A evolução da estimulação transcraniana por corrente contínua: chegamos no limite?

Será que o uso da estimulação transcraniana por corrente contínua no tratamento de pacientes é muito recente? Quando começou? Evoluímos muito? Sera que chegamos no limite?

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Uma sigla muito comentada no meio cientifico atual é a tDCS, que significa transcranial direct current stimulation, em português “estimulação transcraniana por corrente contínua“. Esse é o método usado para tratar pacientes com determinados tipos de doença através de se colocar eletrodos fixados por uma faixa na cabeça e então administrar doses baixas de corrente elétricas, que se não causam nenhum efeito maléfico devido a sua intensidade, são suficientes para promover alterações ao nível celular cerebral de excitabilidade ou depressão cortical, dependendo do tipo de estimulação e se ela for anódica ou catódica, respectivamente.

Mas será que o uso da eletricidade no tratamento de pacientes é muito recente? Quando começou? Evoluímos muito? Sera que chegamos no limite? Vamos começar a responder essas questões.

A evolução na história

O uso da eletricidade para tratar pessoas com algum tipo de sintoma não é recente, na verdade, o uso para esse fim terapêutico já existe há séculos. A primeira fonte sabida de eletricidade foram os peixes elétricos. Experimentos em pessoas eram realizados no Antigo Egito. Eles utilizavam espécies de peixes elétricos, mas ninguém tem a certeza para qual fim seria o uso, se para tratar ou para castigar.

Mas o primeiro episódio de estimulação elétrica com fins terapêuticos chegou na época da Grécia Antiga, séculos depois, quando Platão e Aristóteles descreveram a capacidade dos peixes elétricos, através de suas propriedades intrínsecas, terem efeitos benéficos em pacientes.

E então vieram os romanos, na época do imperador Tibério César, quando Scribonius Largus, seu médico pessoal, descreveu a técnica de alivio para dor de cabeça com o uso dos peixes elétricos colocados sobre o couro cabeludo do paciente, constituindo a primeira estimulação elétrica transcraniana sabida. E, talvez, a primeira pessoa a ser curada pelo uso de peixes elétricos foi Antero, um escravo liberto de Tibério César, de uma enfermidade que, pela descrição, muito se assemelha à gota.

O tempo foi passando e no século XI , um médico na Pérsia chamado Ibn-Sidah começou a ampliar o uso dos peixes elétricos para tratar epilepsias, sendo, então, o uso disseminado para outros continentes como a África, onde existem relatos históricos que Jesuítas na Etiópia expandiram para rituais de exorcismo.

Interessante lembrar que a eletricidade obtida através do uso dos peixes elétricos não tem as mesmas propriedades físicas de uma corrente contínua. Apesar desses relatos históricos do uso, não há qualquer referência sobre os resultados obtidos e nem como eram decididos a indicação ou continuação dos tratamentos.

Tratando-se de épocas menos remotas, em 1660, na Alemanha, um cientista chamado OTTO von Guericke inventou o primeiro gerador eletrostático. Esse aparelho pode e deve ser considerado como o primeiro estimulador. A partir dele, as gerações posteriores de cientistas começaram a melhorar o aparelho e o torná-lo cada vez mais moderno. É como se tivesse sido uma espécie de protótipo.

gerador eletrostatico
OTTO von Guericke e o primeiro gerador eletrostático

 

O primeiro hospital a obter uma maquina eletrostática foi o hospital Middlesex em Londres, Inglaterra, em 1767. O hospital permaneceu em funcionamento até ser transferido em 1757 para outra localidade dentro da própria Londres, onde se manteve até fechar em 2005.

Conforme comentado anteriormente, a corrente contínua é diferente da corrente elétrica que emana pelos peixes. A corrente contínua é o fluxo de carga elétrica que não varia com o tempo, gerando um sinal constante. E essa característica é fundamental para o seu uso clínico.

No século XVIII, um cientista italiano chamado Luigi Galvani começou estudos sobre eletricidade animal, observando como músculos de animais mortos se moviam sob efeito de estimulação. Alessandro Giuseppe Antonio inventou a primeira bateria, que ficou conhecida como bateria galvânica. O sobrinho de Luigi Galvani, chamado Giovanni Aldini, utilizou então a bateria de forma clínica, tratando um paciente com depressão, com mudança significativa no seu humor após algumas semanas do início do tratamento.

Esse trabalho foi o marco que começou o uso do tratamento da estimulação da corrente contínua, sendo assim, mostra sua importância no cenário atual da estimulação elétrica transcraniana.

Por volta de 1880, o método de estimulação cerebral se tornou muito popular, especialmente na Alemanha, que se tornou pioneira na eletroterapia, uma forma de tDCS prévio. Nessa época, os resultados eram muito inconsistentes, alguns excelentes e outros ruins, e essa inconsistência, associada a não compreensão da parte básica de funcionamento devido ao conhecimento geral da época, fizeram a comunidade cientifica achar que quando ocorriam os efeitos positivos, eram devidos a efeitos de sugestão nos pacientes, com se fosse um placebo.

Mesmo com toda essa desconfiança cientifica, muitos outros pesquisadores usaram a corrente contínua para o tratamento de desordens psiquiátricas no século XIX e no início do século XX, porém a manutenção da discrepância dos resultados, associado a poucos detalhes de entendimento do funcionamento e ainda o não entendimento da polarização e como ela pode ser usada para excitar ou inibir mantiveram os resultados inconclusivos, fez com que seu uso fosse abandonado na década de 1930.

Por volta de 1964, a terapia com corrente contínua reapareceu com o uso em estudos animais. Lippold e Redfearn usaram 50-500 microA de corrente contínua em 32 espécimens e notaram que estimulação anodal induzira a um aumento da estado de alerta, na atividade motora e no humor, enquanto estimulação catodal induzira a apatia e tranquilidade. Nascia, então, a percepção clara de que o efeito da estimulação dependeria muito de que tipo, com resultados opostos entre a anódica e catódica.

Apesar dessa melhora, tanto no entendimento do processo, quanto na maneira geral de se fazer pesquisa, com estudos mais padronizados e uma segurança maior nos resultados, na década de 70 a estimulação por corrente contínua foi mais uma vez abandonada. Em parte, devido ao surgimento de novas drogas psiquiátricas, lembrando que a grande população de uso desse tipo de terapia eram os doentes psiquiátricos e também devido ao surgimento da preocupação sobre os métodos de tratamento com eletricidade nessa mesma população dentro dos manicômios. Até hoje, o tratamento com eletricidade carrega um estigma de maus tratos e lembra sofrimento para a maioria das pessoas do público leigo.

Porém, em 1998, houve uma nova reviravolta no uso da corrente contínua no tratamento de pacientes e, então, o tDCS moderno nasceu. Priori investigaram a influência da corrente contínua no cérebro de pacientes, testando seus efeitos na excitabilidade cortical usando a estimulação magnética transcraniana.

E hoje, devido a caraterísticas como ser não invasiva, muito bem tolerável e com efeitos colaterais raros, aumentou muito o interesse pela técnica e, a partir daí, começaram a ser realizados vários estudos científicos acerca dessa técnica com resultados muito favoráveis em determinados tipos de patologia.

Estimulação transcraniana por corrente continua atualmente

Em termos de hardware, os estimuladores de corrente continua evoluíram de uma simples bateria galvânica, passando por transistores, para atualmente atuarem através de microprocessadores e microcontroladores. Vemos mais uma vez como o mesmo principio, aliado a um desenvolvimento geral de conhecimento mundial, pode tornar algo que não era compreendido em algo muito útil, usando a mesma matéria-prima fundamental. Com novos conhecimentos adquiridos em Física, Eletrônica, Química e na própria Medicina, engenheiros biomédicos conseguem hoje produzir aparelhos de tDCS com um melhor controle dos parâmetros de estimulação a reduzidos custos.

Hoje a atuação da estimulação transcraniana por corrente contínua não se limita apenas a desordens psiquiátricas, mas já apresenta evidências científicas consistentes para o tratamento de dores crônicas, como fibromialgia, reabilitação de pacientes que apresentam AVC e depressão. E também está em construção de evidência cientifica para cefaleias, zumbido, vícios, Parkinson e Alzheimer, condições de difícil controle, que têm tratamento muito limitado.

O que esperar da técnica no futuro

E com relação ao futuro? O que podemos esperar dessa técnica que hoje tem muita aceitação em determinadas condições patológicas e na qual reside muita esperança de ainda mais melhoria num breve período de tempo?

No futuro, os aparelhos de tDCS serão ainda mais práticos, com menor tamanho, menor consumo e peso e maior portabilidade. Apesar de hoje já ter essas características, espera-se uma potencialização nesse sentido, ficando ainda mais fácil de usar.

Com relação às indicações , espera-se que cada vez mais apresente resultados favoráveis em determinadas doenças que hoje ainda não tem um nível de evidência muito claro, aumentado seu leque de condições que possam melhorar com o tratamento (desordens neuropsiquiátricas, desordens neurológicas, problemas cognitivos) e que também possam potencializar funções neurológicas em pessoas saudáveis (lembrando dos cuidados de não fazer o uso sem acompanhamento médico).

Então, após essas informações fica fácil de falar que não, decididamente não, chegamos ao nosso limite quando falamos de estimulação elétrica cerebral para tratar de pacientes. Pelo contrário, vislumbramos um futuro com possíveis confirmações de evidências hoje em construção e com surgimento de novas tecnologias e conhecimento, para cada vez mais ampliar o espectro de condições que se beneficiarão do uso da estimulação cerebral por corrente contínua.

Taxonomia: que tal falarmos a mesma língua quando tratamos a dor?

Referências:

  • Althaus J (1873). A Treatise on Medical Electricity. Longman: Londo
  • Brunoni AR, Nitsche MA, Bolognini N, Bikson M, Wagner T, Merabet L, Edwards DJ, Valero-Cabre A, Rotenberg A, Pascual-Leone A, Ferrucci R, Priori A, Boggio PS, Fregni F (2012). Clinical research with transcranial direct current stimulation (tDCS): challenges and future directions. Brain Stimulation 5, 175–195.
  • Cambridge NA (1977). Electrical apparatus used in medicine before 1900. Proceedings of the Royal Society of Medicine 70, 635–641.
  • Parent A (2004). Giovanni Aldini: from animal electricity to human brain stimulation. Canadian Journal of Neurological Sciences 31, 576–584.
  • Priori A (2003). Brain polarization in humans: a reappraisal of an old tool for prolonged non-invasive modulation of brain excitability. Clinical Neurophysiology 114, 589–595
  • Psychological Medicine (2016).Brief history of transcranial direct current stimulation (tDCS): from electric fishes to microcontrollers
  • Steinberg H (2014)Even electricity cannot work wonders!’ : Neglected achievements by German psychiatrists around 1880 in the treatment of depressions and psychoses]. Der Nervenarzt 85, 872–886.

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