A Covid-19 também contaminou o rigor científico?

Estima-se que na metade do mês de dezembro de 2020, já tenham sido publicados cerca de 83.227 artigos científicos relacionados a Covid-19.

Em aproximadamente 12 meses, a partir da emergência da pandemia da Covid-19, associada ao coronavírus SARS-CoV-2, a ciência continua em ebulição. Na busca por respostas urgentes, medidas de controle e propostas terapêuticas que minimizem o rápido avanço da doença pelo mundo e impedissem a ocorrência de tantos óbitos, a ciência se contaminou.

Estima-se que na metade do mês de dezembro de 2020, cerca de 83.227 artigos científicos relacionados ao tema Covid-19 já tenham sido publicados desde a primeira descrição da doença. E apesar da proliferação de estudos, ensaios clínicos randomizados com potenciais terapêuticos efetivos consistem na minoria de toda a produtividade observada. Simultaneamente, os esquemas terapêuticos, mesmo aqueles com fraca evidência de eficácia ou segurança, têm assumido proporções globais na divulgação, estimulado o uso generalizado off-label e indiscriminado, adotado por políticos protagonistas e partidários, e sido administrado em milhares de pacientes. Como consequência, os dados reais dos possíveis efeitos têm acumulado e os estudos observacionais vão sendo gerados, desconstruindo a “fantasia” dos tratamentos miraculosos ou sem sustentação científica, como esperado. 

covid-19

Ensaios clínicos x Estudos observacionais

Os ensaios clínicos randomizados correspondem aos tipos de estudos que rendem melhores evidências na medicina. A elaboração de um bom estudo, com a precisa randomização dos pacientes incluídos em grupo controle e grupo tratamento, tende a reduzir viés / bias e a fornecer melhores conclusões com boa validação e credibilidade sobre os efeitos do tratamento instituído / proposto em comparação com as terapias alternativas ou placebos. Por outro lado, os dados obtidos, especialmente em estudos observacionais, apresentam bias intrínsecos em sua base. Por exemplo, pacientes com doença moderada a grave provavelmente receberão tratamento. Outro exemplo consiste na dificuldade de identificação de um possível grupo controle, um grupo “sem fármacos” é altamente problemático para a interpretação dos resultados pois é alta a probabilidade desses pacientes não apresentarem sinais e sintomas exuberantes ou preocupantes, gerando potenciais fatores de confundimento. 

Adicionalmente, nas abordagens estatísticas dos estudos observacionais, além de todo o prejuízo nas avaliações de hipóteses, o valor de P < 0,001 não fornece muita informação para efeito clínico significativo do tratamento devido ao tipo de desenho de estudo e detecção da magnitude do efeito (effect size). Muitos estudos observacionais também obtém dados a partir de prontuários médicos, o que aumenta a probabilidade de ausência de dados importantes, sendo muitas vezes preenchidos por inferência da distribuição dos dados em fichas completas, elevando as possibilidades de bias

Na Covid-19, geralmente os doentes com doença moderada ou grave, por exemplo, provavelmente apresentarão maiores detalhes importantes para o estudo em seus prontuários. Tais detalhes reforçam a necessidade da realização de estudos do tipo ensaios clínicos robustos. Nesses estudos é possível incluir uma boa amostragem, com uso de parâmetros estatísticos devidamente selecionados na elaboração do estudo, com a possibilidade de realização de análise multivariada e outras estratégias que possibilitem a obtenção de resultados mais precisos. 

A epidemiologia dos navegadores, do Facebook e do WhatsApp

Na contramão da luta direcionada ao combate à Covid-19, temos também as mídias sociais como instrumentos rápidos e fáceis de confundimento. Experiências pessoais, estudos pontuais, áudios, vídeos e toda forma de criatividade são transformados em verdades absolutas rapidamente disseminadas e distribuídas por celulares e computadores em proporções globais. 

A minoria dos destinatários se preocupam em aprofundar os achados divulgados e identificarem a veracidade e o racional da informação, e amplificam ainda mais a divulgação, geralmente incorreta e sem embasamento científico. Foi assim com experimentos in vitro com a ivermectina, por exemplo. A divulgação precoce de que o composto teria ação inibitória in vitro contra o SARS-CoV-2, em poucos dias se tornou verdade absoluta por toda a mídia social. E virou um peso até mesmo para a ciência que se viu obrigada a incluir tais hipóteses em novos estudos.

Estudos de farmacodinâmica demonstraram que para ter o mesmo efeito in vivo, seria necessário o uso de uma dose oral 250 vezes maior do que aquela usada em experimentos in vitro, limitando as possibilidades devido a toxicidade e todas as consequências desse uso em doses significativamente elevadas e não permitidas. E assim ocorreu com vários outros compostos como anti-retrovirais, hidroxicloroquina, azitromicina, vitamina C, vitamina D, zinco, nitazoxanida, e outros, até passarem ao domínio político, na busca por soluções rápidas e milagrosas, sem o aval dos cientistas e/ou clínicos. 

O poder das mídias nas mãos de cada indivíduo se transformando na nova ciência dos “achismos” (“Achismologia”). A epidemiologia dos navegadores, Facebook, WhatsApp descobrindo suas auto-verdades pela criatividade pessoal. 

Estudos científicos (des)publicados 

Outros exemplos da ciência “infectada” pela Covid-19, encontramos inúmeros casos de artigos retirados da divulgação em sites e/ou em jornais científicos nesse ano, muitos desses descritos no site Retraction Watch. Citamos um estudo elaborado por pesquisadores da Escola de Ciências Biológicas Kusuna, Nova Déli, Índia, e divulgado através do repositório bioRxiv no final de janeiro. O título indicava: “A misteriosa semelhança entre o coronavírus e o HIV, causador da AIDS”. Mesmo com a exibição em site pelo curto período de 2 dias, foi suficiente para dar sustância às teorias de conspiração em redes sociais e outras consequências complicadas para a ciência.  

Além da coleção de muitos outros inconvenientes científicos divulgados ou publicados, temos o mais controverso e alarmante exemplo do estudo francês liderado por Didier Raould, sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 publicado na revista Journal of Antimicrobial Agents em março de 2020. 

O estudo representou o despertar exponencial da esperança e do interesse global pela milagrosa hidroxicloroquina no combate a COvid-19, que se mantém até hoje em kits de tratamento e defensores políticos, partidários ou crentes. É provavelmente o caso mais claro e curioso de como, mesmo após 9 meses depois da publicação, a maioria dos defensores ainda não percebeu que o estudo original foi retirado pela revista da publicação devido às inconsistências do estudo e do não fornecimento de dados específicos sobre o estudo pelos autores para a avaliação da veracidade. 

Que encontremos uma vacina também para a proteção da ciência frente aos erros humanos!

Referências bibliográficas: 

  • Abritis A, Marcus A, Oransky I. An “alarming” and “exceptionally high” rate of COVID-19 retractions? Account Res. 2021 Jan;28(1):58-59.
  • Barnett AG. Facebook Epidemiology in Place of Textbook Epidemiology. Epidemiology. 2021 Jan;32(1):152-153.
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  • Peña-Silva R, Duffull SB, Steer AC, Jaramillo-Rincon SX, Gwee A, Zhu X. Pharmacokinetic considerations on the repurposing of ivermectin for treatment of COVID-19. Br J Clin Pharmacol. 2020 Jul 17:10.1111/bcp.14476. 
  • Shyr Y, Berry LD, Hsu CY. Scientific Rigor in the Age of COVID-19. JAMA Oncol. 2020 Dec 10. doi: 10.1001/jamaoncol.2020.6639. Epub ahead of print. 
  • Wolkewitz M, Lambert J, von Cube M, Bugiera L, Grodd M, Hazard D, White N, Barnett A, Kaier K. Statistical Analysis of Clinical COVID-19 Data: A Concise Overview of Lessons Learned, Common Errors and How to Avoid Them. Clin Epidemiol. 2020 Sep 3;12:925-928. 
  • Yeo-Teh NSL, Tang BL. An alarming retraction rate for scientific publications on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19). Account Res. 2021 Jan;28(1):47-53. 

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