alto fluxo de oxigênio por cateter nasal de alto fluxo (ajustar o fluxo conforme o peso), não há diferença significativa nas taxas de hipoxemia, hipercapnia e apneia nas crianças. O médico deve usar a técnica e o sistema de fornecimento de oxigênio com o qual tenha mais experiência.
Taxa de fluxo no sistema de alto fluxo conforme o peso corporal deve ser de: 6 L/min para < 3 kg; 10 L/min para 3-5 kg; 20 L/min para 5-10 kg; 35 L/min para 10-20 kg; 40L/min para 20-40 kg; 50L/min para 40-60kg; 70 L/min para adultos.
Como manejar via aérea com preditores de ser difícil?
1º) Deixe todo material preparado apropriado para a idade/peso corporal para:
- Ventilação e oxigenação (cateter nasal de oxigênio ou cateter nasal de alto fluxo, reanimador manual com reservatório com máscara orofacial acoplado ao fornecimento de oxigênio, máscara laríngea);
- Intubação (laringoscópio com lâmina, videolaringoscópio, tubo endotraqueal, guia para intubação, bougie, dispositivo para sucção, fixação para tubo endotraqueal e broncoscópio flexível, o qual não está indicado em emergências). O médico deve escolher o dispositivo que tenha mais habilidade para intubar, uma vez que não há evidência que um dispositivo seja melhor que o outro. Em situações eletivas, a taxa de sucesso de intubação com broncoscópio flexível e videolaringoscópio são semelhantes;
- Sedoanalgesia (preferencialmente venosa e inalatória) e, se necessário, bloqueador neuromuscular. O uso de bloqueador neuromuscular facilita a intubação, pois diminui a reatividade das vias aéreas e o movimento das cordas vocais, mas é necessário ter seu reversor disponível para usá-lo;
- Monitorização cardíaca (eletrocardiograma), capnografia, oximetria de pulso e pressão arterial não invasiva;
Obs.: se for fora do centro cirúrgico e for uma intubação eletiva, deixe o ventilador mecânico montado já com os parâmetros ventilatórios configurados.
2º) Acione o médico mais experiente para que ele esteja presente e, a meu ver, vale a pena deixar a Cirurgia Pediátrica avisada e disponível para fazer traqueostomia de urgência se necessário. Como é um consenso feito por anestesistas, os cirurgiões já estão mais disponíveis no Centro Cirúrgico, então isso nem é comentado.
3º) Pré-oxigene, oxigene durante todo o procedimento, faça boa sedoanalgesia para o paciente (para evitar eventos adversos como o laringoespasmo), priorize manter a respiração espontânea para manter a saturação de oxigênio, o tônus das vias aéreas durante o procedimento e rápida recuperação caso a intubação traqueal falhe.
O que fazer diante de via aérea difícil não prevista após indução anestésica?
1º) No caso cenário de paciente que não oxigena, verifique se há:
- Falha no equipamento de anestesia ou reanimador manual, troque o dispositivo pelo qual está ventilando (o ideal é sempre checar o equipamento antes de acoplar o paciente);
- Obstrução de via aérea, que pode ser:
- mecânica (anatômica), que demanda manobras para melhora (p. ex., posicionamento da cabeça do paciente) e inclui posicionamento inadequado da cabeça, hipertrofia adenotonsilar e distensão gástrica.
- Funcional (fisiológica), que demanda tratamento medicamentoso e pode decorrer de hiperreatividade brônquica, rigidez torácica, laringoespasmo, fechamento faríngeo ou de glote, ou nível anestésico/sedativo inadequado;
Estratégias para usar em obstrução anatômica:
- Melhore o posicionamento do paciente: acima de 6 anos de idade, faça uma leve elevação e extensão da cabeça; já nos neonatos e lactentes, que já tem a glote mais anteriorizada, não é necessário elevar a cabeça, recomenda-se colocar coxim abaixo dos ombros e uma roldana feita com tecido abaixo do occipito para prevenir a rotação da cabeça;
- Certificar que a máscara facial é adequada para o paciente, que englobe da ponte nasal até o mento sem comprimir os olhos, e ajustar na face do paciente, mantendo o paciente na posição de “cheirar” e com boca aberta;
- Dispositivos para aliviar a obstrução de via aérea como cânula nasofaríngea, orofaríngea e, no caso de distensão gástrica, usar cateter orogástrico.
2º) Se a obstrução anatômica foi excluída, trate obstrução funcional, aprofundando a sedação usando propofol como agente de 1ª linha e, se necessário, use bloqueador neuromuscular.
O que fazer se não conseguir intubar?
1º) Chame ajuda de outro médico se a 1ª tentativa falhar;
2º) Se estiver usando laringoscopia direta, troque para videolaringoscopia se disponível e verifique se o posicionamento do paciente está adequado;
3º) Avaliar fazer pressão cricoide durante a laringoscopia;
Leia ainda: Lúpus eritematoso sistêmico na Pediatria
4º) Avaliar o uso de Bougie se a epiglote é visível, mas as cordas vocais não são visíveis e não há lesão laríngea/traqueal;
5º) Avaliar uso de máscara laríngea adequada se não houver obstrução completa da via aérea;
6º) Se não conseguir intubar nem ventilar, proceder a traqueostomia. Uma outra opção seria fazer oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO), mas no Brasil temos poucos centros que dispõem desse recurso.
Como confirmar intubação endotraqueal?
O método padrão-ouro é a capnografia ou capnometria colorida.
Como extubar criança com via aérea difícil?
1º) Deixe todo material para reintubação preparado assim como material para nebulizar com adrenalina, bolsa-valva-máscara (ambu) acoplado ao oxigênio, cânulas nasofaríngeas/orofaríngeas e material para ventilação não invasiva;
2º) Crianças com via aérea difícil devem ser extubadas acordadas, sendo que a presença de pelo menos três deste sinais prediz que a extubação acordada será segura: abertura ocular espontânea, olhar conjugado, contração dos músculos faciais (fazer careta), movimento espontâneo (não confundir com tosse reflexa) e respiração espontânea mostrando volume corrente > 5 mL/kg.
Fatores humanos
Essa diretriz também recomenda que sejam feitos treinamento de simulação de via aérea difícil em equipe multidisciplinar para preparar os médicos para lidar com essas situações e prepará-los melhor para lidar melhor sob essa situação que pode ser bem estressante e o estresse levar a tomada de decisão errada.
Conclusão
Essa diretriz de via aérea difícil reforça a importância de: oxigenar o paciente ao invés de intubar a qualquer custo; a necessidade de nos prepararmos para lidar com via aérea difícil tanto por meio de treinamentos com simulação realística para o passo a passo de como proceder quanto preparando adequadamente os equipamentos e medicações para o paciente.
Acesse também: Conheça os novos Clinical Drops de Pediatria! – PEBMED