Mortalidade no Brasil: entre os números e o processo

Dentre as principais alterações estruturais do SUS alguns pontos se fizeram importantes para modificação do perfil de morbimortalidade no país. Saiba mais:

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Não há que se negar que a própria evolução tecnológica no campo da saúde oportunizou mudanças diversas na epidemiologia brasileira e mundial. Desde a possibilidade de controle da natalidade, até as tecnologias substitutivas de suporte à vida, todo o conhecimento desenvolvido tem contribuído para a realidade atual.

Falando em cenário brasileiro, dentre as principais alterações estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS), alguns pontos se fizeram importantes para modificação do perfil de morbimortalidade no país. Utilizemos como exemplo a criação da Estratégia de Saúde da Família, criada em 1994, alavancando um objetivo mais integral no cuidado em saúde. Do mesmo modo, medidas simples como o Programa de Vacinação Nacional, mostraram-se eficientes no controle e redução de doenças infecciosas e parasitárias, que, por longos anos se constituíram a principal causa de óbito.

mortalidade

Cenário da mortalidade entre 1990 e 2015

Se por um lado, seria difícil enumerar a quantidade de programas na melhora da acessibilidade à atenção básica de saúde, por outro, o envelhecimento populacional e a queda das taxas de fecundidade têm trazido novos desafios. Avaliando de modo mais sistemático os indicadores de saúde no intervalo entre 1990 e 2015 no Brasil (SIM, PNAD, PNDS, Censos), nota-se queda acentuada da mortalidade por doenças transmissíveis, causas evitáveis e morbimortalidade materno-infantil, aumentando a expectativa de vida e longevidade da população.

No entanto, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) lideram hoje como principal causa de morte, motivo este que movimenta o SUS a ampliar e especializar sua assistência primária, secundária e terciária, em especial aos idosos. Não seria efetivo se considerássemos isoladamente o fator longevidade à eficiência do sistema de saúde, já que, por vezes, o uso das tecnologias substitutivas e tratamentos disponíveis não garantem vida com qualidade.

Questões atuais

Falamos hoje em qualidade de vida, envelhecimento bem-sucedido, ou aumento da expectativa de vida saudável, como dados essenciais na avaliação da epidemiologia mundial. Tão importante quanto o conhecimento das causas de óbito, são as causas de morbidade, pois estas, além de movimentarem grandes recursos do país, deterioram a condição de vida digna e funcionalidade da população.

Para além do estudo epidemiológico maciço que vem sendo realizado pelos censos nacionais, se faz importante que os profissionais da saúde também levem em conta o impacto das DCNT no período percorrido pelos pacientes, do diagnóstico até a constatação do óbito. Se as tantas profissões em saúde hoje se debruçam no conhecimento científico para oferecer sobrevida aos doentes, utilizando das mais variadas tecnologias que evitam milhares de mortes diariamente, nós, movimentadores da psicologia hospitalar, nos esforçamos para ampliar nossa compreensão sobre o “processo” de morte.

Sabemos que nosso processo de morte tem início no dia de nosso nascimento, entretanto, não o aguardamos tão cedo em nossas trajetórias. Quando surge a constatação de uma doença crônica, temos um novo encontro com essa possibilidade que nos ronda, pois o diagnóstico por vezes nos direciona para nosso ponto de fragilidade física. Algumas patologias são mais brandas em seu início, e não causam durante um período o impacto da possibilidade iminente de morte. Muitos de nossos pacientes chegam ao extremo de dizerem não serem conhecedores de seu diagnóstico, mesmo após inúmeras descompensações e internações, associando à “idade” e a outras justificativas a causa das hospitalizações. Esse comportamento é um dos principais meios de esquiva, de negação, relacionados à própria condição de declínio, ao próprio adoecimento, ao próprio “EU” mortal.

O desafio com tais pacientes é auxiliar para que, em um dado ponto, tomem consciência do processo evolutivo da doença, e das repercussões da mesma em suas vidas. Não buscamos precipitar o luto antecipatório, tampouco promover a mistanásia, mas sim mobilizar a reflexão para que tais pessoas conheçam suas limitações e possibilidades, colocando em prática necessidades e desejos, nos momentos em que ainda lhe seja possível. Confrontar a realidade do adoecimento crônico, não é um empurrão para a depressão, longe disso. Trata-se da conscientização progressiva que permitirá ao paciente aproveitar seus próximos anos do melhor modo possível, preparando gradativamente o doente e a família para a progressão da doença, permitindo inclusive identificá-la com maior clareza.

Ainda que no ambiente hospitalar o tempo cronológico seja tão importante para demarcar procedimentos, intercorrências, cirurgias, e até mesmo o óbito, considerar o tempo subjetivo, é humanizar a assistência. A percepção do tempo é algo que vai para além das horas e minutos, ampliando-se para a qualidade e tonalidade daquilo que é vivido. 16 anos desde o diagnóstico de uma insuficiência cardíaca crônica, talvez tenham passado como minutos para o paciente que agora encara duas internações por mês por descompensação da doença. Vale ainda considerar que apropriar-se do diagnóstico é algo mais possível para quem já pode enxergar o lado sombrio da doença: a fase avançada.

Mortalidade como processo natural

Quando falamos em morte como processo, é neste ponto que buscamos reflexão: como assistir o paciente no momento em que a doença se materializa em sua frente, impondo progressivas perdas, limitações, desconfortos, mudanças, pequenas mortes que ocorrem diariamente até o momento final? Para o paciente e para a família, a vivência do processo diário da morte, por vezes, será muito mais dolorosa e significativa do que acompanhar o momento da constatação do óbito. Perder-se diariamente de si, perder progressivamente quem se ama, pode ser o marcador de um processo de melancolia que corrói o paciente até sua respiração final, ou a possibilidade de ressignificar dia após dia, as pendências que não foram manejadas em uma vida inteira.

Utilizando como exemplo a fase terminal, de últimos dias e horas de vida, nos casos em que é possível o acompanhamento da família em tempo integral, é difícil mensurar o que é mais doloroso aos familiares: assistir o desligamento e perda de um ente amado, ou assistir as intermináveis horas de sintomatologia agônica. Enquanto profissionais, podemos ter internamente a certeza que o paciente está confortável, sendo cuidado integralmente em suas necessidades e dores, mas a família vivencia uma fase desconhecida, por vezes inédita, que é perceber os sons, as imagens, cheiros e a palidez que acompanham a morte.

Conclusão

Falar sobre a morte pode ser incômodo a todos os envolvidos, inclusive para os profissionais que se esforçam na assistência diária ao paciente. O confronto com a finitude do outro pode causar espelhamento de nossa própria condição de mortais, trazendo à tona questões pessoais que nos fazem sofrer, pois muito nos contam sobre nossa limitação frente a uma vida. Se em nível estatístico é importante conhecer a epidemiologia do nosso país, que reconheçamos também o quão difícil, subjetivo e delicado pode ser conduzir um paciente em seu “processo” de morte, enxergando o desfecho que, um dia, poderá ser nosso.

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Referências:

  • Malta DC, Santos MAS, Stopa SR, Vieira JEB, Melo EA, ReisAdemar AC. A cobertura da estratégia de saúde da família (ESF) no Brasil, segundo a pesquisa nacional de saúde, 2013. Cien saúde Colet 2016; 21 (2):327-338.
  • Malta DC, Oliveira TP, Andrade SSCA, Silva MMA, Santos MAS. Avanços do Plano de Ações Estratégias para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011-215. Epidemiol Serv Saúde 2016; 25(2): 373-390.

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