AAP 2023: Abordagem da dor abdominal funcional na pediatria

O Dr. Hannibal Person, um gastropediatra e psiquiatra pediátrico, trouxe várias elucidações a respeito da dor abdominal funcional pediátrica. 

A dor abdominal funcional é um quadro que impõe limitação funcional a muitas crianças. Cerca de 40% das pessoas irão apresentar esse quadro em algum momento de suas vidas, geralmente na faixa etária escolar. As crianças acometidas acabam passando por uma série de intervenções diagnósticas e terapêuticas inadequadas que, no fim, não resultam em melhoria de suas qualidades de vida.  

No terceiro dia do AAP 2023, tivemos a palestra do Dr. Hannibal Person, um gastropediatra e psiquiatra pediátrico do Seattle Children’s Hospital, que trouxe várias elucidações a respeito da dor abdominal funcional pediátrica.  

O que são os distúrbios gastrointestinais funcionais

Os distúrbios gastrointestinais funcionais, hoje mais conhecidos como distúrbios da interação cérebro-intestino, são muito prevalentes, com estatísticas variando entre as pesquisas. Podem estar associados a outras comorbidades, como outros distúrbios gastrointestinais, incluindo doenças inflamatórias intestinais, outras condições de dor crônica, como enxaqueca ou doenças musculares crônicas, e a distúrbios psicológicos. Estima-se que 50% das crianças com dor abdominal funcional apresentem um quadro de ansiedade e/ou depressão associado.  

A etiologia dos quadros funcionais é extremamente complexa e não é bem compreendida até o momento. A disfunção do eixo cérebro-intestinal pode ocorrer após quadros infecciosos, pode estar relacionada à disfunção da microbiota intestinal, com fatores genéticos e alterações inflamatórias, como aumento de mastócitos locais e produção de citocinas pró-inflamatórias.  

Uma importante colocação do professor foi de que, apesar de se saber que a dor abdominal funcional está relacionada a distúrbios psicológicos, hoje não se pensa que os quadros de ansiedade levem à dor abdominal. O processo é mais complexo do que isso, e é mais provável que a dor abdominal recorrente leve o paciente a ficar mais ansioso.  

A abordagem do modelo psicossocial é a que melhor explica o quadro de dor funcional e deve ser pensada inclusive para fins terapêuticos. Esse modelo pensa na dor abdominal ocorrendo pela interligação de três diferentes domínios:  

  • Biológico: Genética, outras comorbidades, nutrição;  
  • Social: Família, estressores, relações com os pares;  
  • Psicológico: Comportamentos, adaptação, autoestima, outras condições psicológicas.  

Diagnóstico da dor abdominal funcional 

O diagnóstico da dor abdominal funcional é realizado pelos critérios de Roma IV. De acordo com o palestrante, praticamente todos os diagnósticos dados pelos critérios de Roma IV podem ser pensados como distúrbios da interação cérebro-intestino, então, muitas vezes teremos diagnósticos que podem sobrepor. No caso da dor abdominal funcional, o diagnóstico será dado na presença de todos os critérios abaixo, que devem estar presentes pelo menos quatro vezes por mês, por pelo menos dois meses:  

  • Dor abdominal episódica ou contínua que não ocorre apenas durante eventos fisiológicos (por exemplo, alimentação, menstruação etc.);  
  • Critérios insuficientes para síndrome do intestino irritável, dispepsia funcional ou migrânea abdominal;  
  • Após uma avaliação apropriada, a dor abdominal não pode ser totalmente explicada por outra condição de saúde.  

O diagnóstico da síndrome do intestino irritável (SII), que também é um tipo de dor abdominal funcional relacionada a alterações do eixo intestino-cerebral, é o quadro de dor abdominal recorrente na média de pelo menos um dia por semana nos últimos três meses (com tempo de duração do quadro acima de seis meses), associada a dois ou mais dos seguintes critérios:  

  • Relacionado a defecação;  
  • Associado com mudanças na frequência das fezes;  
  • Associada com mudanças na forma (aparência) das fezes; 
  • Predominância de diarreia, ou constipação, ou uma combinação dos dois, ou não classificado.  

A maioria dos pacientes com SII na adolescência se apresentarão com padrão de constipação, o que pode ser difícil de diferenciar do quadro de constipação funcional. No caso da SII e da dor abdominal funcional, a dor estará presente, enquanto na constipação funcional, na maioria das vezes ela não ocorre. Além disso, o uso de laxantes irá beneficiar apenas os quadros de constipação funcional, sem resolução nos outros quadros, que necessitam de manejos voltados para controle de dor.  

Durante a abordagem diagnóstica de uma criança com dor abdominal, devemos realizar uma boa anamnese, questionando a respeito da presença de sinais de alarme, fatores nutricionais e dieta realizada, tratamentos prévios, outras comorbidades, incluindo quadros psiquiátricos, e como é o funcionamento e a adaptação da criança à dor e a outras situações. Levar em consideração os fatores culturais e qual é a compressão do quadro e expectativas pelos pacientes e sua família.  

No exame físico, deve-se realizar um exame físico completo, avaliando a necessidade de realização de um exame retal e anal. Lembrar que geralmente essas crianças estão passando por um processo crônico de dor, além de alguns quadros estarem relacionados à quadros de abuso sexual, e por isso, todo cuidado é necessário nessa abordagem. 

Com relação aos exames complementares, geralmente eles não são necessários para pacientes com dor abdominal crônica sem sinais de alarme, mas para um paciente com dor abdominal e alterações de hábitos intestinais, o rastreio de doença celíaca deve ser realizado, uma vez que a doença celíaca pode se apresentar de formas não habituais. A avaliação de calprotectina fecal em pacientes com diarreia e em que haja a suspeita de doença inflamatória intestinal pode ser realizada, apesar de ainda não bem estabelecida na literatura. Outros exames laboratoriais e ultrassonografia de abdome não estão indicadas de rotina. A endoscopia não deve ser realizada em pacientes sem sinais de alarme. Isso vale inclusive nas situações em que os pais desejam se certificar de que está tudo bem, já que a literatura sugere que uma endoscopia negativa geralmente leva a maior ansiedade parental. 

Validação do quadro do paciente no diagnóstico 

Uma vez que haja o diagnóstico de dor abdominal funcional, é extremamente importante que a forma de comunicação do diagnóstico seja adequada. Evitar sugerir que é “apenas” uma dor abdominal funcional. Explicar ao paciente e sua família que sua dor é causada por uma condição chamada dor abdominal funcional, e que isso ocorre porque, apesar da digestão estar ocorrendo normalmente e não haver nenhuma alteração estrutural do sistema digestivo, a mensagem que o trato gastrointestinal envia para o cérebro é de que há algo errado. Ou seja, que há uma alteração de comunicação no eixo cérebro-intestinal.  

A validação da dor do paciente é essencial. Geralmente, as crianças que sofrem de dor abdominal funcional se sentem desvalidadas, pois muitas vezes os próprios profissionais de saúde não acreditam em sua dor e desmerecem o seu quadro. A educação sobre o quadro é fundamental.  

Orientar o manejo parental. Ensinar aos pais para que não se desesperem ou se alarmem durante as crises álgicas, e que não perguntem todo o tempo sobre a dor da criança. Orientar medidas distrativas durante os episódios de dor.  

Tratamento da dor abdominal funcional 

No plano terapêutico, é importante avaliar quais são os sintomas mais importantes para o paciente, e quais são suas expectativas com relação ao tratamento, se são ou não reais. Preferir sempre as abordagens não farmacológicas, limitando a polifarmácia e seus potenciais efeitos colaterais. Ser claro com o paciente a respeito da evolução do seu quadro.  

Com relação às medidas não farmacológicas, devem ser oferecidas para todos os pacientes, mesmo os que apresentam sintomas leves sem prejuízos na vida diária. Modificações de estilo de vida incluem atividade física, higiene do sono, manejo do estresse e ativação comportamental, ou seja, realizar atividades prazerosas e respiração diafragmática durante o quadro álgico. Dietas restritivas, apesar de serem comumente indicadas na prática, não apresentam evidências de benefícios na faixa etária pediátrica. Avaliar se o paciente não com dor abdominal funcional apresenta um distúrbio alimentar associado, pois é comum que por conta da dor, os pacientes limitem a quantidade e qualidade de alimentos em sua dieta. Manter uma dieta saudável, com redução de alimentos irritantes como pimenta e cafeína, orientar hábitos saudáveis para alimentação, como comer porções pequenas e mastigar bem os alimentos. Avaliar encaminhamento para nutricionista. Suplementação com fibras alimentares parece ter benefício nos estudos, e pode ser tentada na prática.  

Na abordagem de saúde mental, a terapia cognitivo comportamental (TCC) e a hipnoterapia apresentam os melhores benefícios nesses pacientes.  

Com relação à modulação da microbiota intestinal, o uso de prebióticos e posbióticos não apresenta evidências de benefício. Com relação ao uso de probióticos e simbióticos, os resultados são contraditórios. O uso de Lactobacillus rhamnosus GG e Lactobacillus reuteri parecem ter benefício da SII. O uso de antibióticos (rifaximina) para supercrescimento bacteriano na SII pode ter benefício, porém apenas em adolescentes, não devendo ser utilizado de rotina. Transplante fecal não tem evidência de benefício.  

Não há evidência de benefícios no uso de antiespasmódicos para o controle da dor, como a hioscina. O palestrante, porém, enfatizou que ele faz uso dessas medicações na sua prática, provavelmente com um efeito placebo, mas que ele considera importante que os pacientes tenham alguma alternativa para tratar os quadros de dor mais importantes.  

O uso de ciproheptadina, um anti-histamínico que apresenta efeitos anticolinérgicos e anti-serotoninérgicos, parece ter um benefício no controle da dor abdominal funcional, além de auxiliar no apetite. Cuidados devem ser tomados com a dose, sempre iniciando a menor dose possível, e observando efeitos de sedação, constipação e mudanças de humor e no padrão do sono.  

Os neuromoduladores são medicamentos psicotrópicos que vão modular o sistema nervoso periférico com redução da dor. Opções para seu uso incluem os antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina), os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (citalopram, escitalopram, fluoxetina e sertralina) e os inibidores seletivos da recaptação da serotonina e da noradrenalina (venlafaxina, desvenlafaxina e duloxetina). Devem ser utilizados em pacientes com sintomas mais refratários às outras medidas, e as evidências científicas são contraditórias. Uma novidade no tratamento dos quadros mais refratários é o uso dos PENFS (Percutaneous electrical nerve field stimulation), que se baseiam na neuromodulação dos nervos cranianos que fazem conexão entre o intestino e o cérebro. Essa terapia foi aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) para crianças entre 11 e 18 anos com SII. Não foi demonstrado benefício no tratamento de outras desordens funcionais.  

Os laxantes podem ser utilizados em pacientes que apresentam componente de constipação, mas não irão auxiliar na redução da dor. Laxantes que são estimulantes podem inclusive aumentar a dor abdominal, pois geralmente apresentam cólicas como efeito colateral.   

Outras terapias que podem ser utilizadas, mas não apresentam evidências de benefícios incluem biofeedback, acupuntura, massagens terapêuticas, medicamentos anti-refluxo e pró-cinéticos. 

E por quanto tempo eu devo tratar meu paciente? 

A ideia é de que, uma vez que haja controle dos sintomas, o cérebro poderá se reorganizar através da neuroplasticidade. Assim, considerando-se as preferências e tolerabilidade do paciente, pode-se manter o tratamento entre 6 e 12 meses, com retirada gradual das medicações associado a um plano de contingência, caso haja retorno dos sintomas.  

Mensagens para casa

  • A dor abdominal funcional é uma alteração do eixo intestino-cerebral, e apresenta alterações relacionadas em três âmbitos: biológico, social e psicológico.  
  • O diagnóstico é realizado através da história, exame físico e dos critérios de Roma IV.  
  • Evitar a realização de exames complementares, mas avaliar a necessidade de rastreio para doença celíaca e doenças inflamatórias intestinais.  
  • As medidas terapêuticas incluem mudanças no estilo de vida, medidas para neurorregulação e adaptação à dor e algumas medidas farmacológicas (essas com pouca evidência de benefício). Avaliar tratamento psicológico e psiquiátrico, dependendo do caso.  
  • Manter o tratamento de 6 a 12 meses depois do controle do caso, para que possa haver neuromodulação adequada com melhora da comunicação no eixo cérebro-intestinal.

Confira todos os destaques do AAP 2023 aqui!

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