Anticoagulação na cirrose: ainda um paradoxo?

Uma meta-análise abordou a eficácia e segurança da anticoagulação no tratamento da trombose de veia porta (TVP) em pacientes com cirrose.

O senso comum é o de que a doença hepática crônica avançada (DHCA) é uma condição intrinsecamente relacionada a um alto risco de sangramento. Dessa forma, por muito tempo considerou-se que a profilaxia e tratamento de eventos trombóticos nesse cenário representasse um grande dilema clínico.  

Na última década, entretanto, as evidências têm apontado que, além de segura, a anticoagulação em cirróticos tem se atrelado à redução da mortalidade.

Confira: Diagnóstico e manejo de cirrose hepática

cirrose

Qual seria o racional dessa aparente contradição?

A hipertensão portal clinicamente significativa gera, no leito microvascular hepático, uma redução do fluxo sanguíneo e, dessa forma, estase, que é um alicerce da tríade de Virchow. Por sua vez, a trombose micro e macrovascular agravam a disfunção endotelial dos sinusoides hepáticos, estimulando a ativação das células estreladas hepáticas e a progressão da fibrose. Dessa forma, a anticoagulação parece desempenhar um papel antifibrótico, modificando a evolução natural da doença hepática.   

Aqui trataremos de um meta-análise publicada no Journal of Hepatology em fevereiro/2023 por Guerrero e colaboradores, integrantes da cooperação Baveno e do consórcio da EASL, que aborda a eficácia e segurança da anticoagulação terapêutica no tratamento da trombose de veia porta (TVP) em pacientes cirróticos.   

A TVP é um evento frequente na evolução natural da cirrose, acometendo 14% dos pacientes. Em estudos observacionais a profilaxia e o tratamento da TVP em cirróticos têm se associado a melhora dos desfechos hepáticos e da sobrevida, viabilizando a recanalização de uma forma segura, além de otimizar a patência das anastomoses confeccionadas no transplante hepático.  

Metodologia 

Trata-se de uma revisão sistemática e meta-análise com dados de pacientes individuais coletados até junho/2022.  

Os critérios de inclusão foram estudos de coorte ou randomizados-controlados contemplando pacientes cirróticos com TVP expostos ou não a anticoagulação (heparina de baixo peso molecular ou antagonistas da vitamina K).  

Por sua vez, os critérios de exclusão foram TVP pós-operatória, TVP em não-cirróticos ou transplantados hepáticos, bem como TVP tumoral, além do emprego de anticoagulantes orais de ação direta (DOACs), instituição de shunt porto-sistêmico transjugular intra-hepático (TIPS) ou pacientes submetidos à trombólise. 

A TVP foi definida com ausência de fluxo em parte ou todo o lúmen em qualquer sítio do sistema esplâncnico (veia mesentérica e/ou veia porta e seus ramos principais e intra-hepáticos) causada por material sólido no interior da veia e documentada por radiologia (Doppler hepático, TC ou RM de abdome).  

O desfecho primário foi o de mortalidade por todas as causas, tratando-se o transplante hepático como evento competidor; enquanto os desfechos secundários incluíram recanalização da veia porta e eventos hemorrágicos.  

Resultados 

Foram incluídos cinco estudos de coorte publicados entre 2016 e 2018, perfazendo 500 pacientes, com média de idade de 58 anos, predominância do sexo masculino (70%) e da etiologia viral (48%). A média de MELD foi de 13 e houve boa representação dos grupos Child-Pugh B ou C (63%). Aproximadamente 30% dos pacientes estavam em vigência de profilaxia secundária de hemorragia digestiva alta relacionada à hipertensão portal. A média de plaquetas foi de 87.000/mL e RNI de 1,4. A duração média da anticoagulação foi de 9 meses, com tempo de seguimento médio de 26 semanas. 

Entre os 500 pacientes alocados, 205 (41%) encontravam-se no braço da intervenção (anticoagulação) e 295 (59%) no braço controle. A TVP acometia o tronco principal em 80% dos casos, sendo completa em aproximadamente 45%.  

O número de óbitos foi de 51 (24,9%) no grupo intervenção e 115 (39,1%) no grupo controle. O número necessário para tratar (NNT) para evitar 1 morte tornou-se mais robusto e com a ampliação do tempo de anticoagulação: 18,83 em 1 ano, 12,56 em 2 anos e 6,8 em 5 anos, inferindo-se um possível gradiente biológico. O impacto da anticoagulação sobre a mortalidade geral e específica foi significativo e persistente após análises de fatores confundidores e eventos competidores (HR: 0,59 – IC 95%: 0,49 – 0,7), sendo independente da gravidade da TVP e da taxa de recanalização. 

A recanalização parcial ou completa foi documentada em 118 (57,6%) pacientes do grupo intervenção e 97 (32,9%) do grupo controle (OR ajustada de 3,45 – IC 95%: 2,22 – 5,36).  

Por fim, a taxa global de sangramentos foi semelhante entre os grupos (19% vs 15,6%), embora o sangramento gastrointestinal não relacionado à hipertensão portal tenha sido mais frequente no grupo intervenção.

Leia também: Lesão renal aguda na cirrose hepática: abordagem prática

Mensagens finais 

  • A anticoagulação terapêutica no manejo da trombose da veia porta (TVP) em pacientes cirróticos deve ser encorajada, pois se associa à redução de mortalidade;
  • As evidências atuais são consistentes em demonstrar a segurança da anticoagulação na presença de doença hepática crônica avançada (DHCA), desde que empregadas as medidas de profilaxia de sangramento relacionado à hipertensão portal;
  • O emprego de anticoagulantes de ação direta (DOACs), apesar do uso crescente em estudos e na prática cotidiana em hepatopatas, infelizmente não foram alvo da meta-análise em questão, o que apontamos como um ponto desfavorável do estudo.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Guerrero A et. al. Anticoagulation improves survival in patients with cirrhosis and portal vein thrombosis: The IMPORTAL competing-risk meta-analysis. Journal of Hepatology, 2023, doi: 10.1016/j.jhep.2023.02.023.