A evolução no tratamento da hemofilia: da analgesia com gelo à possibilidade de terapia gênica

Nas últimas décadas a hemofilia deixou de ser debilitante para se transformar numa doença manejável. Há menos de 100 anos, a condição era tratada com gelo.

Nas últimas décadas a hemofilia deixou de ser uma condição debilitante para se transformar numa doença manejável. Curiosamente, há menos de 100 anos, a condição era tratada basicamente com gelo, repouso e analgesia, não se cogitava o seu controle. Felizmente, temos hoje muitas opções de tratamento e ainda caminhamos em direção a novos paradigmas de gerenciamento da doença, principalmente no que diz respeito à terapia gênica, com estudos em fases mais adiantadas e com resultados promissores, que estão sendo conduzidos em alguns países, inclusive no Brasil.

Como toda patologia, a hemofilia enfrentou altos e baixos ao longo de sua história, porém com o empenho da comunidade científica e a participação dos pacientes, tivemos conquistas importantes. Na minha opinião, estamos deixando os momentos mais difíceis para trás. É fato que enfrentamos uma questão delicada nos anos 80 quando centenas de pacientes com hemofilia foram contaminados pelo vírus HIV, justamente por conta do uso de produtos derivados do sangue sem os métodos apropriados de inativação viral. Em algumas cidades dos Estados Unidos, 90% dos hemofílicos foram infectados. Foi algo terrível, mas os erros também nos ensinam.

A hemoterapia passou a seguir rígidos protocolos de segurança, o que tornou eficaz o controle de transmissões infecciosas, algo que teve relação direta com o movimento impulsionado por pacientes e sociedade que protestaram e exigiriam maior cuidado e uma revisão na forma de manipulação de derivados do sangue humano. Em outro momento, essa proatividade coletiva também contribuiu para a inclusão do tratamento de reposição dos fatores de coagulação deficientes (fator VIII para hemofilia A e fator IX para hemofilia B) na rede pública de saúde do Brasil. Pensando que 75% dos pacientes com hemofilia no mundo não recebem o tratamento adequado, nós brasileiros, de certa forma, somos privilegiados com essa importante conquista.

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Mas, não conquistamos somente mais segurança e direitos de saúde pública, houve uma ampliação da gama de oferta de tratamentos. Com a maior oferta de fatores de coagulação VIII e IX conseguimos tratar de forma profilática a hemofilia, atuando na prevenção da manifestação de episódios hemorrágicos.

Eficaz e conveniente, a terapia de reposição, onde o concentrado de fator VIII ou IX é administrado, repondo assim a proteína deficiente no sangue dos pacientes, tem aspectos positivos, mas por outro lado, também envolve alguns desafios. A meia vida do fator VIII é de cerca de 8 horas, o do fator IX, 24 horas. Ou seja, o efeito das infusões declina rapidamente na circulação, exigindo outras infusões para prolongar o efeito desejado. O tratamento endovenoso frequente, embora possa ser facilitado pelo trabalho incansável de educação com resultados otimistas do tratamento domiciliar e da autoinfusão, ainda exige dos pacientes e seus familiares uma dedicação constante. Dependendo da gravidade da hemofilia, alguns pacientes têm que realizar a infusão pelo menos três vezes por semana, seja em casa ou em um serviço de saúde – obstáculo que dificulta a adesão e interfere na qualidade de vida do paciente.

Para tentar solucionar essa questão, foram desenvolvidos os fatores de longa duração que aumentam a meia vida desses fatores deficientes. Pesquisas apontam que esse tipo de terapia aumenta em até 5 vezes a meia vida do fator IX na Hemofilia do tipo B, passando de 18 horas com as infusões de curta duração para 24 horas de disponibilidade na circulação com os fatores de longa duração. Houve uma tentativa de uso da mesma tecnologia para tratar a hemofilia A: de 12 horas na circulação, o fator VIII passou a estar disponível por 18 horas, condição pouco impactante, no entanto, outros produtos com meia vida 4 vezes maior do fato VIII também estão em fase avançada de estudos.

Outra ressalva é que alguns pacientes podem desenvolver anticorpos contra os fatores de coagulação administrados, os chamados inibidores, onde o fator deixa de funcionar e assim os pacientes apresentam maior dificuldade na prevenção e no controle dos sangramentos, uma das maiores complicações no tratamento da hemofilia. Mais recentemente, diferentes produtos passaram a ser desenvolvidos com o intuito de poderem ser utilizados por pacientes independentemente da presença dos inibidores. Nessa linha, utilizando a tecnologia dos anticorpos monoclonais, amplamente utilizados em outras doenças, temos hoje alguns produtos que representam um expressivo avanço no tratamento de pacientes com hemofilia, que apresentam ou não inibidores. Isso já é realidade para os pacientes com hemofilia A, que possuem uma nova alternativa de tratamento, um anticorpo monoclonal que substitui o efeito do fator VIII, que pode ser aplicado de forma subcutânea uma vez por semana, ou mesmo mensalmente, levando aos mesmos resultados de eficácia para a prevenção dos sangramentos, mesmo na presença dos inibidores.

Outra possibilidade, ainda em fase de estudo, envolve o uso da terapia gênica para tratar a hemofilia. A técnica consiste basicamente em introduzirmos genes funcionais no interior de uma célula alvo, dando uma nova função para essa célula. Ou seja, no caso da hemofilia, “ensinamos” as células do fígado a produzir o fator VIII ou fator IX, no caso da hemofilia A ou B, respectivamente. Pesquisas apontam que a terapia gênica pode ser capaz de manter, em média, os níveis contínuos de fatores de coagulação no sangue, prevenindo sangramentos, reduzindo assim as múltiplas administrações intravenosas.

Vale destacar que ainda não existe nenhuma terapia gênica aprovada para o tratamento de hemofilia no mundo, de modo que a segurança e eficácia desse tratamento ainda não foram determinadas por órgãos reguladores.
Não obstante, acredito que, caso seja aprovada no futuro, a terapia gênica poderá gerar benefícios relevantes na qualidade de vida dos pacientes.

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