Como manejar sangramentos causados por anticoagulantes orais?

Anticoagulantes fazem parte da prescrição de muitos pacientes da Clínica Médica, mas nenhuma especialidade escapa de ter contato com eles.

Anticoagulantes fazem parte da prescrição de muitos pacientes da Clínica Médica, mas nenhuma especialidade escapa de ter contato com esse tipo de medicação. São inúmeras indicações, das profiláticas às terapêuticas, e os tipos existentes são igualmente variados. A complicação mais comum, como esperado, são os sangramentos que também podem variar de simples a graves.

Apesar de algo relativamente comum, as hemorragias associadas ao uso de anticoagulantes orais ainda são um desafio muito frequente para os médicos. São poucas as diretrizes orientando especificamente como manejar esses casos. Neste artigo, vamos delinear alguns passos para conduzir situações do tipo, incluindo como e quando retornar o uso das medicações.

Leia também: Deve-se usar anticoagulantes orais diretos no tratamento da síndrome antifosfolípide?

Anticoagulantes orais podem causar sangramento

Avaliando a gravidade do sangramento

Classificar a gravidade do sangramento é de suma importância para o manejo porque auxilia na decisão terapêutica e nas etapas a serem seguidas. Para isso, é necessário conhecer o máximo possível da história clínica do paciente, incluindo o sítio de sangramento, se houve ingestão excessiva de medicamento (acidental ou não), outras comorbidades e medicações com potenciais interações (ex: antiagregantes plaquetários, anti-inflamatórios, etc), dentre outros elementos.

A classificação é feita em sangramentos maiores ou menores, de acordo com a presença de um ou mais dos seguintes critérios:

Sangramento em sítio crítico: É definido como um sangramento que compromete, pelo menos potencialmente, a função de um órgão (não necessariamente relacionado ao risco de vida). Hemorragias intracranianas ou em outros pontos do sistema nervoso (incluindo o olho) são o principal exemplo. Outros exemplos incluem hemorragias de vias aéreas (incluindo epistaxe posterior), pericárdio, cavidades (pleura, peritôneo e retroperitôneo), músculos e articulações (por comprometer a movimentação). Sangramentos gastrointestinais, por essa definição, não são considerados de sítio crítico, apesar do risco de vida.

Instabilidade hemodinâmica: Esse é outro critério importante que pode englobar mesmo sangramentos que não são de sítios críticos. Sinais como hipotensão, taquicardia, hipotensão ortostática devem sempre levantar a suspeita de instabilidade associada ao sangramento. Outros sinais como oligúria, rebaixamento do nível de consciência e outros sinais de disfunção orgânica também sinalizam hipoperfusão tecidual.

Sangramento franco com queda de Hb de 2g/dL ou mais ou necessidade de transfusão de 02 bolsas ou mais de concentrados de hemácias: Esse critério sinaliza a intensidade do sangramento, mesmo na ausência de instabilidade hemodinâmica e de acometimento de sítio crítico, com potencial deterioração clínica. É importante lembrar que pacientes coronariopatas são especialmente sensíveis a quedas de hemoglobina, sendo importante avaliar caso a caso flexibilizar o critério, se necessário.

Exames laboratoriais também são importantes por indicar a necessidade ou não de reversão dos efeitos do anticoagulante em uso (além de sua suspensão). Para antagonistas da vitamina K (ex: varfarina), os exames de TAP e TTPa são essenciais e geralmente são suficientes para orientar as condutas. Os mesmos exames são usados para os novos anticoagulantes orais, porém nesse caso o raciocínio não é tão direto. A dose a partir da qual cada um desses medicamentos aumenta o risco de sangramento não é conhecida e nem todos alteram efetivamente ambos esses exames (alguns alteram ambos, outros apenas um, outros nenhum, e o efeito ainda varia de acordo com a dose usada).

Nesses casos, a dosagem direta dos anticoagulantes, quando disponível, é frequentemente necessária. Medicamentos como Dabigatrana são passíveis de dosagem direta por vários métodos, enquanto antagonistas do fator X ativado (fXa) como rivaroxabana, apixabana, edoxabana e betrixabana podem ser identificados por um painel para essa classe de medicações.

Manejo de sangramentos maiores por anticoagulantes 

Manejo inicial

As primeiras etapas do manejo são gerais e comuns a todas as situações de sangramento com risco de vida ou de lesão orgânica. Os agentes anticoagulantes e antiplaquetários devem ser suspensos imediatamente e a avaliação inical de rotina da emergência (vias aéreas, respiração, circulação, nível neurológico) dever ser feita a fim de identificar sinais de choque ou potencial necessidade de suporte ventilatório.

Se instabilidade hemodinâmica presente, está indicada a ressuscitação volêmica agressiva com cristaloides (não há evidências de melhor resposta com coloides). É importante, também, atentar-se para os riscos associados com a ressuscitação: acidose metabólica hiperclorêmica (no caso do soro fisiológico), congestão e edema em pacientes portadores de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) ou doença renal crônica (DRC) etc. Dependendo dos níveis de hemoglobina (Hb), a transfusão de hemocomponentes também pode ser necessária, mesmo para a compensação da instabilidade hemodinâmica. Geralmente, o alvo de Hb é de 7 g/dL, exceto para pacientes coronariopatas (cujo alvo é 8 g/dL). O alvo para plaquetas é de 50.000/microL e o de fibrinogênio é de 100 mg/dL. Se o paciente precisar de três ou mais bolsas de hemoconcentrados dentro de uma hora, deve-se ativar o protocolo de transfusão maciça conforme as orientações do serviço.

Outras condições associadas podem complicar o controle ou gerar confusão. Por exemplo, acidose metabólica e hipotermia pioram a discrasia sanguínea, enquanto a uremia associada a DRC compromete a atividade plaquetária. Pacientes com DRC também recirculam mais os anticoagulantes, enquanto os pacientes portadores de cirrose hepática podem ter TAP e TTPa naturalmente alargados.

Controle de sangramento

Para o controle do sangramento, estão indicados o uso de ácido tranexâmico e, principalmente, resolução da fonte o mais rápido possível. Compressão local, quando eficaz, e procedimentos cirúrgicos, quando necessários, devem ser urgenciados.

No caso dos antagonistas de vitamina K, a reposição da mesma vitamina é o tratamento específico, sendo recomendado o uso intravenoso de doses entre 1 e 10 mg diluídas em 50 mL de soro fisiológico e administradas durante 30 min. Geralmente, a reversão do efeito ocorre em 4 a 6 horas, o que nem sempre pode ser rápido o suficiente para a necessidade. Nesses casos, em que é necessária reversão rápida, a reposição de fatores com o concentrado de complexo pró-trombínico de quatro fatores (4F-PCC) está indicado. Se esse tipo de hemoderivado não estiver disponível, o uso de plasma também é eficaz.

O PCC é um hemoderivado que contém fatores da coagulação dependentes de vit. K. Existem duas versões: o de três fatores que contém fator II, IX e X, e o de quatro fatores que contém fator II, VII, IX, X, proteínas C e S. Suas vantagens estão no fato de que sua administração, ao contrário do plasma, não necessita de tipagem ABO. Além disso a concentração de fatores dependentes de vit. K no PCC é cerca de 25 vezes aquela presente no plasma, o que aumenta sua eficácia e reduz o volume necessário, além de permitir infusão mais rápida.

Saiba mais: Papel dos novos anticoagulantes orais na tromboprofilaxia após alta hospitalar

Para os inibidores de vitamina K, a dose dos fatores contidos 4F-PCC varia de acordo com o nível de TAP/RNI: 25 unidades (U)/Kg para RNI 2-4, 35 U/Kg para RNI 4-6 e 50 U/Kg para RNI > 6 (limite de 5.000U para pacientes adultos, mesmo em pesos acima de 100Kg). Já a dose de plasma é de 15-30 mL/Kg para reversão adequada. Porém, esse valor geralmente leva a grandes volumes e necessidade de muitas bolsas para atingir o valor, o que inviabiliza a reposição rápida. Muitas vezes, na prática, opta-se pela reposição com 10-15 mL/Kg e dosagens seriadas de TAP/RNI até normalização.

Já no caso dos anticoagulantes orais, existem inibidores específicos da classe dos imunobiológicos. No caso dos inibidores de fator IIa (dabigatran), o inibidor específico é o idarucizumab e, quando disponível, é a droga de escolha por seu efeito efeito rápido (dose: 5 g divididos de 12/12 horas). Porém, essa não é uma medicação amplamente distribuída aqui no Brasil. Nesse caso, o PCC ou PCC ativado pode ser usado na dose 50 U/Kg (máximo de 4.000U). O plasma também é uma opção, apesar de a dose ainda não estar bem esabelecida na literatura médica. Como o dabigatrana é distribuído, em sua maior parte, livre no plasma, hemodiálise pode ser uma opção em casos de sangramento grave e necessidade de resolução rápida da intoxicação.

Já para os inibidores de fator Xa, o medicamento recomendado é o adexanet alfa. Essa medicação é nova e, portanto, ainda está em estudos e sua dose ainda não é bem estabelecida. Estudos até hoje usaram um bolus de 600-800 mg seguido de 2 horas de infusão a 8 mg/min. Essa dosagem reduziu os efeitos dos anticoagulantes em 92% dentro das primeiras 12 horas. Quando indisponível, é recomendado o uso de 4F-PCC  na dose de 50U/Kg. Porém, como os efeitos desse tipo de hemoderivado nos inibidores do fator Xa é muito variável, podem ser usadas doses até um máximo de 200 U/Kg. O plasma, aqui, também é uma alternativa, porém também sem doses definidas em literatura.

Ouça: Check-up Semanal: protocolo SBI para Covid-19, anticoagulação em crianças e mais! [podcast]

Manejo de sangramentos menores

Os sangramentos menores têm um manejo muito semelhante ao dos sangramentos maiores, especialmente nos passos iniciais. A reversão da anticoagulação, porém, não está indicada nesses casos e nem mesmo o anticoagulante em questão precisa ser suspenso em todos os casos. Os medicamentos devem ser suspensos de acordo com as respostas a algumas perguntas: A anticoagulação está além do alvo desejado? O paciente precisará de procedimento invasivo? O sítio de sangramento ainda está em investigação? Existe o risco de sangramento oculto, ainda não identificado? O paciente necessitou de hemotransfusão? O paciente tem comorbidades graves que necessitam de compensação (ex: isquemia miocárdica, insuficiência cardíaca etc).

Se a resposta para uma ou mais dessas respostas for positiva, a anticoagulação deve ser suspensa até resolução do sangramento. Em geral, nesses casos, o retorno da anticoagulação pode ser imediatamente após.

Quando retomar o uso de anticoagulantes?

O momento oportuno para o reinício da medicação varia com o caso. A maior parte dos estudos recomenda a discussão multidisciplinar, envolvendo especialistas (ex: neurocirurgia e neurologia em caso de hemorragias intracranianas) e o próprio paciente. Toda suspensão de medicação deve ser uma oportunidade para reavaliar a indicação da mesma, e isso vale para os anticoagulantes.

Se o paciente não tiver indicação de anticoagulação continuada, não é necessário retornar a medicação após a cessação do sangramento. Caso o paciente necessite da anticoagulação, alguns pontos devem ser avaliados: se o sangramento ocorreu em sítio crítico, se o risco de ressangramento é alto ou alto risco de gravidade, se o foco do sangramento não foi identificado, se há procedimentos cirúrgicos planejados em breve ou se o paciente apresentar resistência ao reinício da medicação, deve-se considerar adiar o retorno. Se nenhum desses elementos estiver presente, indica-se o retorno imediato do medicamento.

Caso o retorno imediato do medicamento seja possível, é importante avaliar possíveis reajustes de dose, de outras medicações em uso que possam interagir com o anticoagulante ou mesmo a troca da classe da droga para evitar novos sangramentos futuros. Atenção especial para o uso de antiagregantes plaquetários é importante, sendo interessante reavaliar a indicação dos mesmos. Caso o paciente não possa receber medicações por via oral, tenha procedimentos invasivos programados. Para alto risco de sangramento ou gestantes, o recomendado é reinicar a anticoagulação com medicamentos parenterais (ex: heparinas).

Já se, por qualquer um dos critérios indicados anteriormente, o paciente tiver indicação de adiar o retorno da medicação, não há indicações claras de quando esse retorno pode acontecer. As evidências mostram que essa é uma situação em que o cuidado é bem variado, caso a caso, e que, portanto, a discussão multidisciplinar e com o paciente deve ser a estratégia para a a decisão do melhor momento.

Referências bibliográficas:

  • Tomaselli GF, et al. 2020 ACC Expert Consensus Decision Pathway on Management of Bleeding in Patients on Oral Anticoagulants. Journal Of The American College Of Cardiology. 2020;76(5):594-622. doi: 10.1016/j.jacc.2020.04.053.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.

Especialidades