Disfunções neurológicas da sepse

A sepse compreende um conjunto de disfunções orgânicas ameaçadoras à vida em decorrência de uma resposta inflamatória exacerbada do paciente frente a uma infecção.

A alta morbimortalidade da sepse, bem como a alta demanda de gastos com saúde pública, geram preocupações quanto ao seu diagnóstico e manejo precoces. Dentre os variados sítios de disfunção orgânica da sepse, o sistema nervoso costuma ser o primeiro foco de disfunções, sobretudo em pacientes idosos e/ou imunocomprometidos. Dentre as formas de comprometimento, enquadram-se a encefalopatia associada à sepse (SAE), convulsões, eventos cerebrovasculares e desordens neuromusculares, como a fraqueza muscular adquirida na UTI (ICUAW), a qual está presente em até 65% dos pacientes sépticos.

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Tais complicações possuem impacto direto sobre a mortalidade e sobre as disfunções mentais, cognitivas e físicas dos pacientes a longo prazo. Dada a relevância da temática, adiante abordaremos as principais sequelas neurológicas da sepse e de que forma é possível garantir um diagnóstico e manejo adequados visando a um melhor desfecho clínico dos pacientes com sepse.

Disfunções neurológicas da sepse

Encefalopatia Associada à Sepse (SAE)

A SAE é a complicação mais recorrente na sepse. Entende-se como encefalopatia associada à sepse uma encefalopatia de caráter agudo em pacientes com evidencia clínica de sepse ou choque séptico, devidamente descartadas as suspeitas de intoxicação exógena, doenças autoimunes ou inflamatórias cerebrais, infecções de sítio cerebral ou outras doenças cerebrais primárias. Em outras palavras, o diagnóstico de SAE é feito por exclusão e com alta suspeição clínica.

As principais manifestações da SAE englobam desde delirium, mais comumente hipoativo, ao coma, em sua maioria de caráter reversível, porém, depressão, ansiedade e distúrbios cognitivos podem se fazer presentes em até 40% dos pacientes após 365 da alta hospitalar. Apesar disso, o mecanismo fisiopatológico da SAE ainda é desconhecido. Acredita-se que a complexa interação entre a inflamação sistêmica e a liberação exacerbada de citocinas em decorrência da sepse, somada às disfunções endoteliais, possa gerar alterações eletroquímicas na propagação do estímulo nervoso.

Manejo da SAE

O diagnóstico precoce e o tratamento adequado da sepse e de suas disfunções orgânicas deve ser o alvo do manejo da SAE. A avaliação neurológica de todo paciente com suspeita de SAE deve ser realizada por meio de ferramentas validadas na literatura, como a Confusion Assessment Methods for the Intensive Care Unit (CAM-ICU) e a Escala de Coma de Glasgow, descartando-se, sempre, causas de encefalopatia não associadas à sepse.

Outro artifício útil ao diagnóstico da SAE é o eletroencefalograma (EEG). Alterações de lentificação generalizada na atividade cerebral, bem como a presença de ondas theta e delta (indicadores de disfunção cortical), são achados inespecíficos que ocorrem em pacientes com suspeita de SAE. Exames de neuroimagem como tomografias computadorizadas e ressonância magnética não possuem relevância significativa na investigação de SAE.

Fraqueza Muscular Adquirida na Unidade de Terapia Intensiva (ICUAW)

A inflamação sistêmica gerada pela sepse também impacta, diretamente, no funcionamento das fibras nervosas periféricas, bem como dos músculos esqueléticos e do diafragma. ICUAW, juntamente com a fraqueza diafragmática, é uma das complicações mais comuns em pacientes internados em UTI, estando presentes em mais de 67% dos pacientes com sepse.

Definida como uma fraqueza simétrica de início pós-sindrômico com a capacidade de afetar os 4 membros e os músculos respiratórios, a ICUAW cursa com uma redução generalizada no tônus muscular, sem necessariamente reduzir os reflexos tendinosos profundos. Seu quadro consiste na interseção entre duas síndromes: a polineuropatia do doente crítico (CIP) e a miopatia do doente crítico (CIM), as quais culminam na polineuromiopatia do doente crítico.

O diagnóstico da ICUAW irá depender do nível de consciência do doente. Em pacientes despertos e colaborativos, utiliza-se o Medical Research Council Sum Score (MRCss), no qual seis grupamentos musculares são graduados, bilateralmente, de 0 a 5 quanto a sua força, podendo variar de 0 (paralisia total) a 60 (sem alterações de força muscular). A ICUAW é definida por um MRCss < 48, sendo considerada severa em pacientes com MRCss < 36.

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Contudo, o uso do MRCss exige treinamento técnico avançado, muitas vezes impossibilitando sua aplicação. Para isso, outra forma de avaliar a presença de ICUAW em pacientes orientados, é por meio do dinamômetro de mão. Pontos de corte de 11 kg para homens e 7 kg para mulheres garantiram uma sensibilidade de 0,81 e uma especificidade de 0,83 no diagnóstico da ICUAW.

Já em pacientes não colaborativos, o diagnóstico é feito por meio da eletrofisiologia. Por exemplo, ao avaliarmos a atividade do nervo fibular em pacientes com risco de desenvolvimento de ICUAW, uma amplitude de movimento menor que o intervalo de normalidade possui alta sensibilidade e especificidade no diagnóstico de CIP e CIM.

Contudo, pacientes internados no ambiente de UTI, dada a gravidade do setor, não costumam ser cooperativos, o que dificulta a avaliação morfológica e funcional da atividade muscular. Para isso, o uso de estimulação muscular direta, associada aos testes nervosos, pode ajudar no diagnóstico de CIP e CIM em pacientes não colaborativos.

Manejo da ICUAW

Assim como na SAE, não há terapias específicas com benefícios comprovados para o tratamento da ICUAW, sendo de extrema importância a resolução do quadro de sepse como forma de minimizar a exposição do doente aos fatores desencadeantes dessa fraqueza muscular. Contudo, baixas vazões de sedativos e mobilização precoce por meio da terapia ocupacional e da fisioterapia dentro da UTI são estratégias efetivas na prevenção de ICUAW.

Dietas hiperproteicas e hipercalóricas também não possuem evidências sólidas quanto à reversão do quadro catabólico iniciado durante a sepse, devendo o aporte calórico e proteico ser guiado especificamente pelas necessidades fisiológicas do indivíduo.

Mensagem final

A sepse é uma condição grave e de alta mortalidade e morbidade a curto e a longo prazo. Dentre as disfunções orgânicas presentes na sepse, as disfunções neurológicas mais recorrentes englobam a encefalopatia associada à sepse (SAE) e a fraqueza muscular adquirida na UTI (ICUAW).

Identificar e diagnosticar essas complicações de maneira precoce e garantir o suporte adequado e a resolução do quadro infeccioso e inflamatório podem diminuir as taxas de morbimortalidade da sepse a longo prazo, bem como o tempo de internação e os custos com saúde pública.

Por fim, mais estudos aprofundados se fazem necessários para que seja possível esclarecer os mecanismos fisiopatológicos da SAE e da ICUAW para que, dessa forma, possamos agir de maneira minuciosa na reabilitação e na ressocialização do paciente com sepse.

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