Um recente relato de caso publicado por Kulwinder Dua e colegas na revista The Lancet, em Abril deste ano, trouxe a possibilidade de uma nova vertente no tratamento das complicações esofágicas relacionadas ao trauma ou mesmo procedimentos cirúrgicos: a medicina regenerativa.
O grupo relatou o caso de um paciente de 24 anos, do sexo masculino, admitido em uma unidade cardiotorácica com quadro de febre e calafrios associados a odinofagia, disfagia e cervicalgia. O mesmo apresentava relato prévio de um trauma raquimedular por acidente automobilístico, tendo apresentado quadriplegia com necessidade de intervenção neurocirúrgica com estabilização cervical por meio de placas de metal.
Realizados os exames complementares de imagem, evidenciou-se um abscesso paraespinhal de grande extensão (C4-T11), com comunicação entre a faringe e o mediastino, observando-se à laringoscopia a erosão da parede posterior faríngea e região faringo-esofagiana com exposição da placa metálica. O paciente em questão foi, então, submetido a uma cervicotomia anterior, com remoção do corpo estranho pela equipe neurocirúrgica, drenagem dos abscessos e debridamento no mediastino posterior, além de realização de gastrostomia percutânea.
No entanto, ao final do procedimento, a equipe cirúrgica teve de enfrentar um grande dilema: como restaurar a integridade do trajeto faríngeo-faringo-esofageano, considerando-se a gravidade do paciente, a localização e extensão da lesão? Optou-se então pela correção do defeito por meio de sutura interrompida, esperando-se que ao menos a possível estenose resultante pudesse ser manejada posteriormente.
Durante o acompanhamento posterior, mesmo após seis semanas, as esofagografias demonstravam extravasamento substancial para o mediastino, sem evidência de estenose. Diante da impossibilidade de fechamento do defeito mesmo com cirurgias repetidas, o paciente foi, então, encaminhado ao serviço de gastroenterologia.
A opção terapêutica adotada após a avaliação do defeito por via endoscópica (dotado de 5 cm de extensão) foi a introdução via retrógrada de um stent sintético auto-expansível de nitinol, recoberto por uma membrana de poliuretano, tendo adequada aceitação do paciente após um breve período de adaptação. Todavia, mais uma vez, não se obteve o resultado adequado, visto que o paciente, mesmo após três semanas de acompanhamento, mantinha o quadro de mediastinite por ainda haver algum extravasamento pelo defeito recoberto.
Diante da falta de opções, o grupo decidiu tentar aplicar princípios da medicina regenerativa in-vivo, o que então somente tinha sido realizado sobre o esôfago de animais com alguns resultados positivos. A técnica utilizada para tal consistiu em reabordar a região cervical, obtendo-se acesso ao stent alocado previamente, já parcialmente recoberto por tecido de granulação, seguida da envoltura e sutura de um enxerto de matriz dérmica acelular (AlloDerm®) sobre todo a circunferência do material sintético, com uma margem mínima de 10 mm crânio-caudal, atentando-se em manter a face da membrana basal voltado para o stent e a face dérmica para o mediastino.
Na sequência, aplicou-se sobre a matriz um gel adesivo de plasma rico em plaquetas (PRP), previamente preparado a partir do sangue do próprio paciente, e fechamento posterior do acesso colocando-se o músculo esternocleidomastóideo recobrindo o enxerto. Após o procedimento o paciente evolui sem mais extravasamentos, no entanto após quatro semanas, quando restabelecida o uso da via oral, o doente apresentou algumas complicações, necessitando de reabordagem endoscópica para colocação de novos stents de ancoragem.
Após um breve período, o mesmo teve alta médica com boa aceitação pela via oral, mas mantendo a suplementação via gastrostomia, ainda sem evidência de aspiração ou extravasamento pela esofagografia.
O planejamento da equipe era inicialmente remover o stent após 12 semanas de sua inserção, porém, perdeu-se o acompanhamento do paciente, o qual somente buscou auxílio médico após três anos do procedimento, novamente com queixas de disfagia e regurgitação por conta da formação de tecido de granulação obstruindo a porção inferior de inserção do stent.
Tentou-se, inicialmente, somente abordar o tecido anômalo com ablação endoscópica, mas, em decorrência de recorrências e melena intermitente durante o acompanhamento de seis meses, optou-se finalmente pela retirada eletiva dos stents, o que foi realizado com sucesso de forma gradual.
Curiosamente, a posterior análise do local de organogênese, demonstrou por meio de diversos métodos (biópsia, manometria com impedanciometria, ultrassonografia endoscópica) a formação de um neoesôfago semelhante morfológica e funcionalmente ao prévio. No momento da publicação, mesmo após quatro anos de acompanhamento da remoção dos stents, com o paciente utilizando somente a via oral, não há relatos de disfagia ou aspiração.
Tal trabalho demonstra uma área completamente promissora no tratamento das lesões esofágicas, considerando-se a morbidade relacionada à estas, mesmo no contexto de procedimentos eletivos. Adicionalmente, a regeneração do segmento lesionado é ideal ao, teoricamente, restaurar não somente a morfologia, mas também a funcionalidade do órgão.
Durante a discussão, alguns aspectos interessantes são ressaltados pelos autores, incluindo a vantagem de se utilizar moléculas bioativas autólogas, a partir do sangue do paciente com o PRP que induzem a organogênese, diminuem o risco de transmissão de doenças transmissíveis e dispensam a necessidade de imunossupressão do paciente.
O uso de matriz dérmica controlada biologicamente também impede o risco de transmissão de patógenos infecciosos. Por outro lado, destacou-se a preferência pelo uso de stent sintético em detrimento do biológico, pelo risco de degradação deste, deixando áreas cicatriciais desnudas precocemente. Destaca-se ainda a importância da fixação do stent por sutura ou clipagem para evitar seu deslocamento, como ocorrido no caso em questão.
Destacam-se como limitações do estudo a incapacidade de definição do tempo exato para ocorra o processo de regeneração estrutural e funcional (considerando que estudos com animais demonstraram um período superior a um ano e no caso humano três a cinco anos), a impossibilidade de relato histológico da resposta imunológica induzida, se a presença eventual de tecido esofágico na parede do abscesso contribui de alguma forma no processo de organogênese, além da não realização de endoscopia longitudinal e avaliação histológica com colorações especiais para células progenitoras e células-tronco.
Por fim, os autores concluem que este estudo de um paciente necessita ser complementado por outros ensaios clínicos de fase um e dois antes de ser aplicável. No entanto, se os resultados forem replicáveis, tal opção terapêutica poderá ter grande implicação no tratamento de pacientes que necessitam de reconstrução esofágica.
Referências:
- KULWINDER DUA et cols. In-vivo oesophageal regeneration in human being by use of a non-biological scaffold and extracelular matrix, The Lancet, April 2016.