Um paciente com epilepsia pode dirigir?

A obtenção da carteira de direção é uma preocupação frequente entre os pacientes com epilepsia, uma vez que a licença para dirigir tem impacto sobre sua autonomia e diversos outros aspectos de suas vidas.

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A obtenção da carteira de direção é uma preocupação frequente entre os pacientes com epilepsia, uma vez que a licença para dirigir tem impacto sobre sua autonomia e diversos outros aspectos de suas vidas, como por exemplo, a empregabilidade.

O tema ganhou repercussão após a notícia de que o condutor responsável pelo atropelamento ocorrido na quinta-feira, dia 18, em Copacabana, no Rio de Janeiro, tem epilepsia e apontou ter sofrido uma crise como justificativa para o acidente. O assunto gerou diversas dúvidas, inclusive entre profissionais de saúde e pacientes.

Para além da legislação de trânsito, embora não se encontre uma vasta literatura sobre epilepsia e direção, há estudos interessantes que merecem ser analisados.

Um paciente com epilepsia pode dirigir?

A legislação sobre o tema se difere em cada país. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM), em sua resolução nº 53/15, determina que em tais casos seja aplicada a norma nº 267 de 15 de fevereiro de 2008 do Conselho Nacional de Transito (CONTRAN), que trata do procedimento do exame de aptidão física e mental para a concessão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Atualmente, recomenda-se consulta à versão mais recente da norma do CONTRAN, a n° 425 de 27 de novembro de 2012.

Acerca dos indivíduos com epilepsia, as exigências do CONTRAN se diferem para usuários ou não de medicação antiepiléptica.

  • Para os pacientes em uso de medicação antiepiléptica (Grupo I) são necessários: estar um ano sem crise; ter o parecer favorável do médico assistente (que deve estar em acompanhamento do paciente no mínimo por um ano) e apresentar plena aderência ao tratamento;
  • Para aqueles em esquema de retirada da medicação (Grupo II), torna-se necessário: não ser portador de epilepsia mioclônica juvenil; estar há pelo menos dois anos sem crise; a retirada de medicação deve ter a duração mínima de seis meses; estar no mínimo há seis meses sem ocorrência de crises epilépticas após a retirada da medicação e ter parecer favorável do médico assistente (que deve estar acompanhando o paciente faz pelo menos um ano).

Uma vez concedida a CNH, os pacientes com epilepsia ficam sujeitos às seguintes regras específicas:

  • Licença somente para a direção de veículos da categoria “B” (condutor de veículos cujo peso bruto total não exceda a três mil e quinhentos quilogramas, ou cuja lotação não exceda a 08 lugares, excluído o do motorista; contemplando a combinação de unidade acoplada reboque, desde que a soma dos dois não ultrapasse 3500 kg. Ex: automóvel, caminhonete, camioneta, utilitário);
  • Diminuição, a critério médico, do prazo de validade do exame na primeira habilitação;
  • Repetição dos procedimentos nos exames de renovação da CNH;
  • Diminuição, a critério médico, do prazo de validade do exame na primeira renovação e prazo normal nas seguintes para os candidatos que se enquadrem no Grupo I;
  • Prazo de validade normal a partir da primeira renovação para os candidatos que se enquadrem no Grupo II.

Qual o papel do médico na concessão da CNH?

O parecer do médico assistente é fundamental na concessão da CNH para o paciente com epilepsia. O médico deve preencher questionário próprio, facilmente encontrado na internet, em anexo à norma do CONTRAN mencionada anteriormente. O questionário apresenta perguntas sobre: o tipo de crise; o número de crises nos últimos 6, 12, 18 e 24 meses; o grau de confiança nas informações prestadas; a ocorrência de crises exclusivamente à noite; a presença de fatores precipitantes conhecidos; o tipo de síndrome epiléptica; os resultados de eletroencefalograma e exames de imagem; as medicações atuais, seu tempo de uso e caso esteja em retirada qual a previsão da mesma; o tempo de acompanhamento ao paciente; a aderência do pacientes ao tratamento; e por fim, solicita o parecer sobre a liberação para direção de veículos automotores na vigência de medicação e após seu término/retirada. É necessário assinar e informar sua especialidade.

Deve ser observado que nas determinações do CONTRAN não há exigência de que o médico assistente seja neurologista.

A notificação às autoridades sobre a condição de um paciente com epilepsia não é mandatória em nosso país. Diversas associações médicas internacionais igualmente condenam a obrigatoriedade de tal notificação. O argumento é de que os pacientes poderiam sentir-se menos dispostos a relatar a seus médicos a ocorrência de crises por receio de vir a ter sua licença revogada. Dessa forma, poderiam prejudicar seu próprio tratamento e segurança.

A existência de normas não extingue as dúvidas e divergências entre os profissionais. Pesquisa de Mintzer com 95 especialistas norte-americanos em epilepsia, publicada em 2015, demonstrou diferença de conduta diante de questionamentos sobre a liberação da condução de veículos para pacientes com epilepsia em quatro cenários distintos: monoterapia em retirada da medicação; politerapia em retirada de apenas uma das medicações; em monoterapia, porém em troca de medicação; e crises psicogênicas.

Há evidências sobre a relação entre epilepsia e direção?

O artigo Driving and epilepsy: a review of important issues de Kang e Mintzer, publicado em 2016, traz dados relevantes como:

  • A literatura estima que acidentes com veículos motorizados variem entre 0,1 a 1%, número inferior aos 7% relacionados ao consumo de álcool;
  • Cerca de 0,2% dos acidentes de carro fatais nos EUA e 4,2% de todos os acidentes relacionados a problemas médicos nos EUA acredita-se serem relacionados as crises convulsivas.

O texto Evidence based review on epilepsy and driving de Classen et al, publicado em 2012, faz a avaliação de 16 artigos de oito países diferentes, com dados extraídos de bancos oficiais e do relato de pacientes. As conclusões obtidas resultaram em recomendações graduadas em quatro níveis: Nível A (estabelecida como efetiva/útil/preditora ou não), Nível B (provavelmente efetiva/útil/preditora ou não), Nível C (possivelmente efetiva/útil/preditora ou não) e Nível U (sem grau de recomendação em razão de dados inadequados ou conflitantes):

  • Banco de dados de acidentes: a epilepsia provavelmente não é um preditor de acidentes com veículo motorizado quando comparados com controles saudáveis (Nível B). Curtos intervalos livres de crise (3 versus 12 meses) provavelmente não são preditores de acidentes com veículo motorizado (Nível C);
  • Autorrelato de acidentes: cirurgia para epilepsia, longos intervalos livres de crise (6 a 12 meses), poucos acidentes anteriores não relacionados à crise e ajustes regulares de drogas antiepilépticas provavelmente são protetores contra acidentes (Nível B). As crises provavelmente contribuem para acidentes com veículo motorizado, mas o número de motorista com epilepsia e acidentes fatais é pequeno (Nível C). A notificação mandatória de crises provavelmente não contribui para reduzir o nível de acidentes com veículos motorizados (Nível C). Sobre a aura as evidências são conflitantes (Nível U). Idade e sexo têm dados inadequados (Nível U);
  • Autorrelato sobre direção e situação da licença: emprego e cirurgia para epilepsia, especialmente ressecção do lobo temporal, são preditores para obtenção de licença ou dirigir (Nível C). Sobre o uso de drogas antiepilépticas os resultados são conflitantes (Nível U). Sobre sexo, idade, benefícios relacionados ao trabalho e reduzida frequência de crises os dados são inadequados (Nível U).

Há dados nacionais sobre o assunto?

Em estudo realizado na cidade de Florianópolis por Bicalho et al, em 2012 foram investigadas questões relacionadas à direção após o diagnóstico de epilepsia. Foram analisados 144 pacientes adultos, dos quais 47,2% relataram dirigir. Os resultados identificaram o seguinte cenário:

  • Os fatores que significativamente se relacionaram à direção, após o diagnóstico de epilepsia, foram: sexo masculino; renda per capita mensal superior à $230,00; início da epilepsia após os 18 anos; presença de crises focais sem comprometimento da consciência; e monoterapia;
  • 28% dos pacientes que dirigiram após o diagnóstico não tinham carteira de habilitação;
  • 32,8% dos pesquisados que tinham crises não controladas nos últimos 12 meses, apresentavam licença para dirigir;
  • 76,7% dos pacientes submetidos à avaliação para carteira de habilitação após o diagnóstico de epilepsia omitiram tal informação;
  • 17 pacientes homens se envolveram em 26 acidentes. Todos foram causados por crises com perda de consciência. Somente um ocorreu após o motorista ter passado mais de um ano sem crises;
  • Os aspectos significativamente relacionados ao envolvimento em acidentes de tráficos foram: escolaridade inferior a oito anos e inicio da epilepsia após os 18 anos;
  • 23% dos acidentes foram precedidos pela ocorrência de crises focais;
  • Entre os pacientes envolvidos em acidentes, 94% haviam sido instruídos sobre as restrições para dirigir, e 73,1% não pararam de dirigir após o acidente.

Análises de Tedrus et al, realizadas na cidade de Campinas e publicadas em 2012, voltadas para a avaliação da situação ocupacional de pacientes com epilepsia também investigaram a validade da licença de direção em 56 pacientes. Os dados obtidos foram os seguintes:

  • 33,9% apresentavam licença para direção válida;
  • 11 pacientes relataram acidentes, mas apenas um o relacionou a ocorrência de crises epilépticas;
  • 73,6% dos pacientes com licença para direção omitiram seu diagnóstico para conseguir o documento.

Conclusões:

É fundamental ao médico, que acompanha um paciente com epilepsia, ter conhecimento da legislação vigente e discutir a respeito com seu paciente. No entanto, as leis nacionais não respondem a todos os questionamentos que o tema suscita: E o paciente com uma única crise? Ainda que um paciente esteja sem crises, somente o uso de medicação antiepiléptica já representa um risco? Crises sem acometimento da consciência devem ser consideradas da mesma forma? E para as crises psicogênicas, as restrições devem ser as mesmas? E se forem veículos autônomos?

Para essas e outras dúvidas não contempladas na lei brasileira é necessário o julgamento criterioso do médico responsável aliado à consulta de especialistas no assunto, a consulta à legislação brasileira e de outros países; bem como ao próprio CFM.

Aos pacientes, deixo a sugestão de fontes seguras de informação como os sites da Associação Brasileira de Epilepsia e da Liga Brasileira de Epilepsia.

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Referências:

  • Associação Brasileira de Epilepsia. Disponível em <http://www.epilepsiabrasil.org.br>. Acesso em 20 de janeiro de 2018.
  • BICALHO, M. A. H. et al. Socio-demographic and clinical characteristics of Brazilian patients with epilepsy who drive and their association with traffic accidents. Epilepsy & Behavior, v. 24, n. 2, p. 216-220, 2012.
  • BRASIL. Departamento Nacional de Transito. Resolução nº 267, de 15 de fevereiro de 2008.
  • BRASIL. Departamento Nacional de Transito. Resolução nº 425, de 27 de novembro de 2012.
  • CLASSEN, S. et al. Evidence based review on epilepsy and driving. Epilepsy & Behavior 2012;23:103–12.
  • CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM – BRASIL). Parecer nº53/15 de 13 de novembro de 2015. Brasília
  • DRAZKOWSKI, J. An overview of epilepsy and driving. Epilepsia, v. 48, n. s9, p. 10-12, 2007.
  • KANG, J. Y. and MINTZER, S. Driving and epilepsy: a review of important issues. Current neurology and neuroscience reports, v. 16, n. 9, p. 80, 2016.
  • Liga Brasileira de Epilepsia. Disponível em <http://epilepsia.org.br>. Acesso em 20 de janeiro de 2018.
  • MINTZER, S. Driven to tears: epilepsy specialists and the automobile. Epilepsy currents, v. 15, n. 5, p. 279-282, 2015.
  • TEDRUS, G. M. A. S. et al. Factors associated with the employment situation and driving license of patients with epilepsy. Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology, v. 16, n. 4, p. 136-142, 2010.

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