Abordagem do paciente com Covid-19: o que aprendemos em 2020?

O objetivo deste artigo é descrever, à luz do que temos de evidências concretas no momento, a melhor abordagem para o paciente com Covid-19.

No final de 2019 fomos surpreendidos com o surgimento da Covid-19, que, em dois meses, passou de uma doença localizada em um distrito da China para uma pandemia que pegou a todos nós de surpresa. Tão logo a declaração de pandemia surgiu, na primeira semana tivemos a publicação de 400 artigos sobre o tema, chegando hoje a cerca de 2.000 por semana. Ainda não sabemos muito sobre o vírus causador da Covid-19, mas estamos aprendendo diariamente a cuidar melhor dos nossos pacientes, e a reduzir a taxa de mortalidade do paciente que evolui com formas graves da doença, com dependência de ventilação mecânica.

Com o passar dos meses, aprendemos a ponderar mais antes de indicar uma intubação orotraqueal, assim como a não fornecer drogas sem benefícios comprovados. Com o tempo, a maioria das medicações propostas demonstrou inclusive malefício. Como um dos poucos axiomas que se aplica à medicina, “menos, é mais”; sempre foi, e acredito que sempre será.

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O objetivo deste artigo é descrever, à luz do que temos de evidências concretas no momento, a melhor abordagem para o paciente com Covid-19.

Abordagem do paciente com Covid-19:

Estratificação de risco e critérios de gravidade

Ainda não possuímos mecanismos que permitam identificar, na admissão, o subgrupo de pacientes que possuem maior risco de evoluir com formas graves. Esses pacientes demandam mais recursos humanos e materiais. Assim, ainda devemos utilizar ferramentas habituais, como o escore de SOFA, julgamento clínico, bom senso, assim como a classificação de severidade da doença:

  • Forma leve: Síndrome gripal sem dispneia e com imagem de tórax inocente. Podem ser tratados ambulatorialmente.
  • Forma moderada: Síndrome gripal com pneumonia em imagem de tórax, porém mantendo saturação acima de 93%, sem suporte de oxigênio. Deve-se considerar a internação para observação, com início de antibacterianos (macrolídeo + betalactâmico) apenas em casos selecionados.
  • Forma grave: Pacientes com síndrome gripal e pneumonia em imagem de tórax, que apresentem saturação menor que 93% em ar ambiente, ou relação PaO2/FiO2 menor que 300, ou comprometimento > 50% dos pulmões em tomografia de tórax, ou ainda, frequência respiratória acima de 30 irpm. Esses pacientes devem ser internados para receber oxigênio suplementar e acompanhamento hospitalar.

Fatores de risco para pior prognóstico

O maior estudo publicado pelo grupo de Wuhan, com 72.314 pacientes, relatou alguns dos fatores mais relacionados à evolução grave, com óbito. São eles: idade maior que 60 anos (80%), doença cardiovascular (10,5%), diabetes (7,3%), doença pulmonar prévia (6,3%) e hipertensão (6%). Em uma série de casos de 700 pacientes hospitalizados em Nova Iorque, os fatores de risco associados com necessidade de hospitalização foram hipertensão (56,6%), obesidade (41,7%) e diabetes (33,8%).

Um artigo publicado por Guo et al, mostrou que os pacientes diabéticos possuem risco independente mais alto de mortalidade em decorrência da exacerbação de resposta inflamatória e hipercoagulabilidade, chegando a 41,7% de mortalidade em pacientes diabéticos com glicemias acima de 180 mg\dL.

Diversos estudos relacionam a obesidade (IMC > 30 kg\m²) com maior necessidade de ventilação mecânica, maior chance de evolução para pneumonia grave, e mortalidade elevada.

Exames laboratoriais:

Contagem total de linfócitos: Uma contagem de linfócitos menor que 800/mm3 tem sido consistentemente associada à maior gravidade e risco de morte para o paciente com Covid-19. Contagens acima de 1.000/mm3 estão associadas à formas mais leves de doença.

Relação neutrófilo\linfócito: Uma relação elevada (> 10) tem sido correlacionada com maior severidade de doença com sensibilidade de 88% e especificidade de 63,6%.

D-dímero: A presença de D-dímero elevado na admissão tem sido associada independentemente como fator de pior prognóstico para o paciente com Covid-19. Em um estudo, 81% dos pacientes que faleceram tinham esse marcador elevado no momento do evento. Apesar de se correlacionar com maior gravidade, a presença de D-dímero elevado não indica pesquisa de evento tromboembólico, a menos que exista suspeita clínica desta condição.

Lactato desidrogenase (DHL): Em estudo publicado por Zhou e colegas, a presença de DHL maior que 245 U/L foi visto em 98% dos pacientes que não sobreviveram, com um odds ratio para mortalidade intra-hospitalar de 45,3%. Apesar da elevação de DHL estar associada a pior desfecho, um valor normal não exclui evolução desfavorável ao longo da internação.

Proteína C-Reativa: Trata-se de um marcador inespecífico e frequentemente elevado no paciente com Covid-19, porém, elevações expressivas parecem estar relacionadas a pior prognóstico.

Ferritina: Outro marcador pouco específico, que está elevado em 63 a 80% dos casos de Covid-19 com necessidade de internação hospitalar. Um estudo multicêntrico envolvendo 150 casos em Wuhan mostrou uma média de 1.297ng\dL nos pacientes que não sobreviveram, contra uma média de 614 ng\dL nos que sobreviveram.

O uso da radiologia como marcador de severidade

Não existe evidência clara na literatura que assegure um padrão radiológico específico para a Covid-19. A presença de infiltrado em vidro-fosco bilateral está presente em 72% a 100% dos pacientes hospitalizados. A radiografia tem baixa sensibilidade para a identificação de infiltração pulmonar nos casos leves. A ultrassonografia de tórax com presença de linhas B focais e espessamento pleural estavam presentes em 100% dos pacientes analisados em estudo realizado na Alemanha, apresentando excelente correlação com os achados de uma tomografia de tórax subsequente.

Manejo do paciente grave

As últimas atualizações a respeito do manejo dos casos graves de Covid-19, publicadas pelas sociedades americana e europeia de terapia intensiva possuem muitos pontos em comum que serão abordados abaixo.

Suporte hemodinâmico: Os guidelines falam a favor de uma abordagem conservadora na oferta de fluidos. As metas consistem em um alvo de PAM acima de 60 (principalmente pacientes ≥ 65 anos) ou 65 mmHg, com uso precoce de vasopressores, sendo a noradrenalina a primeira escolha. Considerando a importância de evitar balanços hídricos persistentemente positivos, deve-se pensar no início de drogas vasoativas mesmo antes ou durante a realização de provas volêmicas. Considerar a dobutamina apenas nos casos de disfunção cardíaca confirmada. Baseado em estudos anteriores a pandemia, em pacientes com SDRA grave, a adoção de uma estratégia fluido-restritiva, após ressuscitação inicial, visando manter o paciente com o balanço hídrico levemente negativo (entre 0 a -200 mL/dia), tem associação com menor mortalidade. Deve-se, assim, evitar a realização de alíquotas de cristaloides, a menos que exista evidência objetiva e concreta de hipovolemia como etiologia do choque. Se realizados, os cristaloides de escolha são as soluções balanceadas.

Suporte ventilatório: No início da pandemia adotamos uma estratégia de realização de intubação precoce (IOT), baseada em trabalhos que sugeriram a presença de SILI (Self Induced Lung Injury) nos pacientes com hipoxemia em ventilação espontânea. No entanto, ainda não existem evidências contundentes dessa associação. Por outro lado, a intubação precoce parece estar associada à maior incidência de disfunções orgânicas e mortalidade. Assim, atualmente, deve-se indicar uma IOT com os mesmos critérios utilizados antes da pandemia.

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Com relação ao suporte não invasivo, o papel do uso da ventilação não invasiva (VNI) na insuficiência respiratória aguda hipoxêmica sempre foi questionado. Seu uso era restrito aos casos com relação PaO2/FiO2 acima de 200, sempre com o cuidado de não atrasar uma IOT bem indicada. Nesse contexto, a publicação do estudo FLORALI foi o que deu forças ao uso do cateter nasal de alto fluxo (CNAF). Ele analisou pacientes com insuficiência respiratória aguda hipoxêmica em uso de VNI, versus cateter nasal de alto fluxo (CNAF), demonstrando ausência de diferença nas taxas de intubação, porém redução de mortalidade nos usuários do CNAF. Esses achados vêm sendo corroborados por outros estudos realizados na Itália e Oceania. Dentre as principais recomendações sobre a oxigenoterapia no paciente com Covid-19 grave estão:

  • Considerações gerais:

    • Considerar o uso precoce do CNAF nos pacientes com dessaturação;
    • Escalar terapia caso não haja resposta;
    • Evitar intubação precoce por hipoxemia, se houver resposta ao CNAF;
    • Estimular a realização de posição prona espontânea nos pacientes hipoxêmicos;
    • Utilizar máscara cirúrgica para reduzir dispersão de partículas com vírus.
  • Uso racional da oxigenoterapia de forma escalonada:
    1. Cateter nasal 1-6 L\min para manter SpO2 90-94%;
    2. Máscara de Venturi a ser titulada até 60% para manter SpO2 90-94%;
    3. Máscara não reinalante a 15 L\min para manter SpO2 90-94%;
    4. CNAF a 20 L\min, podendo chegar a 60 L\min, para manter SpO2 90-94%;
    5. VNI com 100% de FiO2 e peep inicial de 5 para manter SpO2 90-94%;
    6. Intubação e ventilação mecânica invasiva se ausência de resposta.

Hipercoagulabilidade: O paciente com Covid-19 possui risco aumentado de desenvolver tromboembolismo venoso (TEV), chegando a taxas que variam entre 20 a 69% nos pacientes hospitalizados, a despeito do uso de anticoagulante profilático. Também tem sido reportada a incidência de coagulação intravascular disseminada (CIVD), onde até 15% dos eventos embólicos passam assintomáticos.

As recomendações sumarizadas consistem em:

  • Não é recomendado screening radiológico de rotina no paciente com Covid-19 sem correlação clínica;
  • O uso de anticoagulante profilático não é indicado nos casos leves, apenas nos casos moderados e graves internados em hospital, com recomendação de doses habituais;
  • O D-Dímero elevado não serve isoladamente para desencadear rastreio por imagem;
  • A anticoagulação plena (Enoxaparina 1 mg\kg 2x dia) deve ser iniciada na vigência documentada de evento tromboembólico ou quando o julgamento clínico ponderar cuidadosamente os riscos e benefícios da mesma. Não há recomendação para início de anticoagulação plena baseada em dosagens de d-dímero.

Tratamento farmacológico

Já houve muita discussão a respeito do tratamento adjuvante farmacológico no paciente com Covid-19. Infelizmente, boa parte delas não são pautadas por metodologia científica ou medicina baseada em evidências, mas no achismo e na motivação política individual, bem longe do que deveria ser a boa prática clínica. Após meses de evolução e acompanhamento da doença, algumas respostas foram obtidas através de estudos randomizados, que são sumarizadas a seguir:

  • Anti-inflamatórios não esteroidais: Não há até o momento evidências que concluam o surgimento de efeitos adversos graves, ou benefício em desfechos clínicos, com uso dessas medicações para controle de febre. Devem ser usados os inibidores de ciclooxigenase do tipo 3 como acetaminofeno e metamizol (dipirona), evitando o uso de inibidores de COX 1 e 2 em decorrência dos efeitos deletérios sobre o trato digestivo e renal, além do risco de favorecer o surgimento de eventos trombóticos.
  • Corticoides: Inicialmente houve muito receio no uso de corticosteroides, com base em estudos realizados nas epidemias de H1N1 e MERS. No entanto, após a publicação dos estudos RECOVERY, CODEX, e da metanálise da OMS que incluiu outros cinco estudos randomizados, o uso da dexametasona se tornou recomendação formal. A atualização mais recente do Infectious Disease Society of America recomenda o uso de dexametasona 6 mg por dia, durante 10 dias, em pacientes com hipoxemia e necessidade de oxigênio suplementar.
  • Antibióticos: Uma metanálise recentemente publicada mostrou que 72% dos pacientes internados receberam antibioticoterapia empírica, porém apenas 8% tinham de fato infecção documentada. O uso da azitromicina apesar de controverso, não encontra respaldo científico para seu uso empírico. A recomendação da sociedade americana de terapia intensiva é de iniciar antibioticoterapia empírica nos pacientes que demandam ventilação mecânica, até esclarecimento da etiologia do quadro. Nos outros pacientes, não há recomendação para início empírico. O julgamento clínico individualizado, associado a marcadores como procalcitonina e proteína C-reativa podem ajudar a decidir de forma correta essa questão caso-a-caso, evitando a seleção de cepas resistentes por uso indiscriminado de antimicrobianos.
  • Tocilizumab: Em estudo publicado em dezembro de 2020 pelo New England Journal of Medicine, o tocilizumab não foi eficaz na prevenção da intubação ou morte em pacientes moderadamente enfermos hospitalizados por Covid-19. Até o momento, não existe benefício comprovado com uso de inibidores de interleucina 6, para controle da suposta tempestade de citocinas inflamatórias nesses pacientes.
  • Outros: O uso de medicações tradicionalmente usadas no tratamento de doenças autoimunes (hidroxicloroquina) e antiparasitários (nitazoxanida e ivermectina) seguem tendo eficácia apenas para o tratamento destas mesmas doenças. Não existe nenhuma evidência científica do benefício dessas medicações em desfechos clinicamente relevantes. Atualmente elas são contraindicadas pelas associações médicas mais compromissadas com a ciência e o bem-estar da população.

Talvez muito do que está escrito aqui mude ao longo dos próximos meses. Porém, essas são as principais recomendações aceitas a nível mundial, frutos da dedicação e disciplina de centenas de cientistas empenhados em oferecer um tratamento melhor ao paciente com Covid-19.

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