A flexibilização da ciência, vieses cognitivos e a tomada de decisões na pandemia de Covid-19

A Covid-19 trouxe à luz deficiências operacionais do campo médico exacerbadas pela crescente descrença na ciência e nos seus métodos.

A pandemia de Covid-19 tomou o mundo de surpresa no início de 2020 e revelou deficiências operacionais que, apesar de históricas, permaneciam ofuscadas pelo êxito raso e apático de uma estrutura que tinha por único desafio enfrentar os mesmos problemas de um século atrás.

Da incapacidade em avaliar a velocidade de disseminação, demanda por leitos, ou mesmo um conceito tão simples quanto mortalidade — que até hoje permanece em aberto — à própria noção do que significa atuar em nível de saúde pública, nossas carências educacionais enquanto médicos foram expostas uma a uma. Ainda assim, o maior flagrante de nosso colapso intelectual na pandemia foi, sem dúvida, o de observar nosso titânico fracasso em promover diálogos que estivessem lastreados por razão e ciência.

Para muitos cientistas e gestores públicos, o estudo do Imperial College britânico, publicado em março deste ano, significou a virada de chave para o discernimento de que o novo coronavírus representava uma ameaça crítica ao nosso funcionamento social. Investimentos massivos em pesquisas e o apelo social por novas soluções ganharam força à medida em que observamos Itália e Espanha implodirem frente ao novo antagonista da humanidade.

Nunca antes a sociedade civil esteve tão engajada e demandante em relação a temas de ciência e produção de conhecimento. Entretanto, o que se observou como rescaldo dessa complexa combinação foi uma produção acelerada de um oceano de evidências de baixa qualidade, ignorando o conjunto de métodos fundamentais desenvolvidos nas últimas décadas e que formam a base da Medicina Baseada em Evidências.

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Médico usa ciência no combate à Covid-19

“Ciência flexível”

Em um artigo recentemente publicado na revista Mayo Clinic Proceedings, discutimos um fenômeno que denominamos de “flexibilização da ciência”. Fenômeno que consiste em um abandono do rigor metodológico do fazer científico diante da pandemia.

Nós acreditamos que essa flexibilização, ao gerar evidências de baixa qualidade, contribui para o início de um ciclo vicioso plenamente contraproducente: a adoção precoce e inadvertida de intervenções baseadas em evidências de baixa qualidade se torna terreno perversamente fértil para o surgimento de evidências anedóticas de “curas” — em especial, no contexto de uma doença cuja história natural mais prevalente é a remissão espontânea em dias — o que por sua vez retroalimenta a produção de estudos metodologicamente frágeis que seguem tais falsos rastros de benefício. Uma vez estabelecido, o motor que gira infinitamente esse ciclo são os vieses cognitivos inerentes a todo ser humano.

Tal percepção realça a importância de distinguirmos cientistas de ciência, posto que a ciência é o empreendimento que visa desnudar a verdade da maneira mais imparcial e não enviesada possível, ao passo que cientistas, em sua condição humana, são suscetíveis a toda sorte de vieses quando não seguem uma metodologia apropriada. Na prática, a consequência são pacientes e público leigo cada vez mais confusos. Veja aqui o artigo na íntegra.

Exemplo atual

Mas como assim “flexibilização da ciência”? Pegue como exemplo o primeiro estudo clínico realizado com a hidroxicloroquina, publicado em março de 2020, pelo grupo francês liderado pelo professor Didier Raoult. Há uma clara discrepância entre a pergunta de pesquisa proposta e o desenho metodológico usados. Trata-se de um estudo “quasi-experimental”, com grupo controle escolhido de maneira não aleatória, por conveniência e sem cegamento. Isso listando apenas algumas das inúmeras limitações de extrema importância que impedem que qualquer conclusão maior possa ser extraída de tal estudo.

Em um estudo como esse, que na prática funciona como um estudo observacional, é preciso que se ressalte a incapacidade em se eliminar variáveis confundidoras não conhecidas. O que basicamente anula o seu poder de inferir uma relação de causalidade.

Mesmo que se procure controlar para eventuais fatores confundidores, há de se sublinhar nossa imensa limitação em prever toda a gama de variáveis que podem enviesar um estudo, a maioria delas provavelmente nem mesmo conhecida.

A metodologia mais adequada seria, por óbvio, um ensaio clínico randomizado (ECR), uma vez que a randomização é uma das ferramentas mais importantes para se avaliar o efeito de intervenções medicamentosas minimizando ao máximo o papel de fatores de confusão.

Um trabalho com tamanha dissonância entre pergunta e desenho poderia, na melhor das hipóteses, servir de base para que outros estudos adequados fossem realizados. No entanto, o que se viu foi a sombria sequência de médicos adotando a intervenção em diferentes etapas da doença, gestores públicos ratificando e incentivando o uso do fármaco, e novos estudos observacionais e ensaios clínicos não randomizados que em nada ajudaram a responder a pergunta de pesquisa original.

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Reversões

Na história da medicina, não são poucos os exemplos de medical reversals. Intervenções inicialmente tidas como eficazes, em sua maioria baseada em evidências de baixa qualidade, que foram “desprovadas” ou mesmo demonstradas como nocivas posteriormente em ensaios clínicos randomizados. Esse padrão se repete em relação a estudos in vitro transpostos a estudos em animais, estudos em animais transpostos para humanos e estudos observacionais quando comparados com ECRs.

Tomemos, por exemplo, o efeito das vitaminas E e C na prevenção de doenças cardiovasculares. Em 2004, evidências oriundas de estudos observacionais sugeriam que pacientes com consumo elevado de vitamina E e aqueles que ingeriam mais de 700 mg por dia de vitamina C teriam um risco significativamente menor de desenvolver eventos cardiovasculares do que aqueles que não faziam tal ingesta.

Um dos argumentos para tal hipótese era o efeito “antioxidante” dessas medicações. Entretanto, quando essa proposição foi colocada “à prova”, através da realização de um ensaio clínico randomizado com mais de 14 mil pacientes comparando vitamina E e C com placebo, não foi encontrada nenhuma diferença na incidência de desfechos cardiovasculares.

Apesar de não facilmente compreendida, a ideia de que existe uma “hierarquia” entre os diferentes tipos de evidências produzidas é fundamental para entendermos que determinados dados nos trazem maior grau de certeza que outros. E, ainda, que essa diferença, que podemos chamar de o “valor” de uma evidência, depende essencialmente do rigor metodológico por trás de sua produção.

Vieses nossos

No contexto da pandemia de Covid-19, é possível identificar diversos vieses cognitivos que giram a roda da desinformação. Destacamos aqui o viés de ação e o viés de confirmação. Dois que se moldam bem às características do cenário pandêmico e parecem ter um papel importante nesse ciclo.

Ação

O viés de ação é uma noção intuitiva de que, diante de uma adversidade, assumir uma postura ativa é melhor do que assumir uma postura expectante ou conservadora.

Um exemplo bem estudado e inusitado é o caso do comportamento de goleiros de futebol em cobranças de pênalti. Mesmo que a melhor estratégia para se defender um pênalti seja demonstradamente ficar parado no meio da goleira até que a cobrança seja realizada, esses profissionais resistem à lógica e preferem agir baseados na intuição de sua escolha de lado.

No campo médico, sob uma perspectiva otimista, esse viés pode ter como origem a vontade genuína de ajudar ao próximo. O grande problema, é que em muitas situações clínicas, há evidências de que a estratégia conservadora é a melhor escolha ao se confirmar a menos nociva — “primum non nocere”.

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Confirmação

Adicionando imprecisão à nossa capacidade crítica, o viés de confirmação descreve nossa tendência a procurar por evidências que confirmem uma crença ou opinião que já tínhamos previamente.

Na seara científica, traduz aquele nosso “instinto” de nos agarrarmos em “provas” que confirmam nossa hipótese pré-estabelecida. Independente de sua relevância ou qualidade metodológica, ignorando a necessidade da análise crítica de todo o corpo de evidências disponível. Retornando ao nosso exemplo original, aqueles que, por quaisquer motivos, endossam o uso de hidroxicloroquina como uma droga para tratamento ou profilaxia da Covid-19, poderiam justificar seu posicionamento com evidências de baixa qualidade, ignorando todas as evidências de maior qualidade hoje já disponíveis.

Considerar nossa vulnerabilidade a tais vieses é uma maneira de promover o entendimento de que somente abordagens sistemáticas, que procurem eliminar nossas pressuposições tendenciosas, podem gerar resultados confiáveis. Esse alerta e lição, descortinados pela crise sanitária que vivemos, é o espírito que precisamos imprimir às futuras gerações de profissionais da saúde.

Mensagem final

A pandemia de Covid-19 expôs uma ferida aberta de nossa formação médica. O que propomos é que, mais do que invocar o princípio da autonomia — recentemente reforçado em publicação oficial da Associação Médica Brasileira (AMB) —, possamos refletir sobre a importância de oferecermos um cuidado médico embasado em um conhecimento sólido.

Conhecimento que se destaque por ser o oposto do manejo quase reflexo, que oferece um “cuidado a qualquer custo”. Não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa tão nobre quanto necessária. Conforme exposto como princípio fundamental no Código de Ética Médica brasileiro, “compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade”.

Em um momento tão sensível, cabe a nós realizarmos o esforço maior de distinguir especulação do real progresso científico enaltecido por nossa ética.

Em conjunto com: Vicenzo Zarpellon¹, Marcos Vinícius Vidor²,

¹ Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e residente de Neurologia do Hospital São Lucas da PUCRS (Porto Alegre, RS).

² Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e realiza doutorado em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS.

Referências bibliográficas:

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