Tempo de tela e desfechos cognitivos em crianças

O tempo de tela é uma preocupação constante na pediatria e em janeiro deste ano foi publicado um artigo sobre o tema na JAMA Pediatrics.

A despeito da orientação de tempo de tela ser zero em crianças abaixo de 18-24 meses, bebês seguem sendo expostos diariamente a dispositivos eletrônicos. A grande preocupação é que isso possa acarretar prejuízos na atenção e desenvolvimento das funções executivas, um conjunto de habilidades cognitivas essencial para a auto regulação, aprendizado, desempenho acadêmico e na saúde mental de uma forma geral. Essas funções se desenvolvem rapidamente nos primeiros anos de vida em conjunto com o cortex pré-frontal e são extremamente susceptíveis a influências do ambiente.

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Tempo de tela e desfechos cognitivos em crianças

Metodologia

O estudo utilizou uma coorte prospectiva de Singapura (Growing Up in Singapore Toward Healthy Outcomes – GUSTO), recrutando gestantes a partir dos 18 anos de idade de diferentes classes socioeconômicas, ainda no primeiro trimestre de gestação. Essas duplas (mãe e filho) foram acompanhadas durante a gestação e nos anos que se seguiram. Foram excluídos os bebês prematuros, pequenos para a idade gestacional, gemelares e aqueles com alterações neurológicas importantes. As crianças passaram por avaliação dos pesquisadores aos 12 meses, quando as famílias foram questionadas sobre o tempo de tela das crianças no último um mês e em 4 outras ocasiões entre os 12 e 54 meses de vida, respondendo às mesmas questões.

Aos 18 meses, parte das crianças foi submetida a um eletroencefalograma (EEG) em repouso utilizando as mesmas técnicas e especificações. Devido aos objetivos do estudo estarem relacionados a atenção e funções executivas, foi dada maior atenção às regiões frontocentral e parietal, com uso de 16 e 14 eletrodos, respectivamente.

Para avaliações da função executiva, os pesquisadores utilizaram uma ferramenta padronizada conhecida como NEPSY-II (Developmental Neuropsychological Assessment, second edition) e a impressão dos professores destas crianças através do BRIEF-2 (Behavior Rating Inventory of Executive Function, second edition). Também a partir na análise dos professores, foram coletados dados para um segundo questionário, agora para avaliação de desatenção, o CBCL (Child Behavior Checklist). Quanto maior a pontuação no NEPSY-II, maiores as competências no funcionamento executivo, enquanto que, quanto maior a pontuação nas duas últimas ferramentas, maiores os problemas com atenção e o prejuízo de função executiva.

Resultados e Discussão

Um total de 437 duplas completaram o período de acompanhamento proposto (86,3%). Dessas, 51,9% eram do sexo masculino e a mediana de seguimento destas crianças foi de 8,84 anos. A mediana de tempo de tela aos 12 meses foi de 2 horas por dia. Após os dados serem ajustados para covariantes, o tempo de dela aos 12 meses impactou de forma independente na atenção e nas funções executivas aos 9 anos de idade, tanto no relato dos professores quanto na avaliação objetiva.

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Para interpretação dos resultados eletroencefalográficos, a coorte foi estratificada em grupos a partir do tempo de tela diário aos 12 meses: < 1 hora (n = 18), 1-2 horas (n = 55), 2-4 horas (n = 41) e > 4 horas (n = 15).

Os pesquisadores demonstraram, a partir de um mapa cerebral topográfico, um aumento da atividade theta relativa e da relação theta/beta (se correlacionam a um controle de atenção mais pobre) nas crianças expostas a telas, ficando claro que quanto maior o tempo de tela, maior a atividade destas ondas no EEG.

Os autores também observaram que a atividade theta relativa e a relação theta/beta identificadas pelos eletrodos frontais e parietais dos pacientes analisados se correlacionaram com o desempenho do teste NEPSY-II sendo que, quanto maior essa atividade, pior o desempenho no teste.

Eles salientam que, pelo rápido desenvolvimento das funções executivas na vida da criança e por serem habilidades altamente treináveis, o timming das intervenções deve ser o mais precoce possível, aproveitando o período de neuroplasticidade.

Também é importante notar que o impacto do uso de tela no empobrecimento cognitivo pode refletir o deslocamento das interações sociais da vida real, imprescindíveis no desenvolvimento das funções cognitivas. As interações recíprocas entre cuidadores e a criança são cruciais no desenvolvimento cognitivo, social e afetivo.

De qualquer forma, sabe-se que crianças pequenas apresentam resposta incongruente a estímulos apresentados em 2 dimensões (telas), além de baixa habilidade de resposta seletiva a estímulos relevantes neste contexto. Para interpretar os diversos e repetidos estímulos sensoriais emitidos pelo dispositivo eletrônico, as crianças despendem enorme esforço mental sem que tenham a capacidade de modular estes esforços, o que de forma inevitável impacta no desenvolvimento do controle executivo ao longo dos primeiros anos de vida.

Conclusões

O aumento do tempo de tela na infância está associado a prejuízo em processos cognitivos importantes para a saúde, desempenho acadêmico e sucesso futuro no trabalho, inclusive com características dose-dependentes, embora não seja possível provar um efeito causal no presente estudo.

Comentários

Artigo extremamente bem construído, com tema atual e relevante. Entendo que o uso de telas em crianças pequenas é uma questão de saúde pública e deve ser abordada como tal.

Este artigo mostra, com um olhar objetivo, os possíveis prejuízos do uso indiscriminado de telas em crianças pequenas e, na minha opinião, deve ser levado ao conhecimento das famílias através dos profissionais que atendem estas crianças a fim de trazer clareza dos potenciais prejuízos a longo prazo dessa exposição.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Law EC, Han MX, Lai Z, Lim S, Ong ZY, Ng V, et al. Associations Between Infant Screen Use, Electroencephalography Markers, and Cognitive Outcomes. JAMA Pediatrics 2023;177:311. DOI: 10.1001/jamapediatrics.2022.5674.

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