Retocolite ulcerativa: fisiopatologia, classificação e procedimentos diagnósticos

Os sintomas da retocolite ulcerativa podem ser subdivididos em gastrointestinais, como diarreia e tenesmo além de constitucionais como febre.

A retocolite ulcerativa (RCU) é uma condição gastrointestinal crônica, incurável e que cursa com surtos e remissões. Desde a década de 1990, a sua prevalência é crescente no Brasil, se aproximando de 100 casos por 100.000 habitantes. O pico de incidência se dá entre a segunda e terceira décadas de vida, impondo grande morbidade a uma população jovem. Além do impacto negativo sobre a qualidade de vida e produtividade, destaca-se o risco aumentado de internações, colectomia e câncer colorretal, com redução da expectativa de vida em aproximadamente 5 anos. 

A fisiopatologia é pautada na resposta imunológica exacerbada à microbiota intestinal e a sua compreensão viabiliza o entendimento da farmacodinâmica do arsenal terapêutico.  

As células apresentadoras de antígenos (APCs) da submucosa intestinal, por meio do MHC de classe II, interagem com os receptores das células T (TCR) presentes nos linfonodos mesentéricos, expondo os antígenos microbianos. Dessa forma, é deflagrada a diferenciação de linfócitos T CD4 naives em células Th1 e Th17, em processos mediados pela IL-12 e IL-23, respectivamente. Ambas interleucinas ativam a via de sinalização pró-inflamatória do complexo JAK/STAT e promovem a transdução e transcrição de genes pró-inflamatórios. Na sequência, as células T efetoras, ligando-se aos receptores da fosfato esfingosina-1 (S1p-R), migram para as vênulas linfáticas e ganham a circulação sistêmica. Uma vez na circulação sistêmica, as células T efetoras, valendo-se de suas integrinas α4β7, ancoram-se às moléculas de adesão endoteliais MAdCAM-1 e executam a diapedese para a mucosa intestinal, onde promovem inflamação e ulceração. A expressão local de TNFα recruta ainda mais células inflamatórias, amplificando o processo.

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Retocolite ulcerativa: fisiopatologia, classificação e procedimentos diagnósticos

Retocolite ulcerativa: fisiopatologia, classificação e procedimentos diagnósticos

Sintomas 

Os sintomas da retocolite ulcerativa podem ser subdivididos em gastrointestinais, incluindo a diarreia (> 90%), sangramento retal (> 90%), urgência evacuatória (75-90%), tenesmo, incontinência fecal e dor abdominal; constitucionais, incluindo a fadiga, febre, desidratação e emagrecimento;  além das manifestações extraintestinais (MEI). 

As MEI ocorrem em 27% dos indivíduos com RCU, podendo preceder o seu diagnóstico.  

Manifestações extraintestinais da RCU
Relacionadas à atividade da retocolite ulcerativa Não-relacionadas à atividade da retocolite ulcerativa 
  • Artrite periférica pauciarticular do tipo 1 (assimétrica, envolvendo joelhos e tornozelos, sem ultrapassar 5 articulações) (11%) 
  • Episclerite (2%) 
  • Eritema nodoso (1%) 
  • Síndrome de Sweet (<1%) 
  • Artrite poliarticular do tipo 2 (simétrica, envolvendo as pequenas articulações da mãos, em número maior ou igual a 5) (11%) 
  • Artropatia axial – sacroileíte e EA (4%) 
  • CEP (2,5%) 
  • Uveíte (2%) 
  • Pioderma gangrenoso (1%) 

RCU: Retocolite ulcerativa. EA: Espondilite anquilosante. CEP: Colangite esclerosante primária.   

Exames diagnósticos 

Nos exames laboratoriais pode-se observar anemia, leucocitose e trombocitose, bem como aumento da proteína C reativa (PCR) e aceleração da velocidade de hemossedimentação (VHS). A calprotectina fecal apresenta um bom valor preditivo negativo, não se esperando valores superiores a 50 µg/g em transtornos funcionais do cólon, além de ser um importante parâmetro no seguimento clínico.  

A colonoscopia demonstra inflamação contínua, iniciada na junção anorretal, circunferencial e difusa, com extensão proximal até uma zona de transição com a mucosa normal. Além do papel diagnóstico, destaca-se como ferramenta de rastreio de lesões displásicas e câncer colorretal, devendo ser repetida após 8 a 10 anos do diagnóstico. O risco de câncer colorretal alcança 4,5% após a segunda década da doença, uma prevalência que é 1,7 vezes a da população geral.    

Nas biópsias seriadas do cólon, os achados da anatomia patológica incluem mudanças arquiteturais crônicas, caracterizadas por distorção de criptas e ramificação de glândulas.  

Uma grande preocupação no momento do diagnóstico de doenças inflamatórias intestinais é afastar os seus mimetizadores. Dessa forma, no diagnóstico diferencial devem ser incluídas condições infecciosas bacterianas (Salmonella, Shigella, Campylobacter, Yersinia e sífilis), micobacterianas e virais (CMV); colite segmentar relacionada à diverticulose, colite isquêmica, colites microscópicas, vasculites sistêmicas, colite actínica e fármaco-induzida (AINEs, inibidores check-point), entre outras.  

Classificação 

Uma vez definido o diagnóstico por meio da análise do quebra-cabeças que envolve a entrevista, exame físico, exames laboratoriais, endoscópicos e anatomopatológicos, devemos seguir com a estratificação da retocolite ulcerativa. 

A classificação de Montreal define três estágios com base na localização do acometimento da doença: (E1) proctite, presente em aproximadamente 30% dos casos, caracteriza-se pelo envolvimento exclusivo do reto; (E2) colite esquerda, fenótipo mais comum e que acomete aproximadamente 40% dos pacientes, é definida pela extensão do processo inflamatório para além do reto, mas sem ultrapassar o limite do ângulo esplênico do cólon; e (E3) pancolite ou colite extensa, manifestação presente em 30% dos indivíduos, tem como marco o processo inflamatório que ultrapassa o ângulo esplênico do cólon.  

O escore de Mayo, que varia de 0 a 12 pontos, é utilizado na avaliação da atividade da doença, sendo composto por elementos clínicos (frequência evacuatória, sangramento retal e avaliação global da atividade pelo médico assistente) e endoscópicos (eritema, apagamento do desenho vascular submucoso, friabilidade da mucosa, erosões e ulcerações).  

Tendo-se realizado a estratificação da retocolite ulcerativa, o próximo passo é elaborar o plano terapêutico, além de otimizar a segurança para a instituição de potenciais terapias imunossupressoras. Nesse processo, frisamos a necessidade de realizar o rastreio de tuberculose latente (ILTB), incluindo a realização de radiografia de tórax combinada ao PPD ou IGRA. As sorologias virais devem ser avaliadas, incluindo HBV, HCV e HIV; e o cartão de vacinas atualizado, encorajando-se as imunizações para influenza, SARS-CoV-2, antipneumocócica e para herpes zoster, especialmente nos indivíduos com mais de 50 anos ou candidatos aos inibidores da JAK. 

Na doença leve a moderada, a primeira linha de tratamento é o ácido 5-aminossalicílico (5-ASA), especialmente a Mesalazina, utilizada tanto na indução quanto na manutenção.  

A terapia tópica retal é indicada na proctite isolada, podendo ser administrada via supositório (1g) ou enema (2g). Em estudo com 129 pacientes, a indução de remissão em 4 semanas foi de 81,5% no grupo intervenção Vs 29,7% no grupo placebo (p < 0,001). Nos casos resistentes aos 5-ASA , emprega-se os corticoesteroides tópicos.  

Na proctossigmoidite ou formas mais extensas de retocolite ulcerativa, combina-se o tratamento tópico com o oral, com dose de 4g/dia. Em casos refratários, a budesonida MMX (9 mg/dia), administrada pela via oral, incrementa a remissão (RR 2,86 – IC 1,62 – 5,04), sem gerar eventos adversos graves.  

Já nas formas moderadas a graves, recomenda-se a prednisona na indução de remissão, com dose de 1 mg/kg/dia, administrada pela manhã, desde que não ultrapasse a dose diária de 40 a 60 mg/dia, com redução semanal planejada de 5 mg. A profilaxia de estrongiloidíase, pneumocistose e osteoporose deve ser considerada.  

Os pacientes que falham ao desmame do corticoide ou que exigem mais de um curso anual são considerados corticodependentes. Nesse cenário, deve-se empregar as tiopurinas, terapia biológica ou pequenas moléculas. Em RCT envolvendo 72 pacientes corticodependentes, o emprego de azatioprina (1,5 a 2,5 mg/kg/dia) foi eficaz em 53%, em comparação a 21% no grupo controle, às custas de aumento de infecções e malignidades (linfoma – HR ajustada de 2,18; câncer de pele não-melanoma – RR 1,18), especialmente em indivíduos com mais de 65 anos.    

O tratamento de manutenção nas formas moderadas a graves inclui, além da azatioprina, a terapia anti-TNF (Infliximabe e Adalimumabe), anti-integrina α4β7 (Vedolizumabe), anti-IL-12 e anti-IL-23 (Ustekinumabe e Mirikizumabe), bem como a inibição da JAK2 por pequenas moléculas (Tofacitinibe) e inibição da fosfato esfingosina-1 (Ozanimode). 

O Infliximabe é mais eficaz em comboterapia com a azatioprina, pelo fato da tiopurina reduzir a sua imunogenicidade e minimizar as reações transfusionais. Os eventos adversos mais frequentes são a reativação de tuberculose latente, lesões cutâneas psoriasiformes e lúpus fármaco-induzido. No estudo UC-SUCESS, envolvendo 239 pacientes, a remissão livre de corticoides em 16 semanas foi de 39,7% em relação a 22,1% no grupo placebo (p = 0,017).  

A ação seletiva do Vedolizumabe no intestino, não implicando em efeito imunossupressor sistêmico, torna a droga uma opção atrativa em idosos, pacientes oncológicos ou histórico de infecções oportunistas graves. No estudo GEMINI I, com 374 pacientes, a manutenção de remissão em 52 semanas foi de 41,8% no grupo intervenção em relação a 15,9% no grupo placebo (p < 0,001).  

O Ustekinumabe e Mirikizumabe têm como características a baixa imunogenicidade e risco limitado de infecções e malignidades. No estudo UNIFI, englobando 961 pacientes utilizando Ustekinumabe (8/8 semanas), a taxa de remissão em 44 semanas foi de 43,8% no grupo intervenção em relação a 25% no grupo placebo (p < 0,001). No estudo LUCENT 2, a resposta em 40 semanas foi de 49,9% no grupo Mirikizumabe em relação a 25,1% no grupo placebo (p < 0,001). Além de nasofaringite e artralgia, o Mirikizumabe se associou a pequeno incremento em infecções oportunistas e malignidades 

O Tofacitinibe foi avaliado nos estudos OCTAVE 1 e 2, incluindo 598 e 541 pacientes, respectivamente, tendo-se observado remissão em 52 semanas em 40,6% nos grupo intervenção (10 mg de 12/12 horas) em relação a 11,1% no grupo placebo (p < 0,001). Os principais eventos adversos foram tromboembolismo venoso, herpes zoster e eventos cardiovasculares maiores, motivos pelo qual são desencorajados em pacientes idosos e com risco cardiovascular aumentado.  

No estudo TRUE NORTH, envolvendo 457 pacientes, foi avaliado o emprego do  Ozanimode, tendo-se observado a remissão em 52 semanas em 37% do grupo intervenção em relação a 18,5% no grupo placebo (p < 0,001). Entre os eventos adversos, destacamos as bradiarritmias, motivo pelo qual se deve obter um ECG de base e evitar o uso em pacientes com IAM recente, angina instável, insuficiência cardíaca e bradiarritmias pré-existentes.  

Em um dos poucos estudos “cabeça a cabeça”, com alocação de 796 pacientes, a remissão em 52 semanas entre o Vedolizumabe e Adalimumabe foi comparada, com resposta de 31,3% no grupo Vedolizumabe Vs 22,5% no grupo adalimumabe (p < 0,006). Uma meta-análise que avaliou 15 RCTs, foi apontada a superioridade do infliximabe em relação aos demais anti-TNF em induzir a remissão (OR 4,07 – IC 2,67 – 6,21).  

Uma frente de estudos muito importante envolvendo a RCU nos últimos anos tem sido a terapia biológica combinada. Entre os exemplos, temos o estudo VEGA, contemplando 214 pacientes RCU moderada a grave, em que se avaliou o Guselkumabe (anti-IL-23) associado ao Golimumabe (anti-TNF) na indução de remissão de RCU, tendo-se observado resposta em 12 semanas em 83% na terapia combinada Vs 61% e 75% na monoterapia com anti-TNF e anti-IL-23, respectivamente.   

Apesar da instituição da terapia de manutenção, as exacerbações são esperadas, e diante delas devemos considerar o diagnóstico diferencial entre a atividade da doença de base e o surgimento de infecções oportunistas. Dessa maneira, indica-se a realização de hemograma, proteína C reativa, cultura fecal, pesquisa de toxina A e B e calprotectina fecal.  

A forma aguda grave é a apresentação mais dramática da RCU, tendo como complicações o megacólon tóxico, perfuração, peritonite e hemorragia,  indicando-se, portanto, o tratamento hospitalar. A avaliação da gravidade é realizada pela Classificação Modificada de Truelove e Witts, cujos parâmetros incluem frequência evacuatória diária superior a 6, temperatura corporal superior a 37°C, frequência cardíaca superior a 90 bpm, hemoglobina inferior a 10,5 g/dL, VHS superior a 30 mm e PCR superior a 30 mg/L. Indica-se a realização de radiografia de abdome para a exclusão de megacólon, pesquisa de C. difficile, tromboprofilaxia e suporte nutricional. A investigação armada com sigmoidoscopia e colonoscopia é encorajada, pois além de avaliar a gravidade, viabiliza a coleta de biópsias para a exclusão de colite por CMV por meio de imuno-histoquímica tecidual.  

A forma aguda grave é manejada com corticoides endovenosos. No terceiro dia de tratamento, avalia-se resposta com base nos critérios de Oxford. Considera-se falha terapêutica uma frequência evacuatória diária superior a 8 ou entre 3 e 8 com PCR superior a 45 mg/L. Nesse cenário, deve-se prosseguir o tratamento com ciclosporina endovenosa (2 mg/kg/dia) ou infliximabe (5 mg/kg/dose). Em casos refratários ao infliximabe, o tofacitinibe emerge como terapia de resgate, com potencial de evitar a colectomia (HR 0,11 – IC 0,02 – 0,56). O tratamento multidisciplinar é encorajado, integrando a gastroenterologia, coloproctologia, radiologia e nutrição. Apesar dos esforços, a taxa de colectomia nos pacientes internados varia entre 20 e 30%.  

A colectomia definitiva com colostomia terminal ou anastomose em bolsa ileoanal é o tratamento de resgate na RCU grave, refratária ou complicada. Os indivíduos submetidos a anastomose em bolsa ileoanal devem ser monitorizados para pouchite, presente em 31% dos casos. Na pouchite aguda a resposta à antibioticoterapia é satisfatória, incluindo ciprofloxacino, metronidazol e rifaximina. Entretanto, o manejo da pouchite crônica é desafiador, podendo-se considerar antibióticos, probióticos ou terapia biológica. O estudo EARNEST, envolvendo 102 pacientes, trouxe resultados animadores do vedolizumabe na pouchite crônica, com identificação de resposta em 34 semanas de 35% no grupo intervenção em relação a 18% no grupo controle.  

 Leia também: Emprego do mirikizumabe na retocolite ulcerativa: alternativa segura e eficaz?

Conclusão e Mensagens práticas 

  • A despeito do notável desenvolvimento do arsenal terapêutico destinado a RCU, a doença persiste com grande impacto sobre morbimortalidade, sendo que 20% dos pacientes experimentam hospitalizações em 5 anos, entre os quais 7% evoluem com a necessidade de colectomia.  
  • O tratamento atual da retocolite ulcerativa tem capacidade de induzir a remissão em 30 a 60% dos pacientes. Os melhores resultados são esperados para os pacientes virgens de tratamento. Em tratamentos sequenciais, há declínio da resposta. Na escolha do tratamento, devemos levar em conta as manifestações extraintestinais, idade e comorbidades. 
  • A terapia biológica combinada tem sido avaliada nos últimos anos, mostrando-se promissora e surpreendentemente segura, embora mais evidências se façam necessárias para a sua indicação rotineira.  

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Gros B, Kaplan GG. Ulcerative Colitis in Adults - A Review. JAMA, September 12, 2023, Vol 331, Number 10, doi: 10.1001/jama.2023.15389.