A insuficiência hepática aguda é uma síndrome complexa, grave e rara em crianças e apresenta uma série de dificuldades para sua avaliação. As definições e conceitos relacionados a esse quadro são geralmente baseados em opiniões de experts ou adaptadas de consensos de adultos, o que não facilita o manejo baseado em evidências desses quadros. A etiologia, a fisiopatologia, o desenvolvimento da encefalopatia e os desfechos da insuficiência hepática aguda são diferentes em adultos e crianças, o que impossibilita o uso de protocolos baseados em adultos na prática pediátrica. Da mesma forma, os critérios de inclusão para definição da insuficiência hepática aguda podem ser diferentes entre adultos e crianças.
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Atualizações sobre insuficiência hepática aguda pediátrica
Em janeiro de 2022, a revista Pediatrics publicou um artigo trazendo atualizações relacionadas ao quadro de insuficiência hepática aguda pediátrica realizadas pela colaboração PODIUM (Pediatric Organ Dysfunction Information Update Mandate), uma iniciativa que busca desenvolver critérios baseados em evidência científica para a disfunção orgânica em pacientes pediátricos críticos. O grupo contou com a participação de pesquisadores de 24 centros de transplante pediátricos dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Foi feita uma revisão sistemática da literatura, com inclusão de 54 estudos publicados no período de 1992 a 2020.
O artigo traz critérios para a inclusão de pacientes no diagnóstico de insuficiência hepática aguda pediátrica. Esses critérios serão abordados a seguir.
Critério 1: Ausência de evidência de doença hepática crônica:
Para caracterizarmos a insuficiência hepática aguda pediátrica, inicialmente devemos descartar uma história prévia de doença hepática crônica. A lesão hepática crônica agudizada pode se apresentar de forma muito semelhante à insuficiência hepática aguda, o que nos obriga a determinar, a partir de bases clínicas, as possibilidades de cada caso. Baseados em uma anamnese adequada, podemos avaliar informações como:
- Presença de episódios de icterícia prévios;
- Elevação prévia de enzimas hepáticas;
- Diagnóstico de doença hepática prévia.
Na presença desses fatores, devemos estabelecer o diagnóstico de doença hepática crônica descompensada. Da mesma forma, a presença de alterações no exame físico sugestiva de doença hepática crônica, como baqueteamento digital, padrão de veia em cabeça de medusa e/ou ascite, sugerem um quadro de hipertensão portal crônica devido à uma doença hepática subjacente. Os sintomas também devem ter se iniciado em menos de oito semanas para que possamos classificar como insuficiência hepática aguda.
Critério 2: Aumento das provas de lesão hepática
Com relação aos exames de injúria hepática, alguns pontos de corte são sugeridos pelo artigo como forma de diagnóstico da insuficiência hepática aguda:
- TGO > 100 UI/mL
- TGO > 100 UI/mL
- Gama-GT > 100 Ui/mL
- Bilirrubina total > 5 mg/dL
- Bilirrubina direta > 2 mg/dL
Apesar disso, é importante lembrar que alguns casos de insuficiência hepática aguda podem se apresentar com aumento leve ou mesmo normalidade desses indicadores, como nos casos de intoxicação por paracetamol ou galactosemia.
Critério 3: Alteração da coagulação
Com relação a coagulação, o estudo utiliza o tempo de protrombina ou o INR como marcadores de lesão dos hepatócitos, uma vez que esses exames são facilmente disponíveis e os resultados são obtidos em horas. O critério utilizado é o tempo de protrombina ≥ 15 segundos ou INR ≥ 1,5 após administração de vitamina K. Se o INR for entre 1,5 a 1,9, a encefalopatia deve estar presente. Se for ≥ 2,0, a encefalopatia não é requerida.
O uso de vitamina K é indicado para descartar a presença de deficiência nutricional ou uso de varfarina. Assim, um paciente que apresenta resposta ao uso endovenoso de vitamina K (de 1 a 10 mg, dependendo da idade do paciente) dentro de 6-8 horas da infusão pode ter descartado a insuficiência hepática aguda.
Critério 4: Encefalopatia hepática
Esse critério é extremamente importante, pois sua presença está relacionada a determinados prognósticos, como necessidade de transplante hepático e morte. Apesar disso, é um critério difícil de avaliação em crianças, principalmente nas pequenas. O artigo sugere a utilização de duas escalas dependendo da idade dos pacientes:
(a) Escala de Whittington – para menores de três anos de idade;
(b) Critério de West Haven – para maiores de três anos de idade.
Cada uma dessas escalas leva em consideração a idade do paciente e a facilidade de avaliação de cada uma das escalas. O uso dessas escalas permite a classificação do grau de encefalopatia do paciente, o que também permite a inferência de determinados prognósticos.
Definição de insuficiência hepática aguda pediátrica: Irá acontecer quando o paciente apresentar todos os critérios acima.
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É importante ressaltar que esses critérios para a definição da insuficiência hepática aguda não permitem determinar qual é o prognóstico da criança. Durante a admissão hospitalar de uma criança, a entrada dela nos critérios para disfunção hepática indica que a criança alcançou um limiar clínico onde três possibilidades podem ocorrer: permanecer viva com o fígado nativo, morte, ou necessidade de transplante hepático. Dessa forma, a criança deverá ser avaliada por um especialista em transplante hepático para avaliação, principalmente quando a insuficiência hepática é a causa principal de disfunção múltipla de órgãos.
Referências bibliográficas:
- Referência: SQUIRES, James E. et al. Acute liver dysfunction criteria in critically ill children: the PODIUM consensus conference. Pediatrics, v. 149, n. Supplement_1, p. S59-S65, 2022. doi: 10.1542/peds.2021-052888I