A saúde mental e a restrição ao aborto em populações historicamente marginalizadas

Em 24 de junho de 2022, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou o marco legal de 1973 Roe v. Wade, desmantelando o direito constitucional ao aborto.

Em 24 de junho de 2022, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América (Estados Unidos) revogou o marco legal de 1973 Roe v. Wade, desmantelando o direito constitucional ao aborto que vinha sendo sustentado por quase um século. Há inúmeros indícios que essa decisão prejudicará desproporcionalmente grupos marginalizados que já encontram inúmeras barreiras para um acesso equitativo aos serviços de saúde.  

As implicações de decisões restritivas como vista nos Estados Unidos são melhores entendidas a partir de uma abordagem interseccional que articula racismo estrutural, injustiça reprodutiva e saúde mental, uma vez que pessoas com histórico de transtornos mentais, traumas, transtorno por uso de substâncias são mais vulneráreis a estigma, discriminação e eventos perinatais adversos.  

Primeiramente, a prática do aborto não leva a danos em saúde mental, não constituindo um aumento de risco para nenhum transtorno mental. Um estudo longitudinal comparando pessoas que conseguiram acessar o aborto legal e àquelas que tiveram acesso negado, evidenciou que as pessoas que não conseguiram realizar apresentavam inicialmente maiores níveis de estresse, ansiedade e baixa autoestima.  

depressão

Discriminação e aborto 

Há também dados sugestivos de piores indicadores de saúde mental nas pessoas que abortam, o que são parcialmente explicados por desigualdades estruturais que expõem a população à pobreza, trauma, experiências adversas na infância, como abuso físico e sexual e violência íntima. Pessoas com transtornos mentais pré-existentes, desfechos em saúde mental são piores tanto se elas fizerem um aborto quanto derem à luz.  

O racismo estrutural – definido como a interação de sistemas de opressão e instituições que restringe recursos, oportunidades e poder de grupos raciais e étnicos marginalizados – é considerado uma causa fundamental de piores desfechos em saúde. Nos Estados Unidos, mulheres negas e latinas são super-representadas e mulheres brancas sub representadas entre as mulheres que realizam aborto. As mulheres com menores rendimentos são aquelas que mais frequentemente recorrem ao aborto.  

Impacto econômico 

O atravessamento de questões macroeconômicas e sistemas de dominação envolvendo a problemática do aborto também é marcante no Brasil: as Pesquisas Nacional de Aborto de 2016 e 2010 evidenciaram de forma sustentada e contundente a pervasividade do fenômeno na sociedade – 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto. Não obstante, são as mulheres pretas, pardas e indígenas com menor escolaridade as mais afetadas pela questão de saúde pública. 

A associação entre pobreza e aborto é multifatorial, envolvendo injustiça reprodutiva – baixo acesso a informações sobre contracepção – em estudo brasileiro avaliado qualidade da atenção ao aborto no Sistema Único de Saúde no Nordeste (a pesquisa não fazia distinção entre abortos espontâneos e induzidos), o melhor dado de mulheres recebendo informações sobre planejamento familiar no momento da alta foi de 35,5%, frente a assustadores 3,2% das mulheres em São Luiz.  

Limitar o livre acesso a saúde reprodutiva exacerba questões referentes ao racismo, sexismo e classismo. Nos Estados Unidos, onde há diferentes legislações ao longo dos Estados, pessoas com melhores condições financeiras podem se deslocar para acessar serviços legais; no Brasil, a despeito de proibido, é sabido que a parcela mais rica da sociedade consegue acessar o aborto assegurando minimamente suas condições de segurança, enquanto pessoas pobres e outros grupos marginalizados, como LGBTQIA+, pessoas com transtornos mentais graves e uso de substâncias colocam suas vidas em risco.

Série LGBTQIA+: O que o médico precisa saber sobre a comunidade LGBTQIA+ [vídeo]

Conscientização dos profissionais da saúde 

Justiça reprodutiva, incluindo acesso fácil e oportuno ao aborto, é indiscutivelmente um problema de saúde pública – um determinante social de saúde mental e física com repercussões de longo alcance que precisa ser tratado com seriedade pelo Estado Brasileiro e por diversas outras nações ao redor do mundo. A onda conservadora que vem impondo leituras moralistas das questões sociais não pode nos deixar perder de vista a magnitude, persistência e urgência na resolução da questão.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
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