CBMI 2022: Protocolo de tratamento da cetoacidose diabética (CAD)

Foi apresentada no CBMI 2022 a palestra “protocolo de tratamento da cetoacidose diabética (CAD)”. Veja os detalhes.

No XXVII Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI 2022), que ocorreu em Brasília de 10 a 12 de novembro, a pediatra intensivista Helena Müller apresentou a palestra “protocolo de tratamento da cetoacidose diabética (CAD)” na sessão temática “temas relevantes na prática diária”.  Pontos relevantes da aula estão resumidos a seguir. 

médico fazendo cristaloides para cetoacidose diabetica

Diagnóstico da CAD 

A CAD é uma grave complicação que ocorre em pacientes com diabetes mellitus (DM), especialmente o tipo 1. Em pediatria, os critérios bioquímicos para seu diagnóstico incluem: 

  • Glicemia sanguínea > 200 mg/dL (raramente inferior a 200); 
  • pH de sangue venoso < 7,3 ou bicarbonato sérico < 15 mmol/L; 
  • Cetonemia e cetonúria. 

As manifestações clínicas da CAD são (relacionados à hiperglicemia, hiperosmolaridade, acidose e desidratação):  

  • Poliúria; 
  • Polidipsia; 
  • Polifagia; 
  • Enurese; 
  • Fadiga;
  • Perda de sono; 
  • Sinais de desidratação; 
  • Taquipneia/hiperpneia; 
  • Hálito cetônico; 
  • Náuseas/vômitos;
  • Dor abdominal; 
  • Alteração de consciência. 

Classificação de gravidade 

Quanto à gravidade, a CAD se classifica em: 

Classificação 

pH  HCO3 

Déficit de fluido 

Leve  

7,2 – 7,3   10 – 15  

5% 

Moderada 

7,1 – 7,19   5 – 10  

7% 

Grave 

<7,1  <5 

10% 

Fonte: adaptado de Müller, 2022 (conforme recomendações da British Society for Paediatric Endocrinology and Diabetes – BSPED – 2020). 

Dentre os achados laboratoriais, destacam-se: 

  • Anion gap aumentado – [Anion gap = Na – (HCO3 + Cl)]; 
  • Hiponatremia; 

Na corrigido: aumentar 1,6 para cada 100 mg/dL de glicose >100.  

  • Hipo/hipercalemia; 
  • Hipofosfatemia; 
  • Leucocitose; 
  • Hiperosmolaridade (300 a 350 mOsm/kg) 

Osmolaridade = (2 x Na) + (Glicose/18) + (Ureia/6) 

O que o pediatra deve fazer

Na avaliação inicial, o pediatra deve: 

  • Realizar o ABCDE;
  • Avaliar o grau de desidratação; 
  • Colher laboratório de admissão: gasometria, hemograma, glicemia, hemoglobina glicada, eletrólitos, ureia, creatinina, cetonemia e cetonuria; 
  • Colher culturas no paciente febril; 
  • Obter o peso do paciente em kg.  

Passos importantes para a monitorização: 

  • Internação em sala de emergência ou Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP); 
  • Monitorização cardíaca contínua; 
  • Sinais vitais e glicemia capilar 1/1h; 
  • Controle de diurese e balanço hídrico;
  • Gasometria a cada 1 a 2 horas; 
  • Bioquímica a cada 2 a 6 horas; 

Avaliação de sensório 1/1h – atenção para a possibilidade de edema cerebral

A Dra. Helena destacou que, muitas vezes, os pacientes estão mais desidratados do que sugere o exame clínico e que o choque é raro (mas sua possibilidade deve ser aventada sempre). 

Tratamento

Os objetivos do tratamento da CAD são: 

  • Correção da desidratação e dos distúrbios eletrolíticos; 
  • Correção da acidose metabólica e reversão da cetose; 
  • Ajuste da glicemia;
  • Monitorização e tratamento das potenciais complicações.  

Reidratação 

Muitas dúvidas surgem quando se trata da reidratação dos pacientes em CAD: Qual a velocidade recomendada? Qual a solução recomendada? Essas escolhas afetam a incidência de edema cerebral?  Para abordar essas questões, a Dra Helena mostrou os resultados de um estudo multicêntrico de 2018 (Kuppermann e colaboradores) publicado no periódico The New England Journal of Medicine. O estudo foi conduzido de 2011 a 2016 e incluiu 1389 episódios de CAD em 1255 pacientes pediátricos com menos de 18 anos de idade.

Os pesquisadores concluíram que nem a taxa de administração nem o teor de cloreto de sódio dos fluidos intravenosos (IV) influenciaram significativamente os desfechos neurológicos em crianças com CAD durante o tratamento e seis meses depois. No mesmo estudo, não houve diferença entre os grupos quanto ao tempo de resolução da CAD e o tempo de internação, nem com a avaliação neurológica durante a internação e a avaliação neurocognitiva seis meses após a alta. A conclusão foi de que é seguro fazer a reidratação dos pacientes com CAD em 24 a 48 horas com soluções de concentrações de sódio entre 0,45 e 0,9% (o uso de solução 0,45% pode reduzir a ocorrência de acidose hiperclorêmica).  

Dessa forma, a Dra Helena mencionou as fases para a reidratação de pacientes com CAD (reposição de déficit 5 a 10%): 

Fase de expansão: 

  • SF 0,9% 10 a 20 mL/kg em 30 a 60 minutos; 
  • Repetir se houver má perfusão. 

Fase de reidratação: 

  • Repor perdas em 24 a 48 horas (SF 0,45 a 0,9%) associado ao volume de manutenção;
  • Descontar o volume feito na expansão. 

Na fase de reidratação, deve-se adicionar glicose quando a glicemia capilar estiver entre 250-300mg/dL. A avaliação clínica, de eletrólitos e de osmolaridade deve ser realizada: deve haver redução gradual da osmolaridade e aumento gradual do na sérico com a diminuição da glicemia. O valor de glicemia recomendado durante o tratamento deve ser entre 150 a 250 mg%. 

Na CAD, o déficit de potássio (K) ocorre por desvio intracelular (hipertonicidade, glicogenólise, proteólise e acidose) e perdas pelo trato gastrointestinal (vômitos) e renais (diurese osmótica). A reposição de K pode ser feita na dose de 40 mEq/L, utilizando-se KCl ou metade KCL e metade KPO4. Se o K sérico estiver: 

  • Diminuído: iniciar reposição antes da insulina em infusão contínua (IC); 
  • Normal: iniciar K após expansão volêmica, junto com a insula IC;
  • Aumentado: iniciar K após diurese. 

A palestrante destacou o modelo two bag-system. Nesse modelo, a concentração de eletrólitos das duas bolsas difere apenas na quantidade de dextrose. A concentração de dextrose administrada ao paciente pode ser manipulada entre 0% e 10% simplesmente ajustando as taxas de fluxo de cada bolsa de fluido IV. Ao titular as diferentes proporções das duas bolsas de fluidos IV, a quantidade de administração de glicose e a taxa total de fluidos podem ser manipuladas independentemente.

Fonte: adaptado de Muller, 2022 (conforme o modelo de Poirier, Greer, Satin-Smith, 2004).

Insulinoterapia

A insulinoterapia é essencial no tratamento da CAD. Seu objetivo é reduzir a lipólise e a cetogênese, normalizando a glicemia. Pontos de destaque mencionados pela Dra. Helena: 

  • Iniciar sempre uma hora após o início da reidratação; 
  • Não administrar dose em bolus; 
  • Insulina regular em IC 0,05 a 0,1 UI/kg/h (efeitos comparáveis e segurança com o uso de doses de 0,05 UI/kg/h – utilizar 0,1 em quadros graves); 

Solução SF 250 + insulina regular 25 UI = 0,1 UI/mL ou 

Solução SF 50 mL + insulina regular 50UI = 1 UI/mL 

  • Redução na glicemia de 50 a 100 mg/dL/h; 
  • Glicemias recomendadas: 150 a 250 mg/dL;
  • Manter insulina contínua até a resolução da acidose.

Em caso de redução da glicemia: 

  • Se houver manutenção da acidose: manter insulina e aumentar a oferta de glicose; 
  • Se a glicemia reduzir >100 mg/dL/h: aumentar a oferta de glicose. 

Em casos de correção lenta da acidose, reavaliar o paciente quanto ao preparo da insulina (se foi feito corretamente, saturando o equipo antes) ou se o paciente está infectado. 

A insulina subcutânea (SC) é uma opção em casos de CAD com pH >7,1 se não houver insulina IV disponível. A dose é 0,13 a 0,17 UI/kg de insulina regular de 4/4h (podendo aumentar para 3/3h ou 2/2h). Deve haver monitoração rigorosa de gasometria, eletrólitos e hidratação (a Dra Helena usou as recomendações de Priyambada e colaboradores, 2020). 

A suspensão da insulina em IC deve ocorrer quando: 

  • pH > 7,30; 
  • Bicarbonato >15;
  • Pacientes em condições de se alimentar por VO.

Bicarbonato de sódio 

O bicarbonato de sódio não é recomendado, pois não há evidências de benefícios. Seus efeitos adversos possíveis incluem: hipocalemia, aumento da osmolaridade, acidose paradoxal em sistema nervoso central, redução mais lenta da cetonemia e relação com o desenvolvimento de edema cerebral. Seu uso deve ser avaliado criteriosamente somente em casos de pH < 6,9, com comprometimento hemodinâmico e hipercalemia.  

Edema cerebral 

Ocorre em 0,3 a 1% dos episódios de CAD, com mortalidade de 20 a 25% e morbidade neurológica entre 10 a 25%. Ocorre geralmente após 4 a 12 horas após o início do tratamento (alterações neurológicas leves estão presentes em 4 a 15% dos pacientes durante o tratamento).  

Fatores de risco

  • Primeiro episódio de CAD, sem DM prévio;
  • Idade < 5 anos; 
  • Duração maior dos sintomas; 
  • Acidose grave; 
  • Hipocapnia grave; 
  • Ureia elevada;
  • Uso de bicarbonato; 
  • Elevação lenta do Na sérico durante o tratamento; 
  • Reposição de grandes volumes nas primeiras 4 horas; 
  • Uso de insulina na primeira hora. 

Tratamento 

  • ABC; 
  • Cabeceira elevada; 
  • Reduzir a infusão de líquidos; 
  • Manitol – 0,5 a 1 g/kg IV em 20 minutos. Repetir em 2 horas OU solução salina hipertônica 3% 0,5 a 1 mL/kg/h;
  • Tomografia computadorizada de crânio.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • MÜLLER, Helena. Protocolo de tratamento da Cetoacidose Diabética (CAD). XXVII Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI 2022). 2022. Brasília  
  • BRITISH SOCIETY FOR PAEDIATRIC ENDOCRINOLOGY AND DIABETES. BSPED DKA Guidelines”. 2020 Disponível em: https://www.bsped.org.uk/clinical-resources/bsped-dka-guidelines/  Acesso em: 15/11/2022 
  • KUPPERMANN, Nathan et al. Clinical Trial of Fluid Infusion Rates for Pediatric Diabetic Ketoacidosis. N Engl J Med. v.378, n.24, p.2275-2287, 2018 
  • PRIYAMBADA, et al. ISPAD Clinical Practice Consensus Guideline: Diabetic ketoacidosis in the time of COVID-19 and resource-limited settings-role of subcutaneous insulin. Pediatr Diabetes, v.21, n.8, p.1394-1402, 2020